terça-feira, 6 de junho de 2006

VANITY FAIR


"Behold! I send you out as sheep amidst the wolves"

Nada mais propício que um 6/6/6 para falar sobre as maravilhas que só o capeta pode proporcionar. O assunto é vasto! Poderia brincar com aforismos sobre fim do mundo: guerras do "demônio" do leste contra o oeste que provocariam o Apocalipse, o nascimento do anticristo, enfim, um seis de junho de 2006 seria estímulo para abordar muita coisa que já foi feita com o tema, mas também tornaria tudo muito disperso. Então preferi dar uma olhada mais atenta na abordagem que mais me impressionou até hoje, a ponto de perceber que The World's Worst Issues não tem nada a ver com o décimo oitavo anjo.

Até gostaria de falar sobe A Profecia (se tivesse visto), mas, em se tratando do anjo caído e assuntos afins, fico logo com a caracterização que julgo mais perfeita e adequada àquilo que imagino que seria sua persona. Advogado do Diabo (Devil's Advocate, 1997) é daqueles filmes que ficam fácil no meu top ten. Considero-o perfeito em todas as suas possibilidades, inclusive (e talvez principalmente) nos defeitos. Irônico, pois o texto de hoje escolheu um filme que passa ao largo do terror, gênero onde o cramulhão é habituée, e refugia-se em uma mistura de suspense e, sei lá, drama? Os americanos têm uma categoria ótima para este caso: thriller. Designação apropriada para aquilo que é ao mesmo tempo terror, suspense, drama, ficção e, por outro lado, não é nada disto. É o tipo de filme que te estimula, excita, deixa apreensivo, enfim... it thrills you. Simples assim. Curioso como algo banal como a classificação de um filme torna-se complicada ou "desencaixada" quando tentamos enquadrá-lo em categorias cartesianas, racionalmente criadas, e torna-se a coisa mais simples do mundo quando o classificamos segundo um critério emocional, passional, de acordo com o que sentimos enquanto o assistimos.

O filme acerta até na escolha do título. As duas palavras da versão original conseguem, numa tacada só, ser a sinopse, o tema e a matriz do filme; além de, por mais óbvio que seja (e tudo sempre é óbvio depois que é feito), compor um trocadilho perfeito e espirituoso como poucos. Difícil alguém não ter visto, mas somos apresentados a Kevin Lomax, jovem advogado de uma cidade do interior que nunca perdeu um caso na vida, mesmo que não acredite na inocência das pessoas que defende. Seu desempenho chama a atenção de um dos maiores escritórios de advocacia de Nova Iorque que o convida a fazer parte de sua equipe. A possibilidades de independência financeira e realização profissional convencem o jovem advogado que, ao chegar à cidade grande, passa a conviver com o presidente do escritório, John Milton, um envolvente advogado que atua em todo o globo e cuja presença magnetiza o ambiente. Não sei se estaria sendo injusto com Scarface e outras obras que sempre surgem na memória quando falam no nome de Al Pacino, mas o que ele faz com John Milton é literalmente demoníaco. Já ouvi por aí que um bom ator destaca-se em suas falas, mas atores excepcionais destacam-se em seus silêncios. Se esta frase fosse um verbete de um dicionário qualquer, ao lado teria a foto de Pacino em Advogado do Diabo. De preferência na cena da igreja, onde, num olhar só, é capaz de passar desprezo, sarcasmo, orgulho, vaidade e a mais perfeita "filhadaputicidade" que já vi por aí. Costuma-se dizer que o demo possui pessoas, incorpora, coisa e tal. Se for verdade, Belzebu deve estar revoltado, pois Pacino o possuiu, incorporou e chamou de minha nega! E pensar que o próprio Al achou que não estaria à altura do papel. Graças a Deus Pacino foi o Capeta.


Sua encarnação do demônio é, paradoxalmente, das mais simples que já vi. Alguns discordariam. Diriam que é dos mais complexos, que a lógica pela qual funciona não é a do maniqueísmo barato que povoa 90% das obras do gênero, que flutua nos tons de cinza da existência ao invés de sentar-se confortavelmente no trono do lado negro, que aqui adquire tridimensionalidade ímpar, dificilmente percebida em outras obras. Concordo com tudo, mas vejo que esta complexidade só existe se tentarmos ver o filme com a mesma característica cartesiana que torna difícil classificá-lo segundo o gênero. John Milton não deve ser entendido. Há que ser absorvido. Tudo aquilo que acima seria usado para dar a dimensão de um personagem complexo, ouso tomar como argumentos para mostrá-lo como simples ao extremo. Ele não pensa no que faz, deixa que o rio tome seu curso, que as coisas aconteçam como têm que acontecer, por mais que pareça o inverso. Vive em meio ao povo, só anda de metrô e faz da verdade sua maior arma. Simples assim².


Deixe-me dar algumas informações privilegiadas sobre Deus. Deus gosta de
assistir. É um pervertido. Pense nisto. Ele dá ao homem instintos.
Ele lhes dá este dom extraordinário e então o que Ele faz?
Eu juro; pela Sua própria diversão, pela Sua própria e
íntima piada cósmica, Ele estabelece as regras em oposição!
É a maior sacanagem de todos os tempos! Olhe! Mas não toque. Toque,
mas não prove! Prove, mas não engula. Hahahaha… e enquanto
você fica pulando de um pé para o outro, o que Ele está
fazendo? Ele está gargalhando! Ele é um sádico! Um senhorio ausente! Venerar a isto? NUNCA!!


A genialidade do filme te impede de dizer até mesmo que o demônio é mau. Mesmo quando retrata o significado das mulheres para o capeta, a despeito dos exageros de proporções bíblicas dos relatos do Al Satanás, não é diferente das posturas machistas de outrora, mas que ainda hoje perduram aqui e ali, onde o homem fala o que a mulher espera ouvir para conseguir o que quer e apenas o que quer. Claro, o que Charlize Theron (em começo de carreira e já ótima) sofre deliberadamente é um absurdo, mas a pedra fundamental de seu sofrimento, seu marido, não faz nada que tenha sido obrigado e ainda ajuda a tacar umas pás de cal. E ele faz isto porque quer. Em nenhum momento Milton usa de artifícios sobrenaturais para fazer com que Kevin Lomax tome as decisões que toma. Vemos o caos crescendo inexorável e puramente devido aos defeitos daquele que fora feito à imagem do criador. O diabo chega ao cúmulo de ser "bonzinho", propõe o porto seguro para Lomax – insiste na proposta – e mesmo assim ele falha, a vaidade mete o pé na porta com tudo! Toma conta dos eventos. Impressiona.


Não temo estar revelando spoilers quando menciono o capeta, pois, por mais que o fato só venha a ser revelado lá pelo final, é o tipo de verdade daquelas que todos sabem, como inconsciente coletivo, antes mesmo de começar o filme. Nem acho tampouco que esta seja a grande questão da obra.


"Melhor reinar no inferno do que servir no Céu"
________________________Kevin Lomax, citando Paraíso Perdido, de John Milton, o autor


Lá no começo eu disse que o filme acerta até nos seus erros. Pois é... 15 entre 10 pessoas acham Keanu Reeves uma porta. Um boneco de Olinda tem mais presença dramática do que ele. O cara que fez Cigano Igor o usou como meta no seu "laboratório" para composição de personagem. Entretanto, não vejo outra pessoa para ser Kevin Lomax. A opção inicial era Brad Pitt, depois John Cusack e Edward Norton, mas estes são muito mais atores que Reeves. Entendo o seguinte, Lomax não poderia ser interpretado por alguém brilhante. Ele tinha que ser falho. Legitimamente falho. Aliás... ser falho e ser escada. E isso é com ele mesmo. Afinal, John Milton é um personagem cuja verborragia inebria, o tempo inteiro incendeia as sensações com suas interpretações do homem e do cotidiano. Poucas vezes um filme teve tantas frases de efeito. Não é nem uma questão apenas de quantidade, mas principalmente de significado. Tantas frases que dá vontade de decorar e falar por aí de vez em quando. E não são soltas, gratuitas, pois todas se encaixam: usam de elementos alegóricos como céu, inferno e diabo para passar a mensagem básica de que, se as coisas não dão certo, não há nenhuma questão sobrenatural a atribuir culpa senão à própria natureza humana. Perceba que neste post reforço bastante que o filme se faz presente muito mais pela naturalidade do que se sente do que pela frieza do que se pensa.


Por mais que tenha o demônio como seu protagonista, a projeção é idônea. Nada mais natural do que representar os princípios torcidos da justiça do que ver o emissário do inferno como um advogado. Afinal, o advogado observa a lei, não faz justiça. O discurso final é suficientemente bem articulado para ser aplicado tanto a favor de Deus quanto do Diabo. Ninguém pode chegar e dizer que aquilo passa ao largo da verdade. Aqueles que desmerecem religiões podem usá-lo para defender ainda mais seus pontos de vista, da mesma forma que os defensores da fé podem usá-lo exatamente para dar mais força ao que acreditam. No fundo, o que sobra é a responsabilidade de cada um com seu meio e o que fazem com o tal do livre-arbítrio. Os argumentos do personagem de Reeves na defesa de seus clientes eram factuais, mas nem por isto justos. E certamente muito mais tendenciosos que os do próprio Milton.


"Free will. It's like butterfly wings: once touched, they never get off the ground.
No, I only set the stage. You pull your own strings. Free will, it is a bitch!"


Há filmes que, com o tempo, passam a gozar de mais prestígio. Que na época de seu lançamento, sabe-se lá o porquê, tiveram recepção aquém do que era esperado. Advogado é um destes. Ainda hoje não vejo o senso comum o colocando no panteão daquelas obras inabaláveis. Seu diretor, Taylor Hackford, continua desconhecido – era uma versão cinematográfica de one hit band até fazer Ray, filme que vingou muito mais por Jamie Foxx e seu Oscar do que propriamente pela qualidade de roteiro. Claro, teve filmes interessantes no passado, mas nada que chame atenção. Há que se destacar aqui suas opções técnicas para ênfase de elementos necessários, ou metáforas e citações presentes o suficiente para serem notados sem tornarem-se pseudo-personagens. Hackford destaca-se, por exemplo, ao mostrar como a tentação leva o homem ao limite, quando Milton conversa com Lomax no beiral da "varanda" de seu escritório, ou na representação do purgatório em relevo decorando a casa do demônio - dantesco -, onde ele não dorme e "fode todos em todo lugar". Até sincero este demônio se dá ao luxo de ser. Não sei e não creio que tenha sido intencional, mas Pacino não é exatamente um modelo de beleza e é baixinho, o que faz com os outros atores sempre o olhem de cima para baixo: "Underestimated from day one! You'd never think I was a master of the universe now, would ya?"

Sempre quis escrever sobre Advogado do Diabo, mas não é velho o suficiente para abordar como algo bom de antigamente nem novo o bastante para contribuir na avaliação de um lançamento. Só que em 1997 não existiam blogs e, se não aproveitasse o 6/6/6, teria que esperar mais 1000 anos para outra deixa.


"Vanity, definitely my favorite sin!"