sexta-feira, 19 de abril de 2024

90 centímetros a mil


Nelson Ned não tinha 90 centímetros. Tinha 1 metro e 12. Isso não impediu a gravadora de tascar a marca fake em seu disco de estreia, Um Show de Noventa Centímetros, de 1964, por questões marketeiras. Está tudo bem explicado na bio Tudo Passará: A Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção (Companhia das Letras, 2023), escrita pelo jornalista André Barcinski.

Bio, aliás, que anda fazendo mais barulho que o próprio Barulho. Merecido.

Querendo ou não, cresci ouvindo Nelson Ned. Nada de rock americano ou pós-punk inglês lá em casa, apenas a fina flor das paradas AM: trilhas de novelas, compactos e elepês de Roberto Carlos, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Clara Nunes, Nelson Gonçalves, Sérgio Reis. De artistas internacionais, dá-lhe Ray Conniff e italianos como Peppino di Capri, Sergio Endrigo e Nico Fidenco. E havia o Eu Também Sou Sentimental, então, para mim, um muito curioso disco de 1970.

a capa já me deixava fascinado, com o Nelson sentado num banco, fotografado de corpo inteiro (raridade). Nunca havia visto alguém com nanismo, quanto mais um cantor com nanismo. Era desconcertante ouvir aquele artista pequenino com um vozeirão tão imponente. Era mágico até.


Na fauna midiática popularesca do Brasil dos anos 1970-1980, Nelson Ned era um paradoxo. Surgia num Chacrinha aqui, num Raul Gil ali, num Silvio Santos acolá e sumia. Parecia muito ocupado, pois seguia no topo da forma vocal e não parava de lançar discos.

Tínhamos certa noção do sucesso dele lá fora, mas não fazíamos ideia do tamanho desse sucesso. Um pouco pela barreira cultural que separa o Brasil dos demais países da América do Sul e muito pela má vontade da imprensa brasileira com a obra do Nelson. Não havia informações, excetuando algumas poucas matérias em programas de variedades. E mesmo assim nenhuma dava a dimensão exata.

Tudo Passará traz justiça à jornada de superação de Nelson Ned e à sua carreira única no estrelato mundial. Mais ainda, faz uma reparação histórica do jornalismo musical brasileiro com o cantor. Espero sinceramente que não acabe por aí.

O texto de Barcinski tem uma dinâmica ágil e bastante visual. Serve perfeitamente como base para o roteiro de um filme – ou de uma minissérie da Netflix ou da Globoplay, quem sabe? A tocante sequência de abertura, mostrando os bastidores de um show do Nelson do ponto de vista do baterista Raymundo Vigna, é para ler chorando e fazendo o enquadramento da cena com as mãos.

Essa sensação acompanha a maior parte da leitura como uma opção narrativa eficiente e instigante, jamais de maneira apelativa.


O livro cobre desde as suas origens humildes em Ubá, na Zona da Mata Mineira, e as primeiras incursões em carros de som e programas de rádio até o avassalador sucesso na América Latina e na África lusófona. E, claro, também traz toda a bagagem hardcore de sexo, drogas e violência que o próprio Nelson, já evangélico, não se furtava em confessar em entrevistas.

Esse é outro aspecto que também não tínhamos ideia do tamanho da encrenca. Tudo é esmiuçado em detalhes de empalidecer até o Keith Richards. Nelson Ned não era brinquedo.

A bio contou com o precioso apoio e colaboração da família de Nelson, aparentemente sem restrições. Algo que não se vê muito por aí, infelizmente.

Uma dica aos aventureiros é deixar as orelhas e o ótimo texto do Marcelo Rubens Paiva na contracapa para leitura posterior. Preservar as surpresas da experiência foi tão bom que até evito – com muito esforço! – comentar aqui sobre as situações cabulosas e as figuras improváveis que pipocaram na trajetória do Nelson. O livro merece. E o leitor, mais ainda.

De ruim, é justamente o tamanho (sem trocadilho): apenas 256 páginas que passam rápido demais. Menos que as imersões de Vale Tudo: O Som e a Fúria de Tim Maia e do 50 Anos a Mil, do Lobão – em contrapartida, é bem mais fluído e sem a prolixidade, por exemplo, de Chacrinha: A Biografia. Provavelmente, mais uma opção de abordagem.

O importante é que agora finalmente há um registro oficial para esta história inacreditável. E bota inacreditável nisso.


Coisa que o próprio Nelson Ned tinha consciência há tempos.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Deus, o Diabo e a Criterion na Terra do Sol


Aquele negócio... o mercado de home video físico foi pro vinagre há tempos e hoje segue de forma extremamente segmentada. No caso, no segmento dos cinéfilos colecionistas, que até toleram a realidade do streaming, mas não abrem mão de seus clássicos reluzindo na estante.

E Black God, White Devil – o nosso Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964 – não é qualquer clássico: é o grande clássico do Glauber Rocha. Sim, sim, um marco do Cinema Novo, da contracultura canarinho e por aí vai, mas é simplesmente um filmaço.

A nova versão foi remasterizada em 4K pela cineasta e pesquisadora Paloma Rocha (filha do homem), que vem trampando arduamente no projeto. O blu-ray é duplo e traz toneladas de extras, incluindo documentários e entrevistas.

E, diabos, sairá pela Criterion®! Isso é algo para se orgulhar enquanto espécie.

Lançamento previsto para julho, há exatos 60 anos da estreia!

quinta-feira, 11 de abril de 2024

A Lenda de Trina Robbins


Trina Robbins
(1938 - 2024)

Se foi a pioneira Trina Robbins. Este mês não está fácil. E nem chegamos na metade.

Nascida Trina Perlson, depois Trina Castillo (do ex Art), depois Trina Petit (pseudônimo) e finalmente Trina Robbins (do ex Paul Jay), ela teve uma trajetória que beirou o surreal. Estilista, modelo, quadrinista, pesquisadora, escritora e ativista, também foi figurinha tarimbada na cena psicodélica americana dos anos 60. Amiga próxima de Jim Morrison e do pessoal do The Byrds, foi homenageada por Joni Mitchell na música “Ladies of the Canyon”. É pouco?

Sua vida se confunde com a própria evolução da cultura pop underground moderna e do papel das mulheres dentro da indústria dos comics. Renderia fácil um livro ou uma série.

Sua carreira começou ainda na adolescência, quando escrevia e desenhava para fanzines. Era o iniciozinho da década de 1950. Com o passar dos anos, chegou a posar para a capa de algumas dessas publicações – o que abriu caminho para alguns trabalhos como modelo pin-up para revistas masculinas até o começo da década seguinte.

Na mesma época, ela integrou a gênese do Underground Comix, sendo uma das poucas mulheres envolvidas no cultuado movimento. Produziu muito material durante os anos 60/70, mergulhando de cabeça nas causas feministas e advogando pelo espaço das mulheres num mercado quase totalmente masculino. É dela a primeira tirinha lésbica já registrada, Sandy Comes Out, publicada na Wimmen's Comix #1 de novembro de 1972.

Robbins nunca foi de fazer média e esculachava sem dó inclusive companheiros de underground. Nem a misoginia satírica de Robert Crumb escapava: “É estranho para mim como as pessoas estão dispostas a ignorar a horrível escuridão do trabalho de Crumb... O que diabos há de engraçado em estupro e assassinato?”

Outro que levou uma trauletada de luxo foi o nosso Mike Deodato. Robbins classificou a Mulher-Maravilha que ele desenhou nos anos 90 como uma “pinup hipersexualizada quase nua.”

Errada não está... tenho as edições e é realmente impagável de tão apelativo. Em contrapartida, ela é a co-criadora da Vampirella e a designer da sua aparência, digamos, hipersexualizada e quase nua.

Outra marca história conquistada por Robbins diz respeito justamente à princesa de Themyscira: em 1985, ela se tornou a 1ª artista feminina a desenhar a Mulher-Maravilha desde a sua criação em 1941. E só levou 44 anos.

Entre trabalhos para a DC, Marvel, Eclipse, Star e outras, passou a se dedicar à pesquisa da História dos Quadrinhos com foco na participação das mulheres no segmento. Isto porque, segundo ela, todos os demais pesquisadores “só queriam saber de Stan Lee e Jack Kirby.”

Em 1985, publicou seu 1º livro, Women and the Comics (inédito por aqui), em parceria com Catherine Yronwode. E não parou mais – sua bibliografia de não-ficção é extensa.

Trina era casada com o veterano quadrinista Steve Leialoha. Ao contrário dele, infelizmente, ela foi pouquíssimo publicada por aqui.

Parece que foi ontem que a mencionei no post de despedida da Ramona Fradon, numa lista com as maiores precursoras das mulheres nos quadrinhos. Pesquisar e escrever sobre Trina é apaixonante, mas parece não haver final à vista. Ela foi demais para uma vida só.

E sim, nos áureos tempos também foi um tremendo brotinho, mora?

Que mulher.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Mad MaXXXine

A trilogia X do cineasta Ti West e sua musa Mia Goth chega ao fim (?) nos loucos anos 80. Lógico.


"Obsession", do Animotion, a versão do clássico das boates "Self Control", da Laura Branigan... só na trilha já deu pra perceber que o filme foi embebido na década dos excessos. A cenografia é estonteante e a sinopse é digna de qualquer contracapa de VHS da CIC Video, Top Tape ou Look Vídeo:
“Na Hollywood dos anos 1980, a estrela de filmes adultos e aspirante a atriz Maxine Minx finalmente tem a sua grande chance. Mas enquanto um misterioso assassino persegue as estrelas de Hollywood, um rastro de sangue ameaça revelar seu passado sinistro.”
Recapitulando, X, de 2022, é um divertido slasher mezzo paródico mezzo fora da curva. Mia Goth – neta da veterana global Maria Gladys – brilha em papel duplo. O prequel Pearl, do mesmo ano, é ainda melhor. Direção, atmosfera, texto e Goth em seu auge performático. Um filmaço.

Se MaXXXine simplesmente seguir no piloto automático, já está no lucro. Mas a gringa brasileira vende bem o peixe:

“É o melhor roteiro dos três, de longe. Será o melhor filme dos três.”

Curiosamente, a trilogia não tem causado muito burburinho no Brasil. Talvez porque muitos miguxos resenhistas têm um ranço enorme das produções do estúdio A24. Don't believe the hate. Ao menos neste caso.

MaXXXine estreia 5 de julho nos EUA. Por aqui, nem sinal ainda. Seja como for, a maratona já me aguarda...

sábado, 6 de abril de 2024

Obrigado por tudo, Cientista Maluquinho!


Ziraldo Alves Pinto
(1932 - 2024)

Lembro vividamente. Acho que é uma daquelas coisas. Tinha algo entre 6 e 7 anos. Local, a quermesse junina da igrejinha do bairro, que existe até hoje – muito maior e mais bonitona, mas sem aquele charme comunitário de outrora. Era sempre um evento.

Então, estava lá eu tentando a sorte na barraquinha da pescaria (afinal, quem sabe não viria um Falcon?), mas o que acabei pescando foi algo muito menos impactante à 1º vista...


...porém infinitamente mais impactante para a minha vida. A Turma do Pererê Vol. 1 foi, de longe, o quadrinho que mais reli naqueles anos. Eu simplesmente não largava a edição.

E essa foi a minha apresentação oficial à obra do homem. Festejando no meio da molecada, das brincadeiras, na quermesse da igreja. Mais Ziraldo, impossível.

O livro – uma bela edição (de 3) em capa dura pela editora Primor!, aprovadíssima pelo MEC milico – não resistiu às rebordosas da minha infância e adolescência, infelizmente. Mas já era tarde demais: o amor pela arte do Ziraldão já havia me conquistado e seguiu inabalável.

Dizer que Ziraldo foi um mestre dos quadrinhos infantojuvenis é pleonasmo. Seu próprio nome já é indissociável do conceito. E, claro, ele foi muito mais do que isso. O que só fui entender mais tarde, com a idade. Desta forma, nunca parei de redescobrir seu trabalho. Acho que é um daqueles gênios.

Não sou dado a ufanismos, mas olha... como é bom o Ziraldo ter nascido brasileiro. Provavelmente só assim ele seria o Ziraldo.

Vai fazer muita falta esse Cientista Maluquinho.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Para os que ficam


Edward R. Piskor Jr.
(1982 - 2024)

Se foi o Ed Piskor. Voluntariamente. Com apenas 41 anos.

Descrever a rápida saga que levou à sua implosão profissional e pessoal é exaustivo só de pensar a respeito. O jornalista, escritor e tradutor Érico Assis montou um fio compreensivo e prático.

Li alguns trechos da carta de despedida. Só consegui ver ressentimento, instabilidade e imaturidade. Talvez com razão – talvez não. Muito ainda será discutido a respeito e termos como cultura do cancelamento, tribunal da internet, saúde mental, vitimização e/ou culpabilidade da vítima serão atirados no ventilador com toda a força.

A repercussão desse caso ainda vai durar um bom tempo no escrutínio público. E não poderia ter vindo em pior hora para alguns ex-queimados estão ensaiando um retorno à cena. A verdade é que ninguém sabe ainda como fazer isso direito. Piskor não soube.

comentei aqui: adorava o Cartoonist Kayfabe que ele dividia com o ex-amigo Jim Rugg. E considero Hip Hop Genealogia e X-Men: Grand Design alguns dos quadrinhos mais importantes das últimas décadas. Mas estaria mentindo se afirmasse que, para mim, a fruição dessas obras não sofreu um baque com as escolhas de vida (e de morte) do autor. Como tantos outros antes dele e, temo, depois também.

Da mesma forma, também não sei o que fazer sobre isso. Não ter controle sobre uma situação é foda.

Descansa em paz aí, Ed Piskor.

domingo, 24 de março de 2024

Báthory Bloody Báthory


Quando Erzsébet foi publicado pela Zarabatana Books em 2017, o editorial tratou de conferir uma aura de mistério em torno do autor. Comercialmente falando, uma malandragem pro. Mas, de fato, pouca coisa se sabia sobre Nunsky. Apenas que ele era do norte de Portugal, cantava numa banda psychobilly (The ID's) e exercitava seu lado quadrinista muito sazonalmente em zines e autorais underground. Ou seja, uma figura quase tão obscura quanto o BZ. Mas o "mistério" não durou muito tempo.

Hoje, sabemos que seu alter-ego é Cláudio Roberto Martini (quem?!), que mantém uma conta no Facebook onde posta tirinhas e projetos (quase) regularmente e que, sem dúvida, Erzsébet é a sua obra mais ambiciosa e fascinante até aqui.

A proposta da HQ é montar uma espécie de biografia livre da Condessa Elizabeth Báthory de EcsedBáthori Erzsébet, em seu húngaro nativo. Apesar de ser uma figura histórica bastante conhecida, ela contabiliza poucas bios, entre elas os filmes Condessa de Sangue, de 2008, com a ótima Anna Friel, e A Condessa, de 2009, dirigido e protagonizado pela Julie Delpy, além da BD francesa A Condessa Vermelha - Erzsébet Bàthory, publicada aqui em 1987 pela Martins Fontes.

Todas elas versões de autor, com toda a liberdade criativa e acuracidade histórica irregular que se espera. Em Erzsébet não é diferente, mas é das mais intrigantes. Capturar a vida e obra da Condessa Vermelha é um trampo capcioso. Mas temos lá o mythos que cruzou séculos rumo à eternidade e que Nunsky usa como mapa.



Elizabeth Báthory (1560-1614) é uma nobre de uma poderosa família dona de vastas propriedades no Reino da Hungria, onde exerce uma profunda influência política e militar. Bem educada e criada sob os rigores do calvinismo protestante, a jovem Elizabeth sofre com enxaquecas e crises de epilepsia. Se casa aos 15 anos com o Conde Ferenc II Nádasdy – um arranjo político que faz das duas famílias praticamente as donas da Transilvânia e da Hungria. Nádasdy logo assume o comando do exército e entra em guerra com os Otomanos (sempre eles!). As campanhas duram meses, o casal pouco se vê depois disso.

Durante os períodos de solidão, vagando pelo castelo sob a marcação de sua sogra religiosa e severa, Elizabeth desaba em uma espiral de insanidade. O que começa com crueldades imprevisíveis e gratuitas contra os criados, assume contornos psicopáticos, com a condessa arrancando nacos de carne e sorvendo o sangue de suas vítimas. Se o Leste Europeu não fosse entupido de lendas Strigoi, diria que o Bram Stoker (1847-1912) se inspirou muito ali. Mas a coisa escala mesmo após a morte de Ferenc.

Buscando a juventude eterna, Elizabeth passa a se banhar em sangue humano. A fonte: jovens virgens filhas de plebeus camponeses, considerados cidadãos de 5ª classe pela aristocracia. Fora de suas famílias, ninguém daria falta e/ou se importaria com elas. E começa uma orgia sem limites de carnificina e sangue que contabiliza mais de 650 vítimas.

Eventualmente, a condessa acaba se deparando com escassez de matéria-prima – afinal, após tantos sumiços, os vilarejos passam a evitar o castelo e seu entorno – e ela se vê obrigada a buscar seus insumos nas jovens da nobreza. E é aí que as autoridades começam a se importar.

Elizabeth é pega com a boca na botija (ou na artéria) durante uma revista feita em seu castelo por György Thurzó, Grão-Paladino da Hungria e também o seu primo. Talvez por isso, e pelo brasão de sua família, tenha escapado da fogueira. Elizabeth é julgada e condenada ao confinamento em um quarto selado com blocos, onde permanece até a sua morte, três anos depois.

Fim da história, início da lenda.



A composição estética é o aspecto mais poderoso da narrativa de Nunsky. O release propõe uma cruza entre os estilos de Charles Burns e Jaime Hernandez, no que concordo mais ou menos. Tem muito mais ali das artes medievais, povoadas por figuras chapadas e rígidas – com o diferencial da perspectiva, inexistente nas gravuras clássicas. O quadrinista aplica essa característica de forma sagaz, construindo várias passagens mortificantemente silenciosas que dispensam descrições textuais, mesmo com grandes quantidades de informação atreladas. Ele confia plenamente em sua capacidade gráfica e, mais ainda, na capacidade intuitiva do leitor.

Fora que isso deixa tudo mais macabro e perturbador. Afinal, se estabelece ali uma conexão psicológica quadrinho-leitor que não deveria nem existir em uma mente sã e pura. Viva?

Na HQ, Nunsky veste a camisa do thriller, do terror gótico, o que faz primorosamente. No que tange ao contexto e ambientação da bio, porém, o autor opta por uma leitura mais enxuta. As extensas ramificações da família Báthory e o complexo cenário sociopolítico da região (algo como um Game of Thrones on crack) são explorados apenas superficialmente. Elizabeth teve cinco herdeiros, sendo 3 filhas e 2 filhos. Todas figuras históricas relevantes da época. Isso sem contar os dois filhos não confirmados – um deles com um plebeu, inclusive, quando ela tinha 13 anos. O quadrinho suprime esses fatos, registrando apenas um parto.

Um detalhe curioso sugerido em Erzsébet é que o comportamento doentio da condessa começa exatamente após uma de suas violentas enxaquecas. Não sei se chega a ser uma sugestão de gatilho para suas atrocidades posteriores, mas o fato é que ela não volta mais a sofrer com as dores. Teria sido ali o ponto zero de uma mente enferma?

Uma especulação que parece um grão de areia na praia dessa história.


Hoje, é sabido que havia muito mais por trás da lenda da Condessa Sanguinária. Por exemplo, os 300 depoimentos colhidos para seu julgamento, que ainda constam no Arquivo Nacional Húngaro, são de pessoas que apenas ouviram falar das mortes. Seus quatro servos que supostamente a ajudaram, confessaram os crimes sob tortura – e foram rapidamente para a fogueira após as confissões.

A quantidade de terras, castelos e bens acumulada pela família Báthory era incomparável. E ficou ainda mais concentrada após a morte de Ferenc, o que teria desagradado os aristocratas do reino. Alguns deles, inclusive da Corte da Habsburg, deviam somas vultosas aos Báthory. Fora isso, ainda havia conflitos de interesses entre seus filhos, netos e outras casas influentes (lembra das maquinações Game-of-Thrônicas?). Elizabeth virou um alvo fácil.

Aliás, o famoso carro-chefe da lenda – os banhos de sangue para preservar a sua juventude – foi mencionado pela 1ª vez apenas em 1729, pelo jesuíta László Turóczi. Mais de um século depois.

Elizabeth Báthory pode ter sido uma das assassinas mais cruéis da História. Ou vítima de um dos assassinatos morais mais cruéis da História.

terça-feira, 19 de março de 2024

Entrevista com o Diabo

Nada como um programinha leve e descontraído antes de dormir...


Cabuloso.

Late Night with the Devil nem saiu em circuito comercial e vem sendo considerado uma das grandes apostas do gênero neste ano. Stephen King já assistiu e adorou. Mesmo com o hype, err, infernal, o trailer eletrizante mostra que o filme não vem pra brincar. Alta octanagem que chama?

O longa foi escrito e dirigido pelos manos aussies Colin e Cameron Cairnestudo indica que na Austrália agora é obrigatório que todo filme de terror seja dirigido por uma dupla de irmãos. Na premissa, situada em 1977, um show de variedades genérico escala uma menininha possuída entre as atrações. O problema é que a coisa é séria mesmo e logo o programa ao vivo vira um... pandemônio.

A convergência entre os temas é providencial, já que em meados daquela década parece ter havido mesmo um boom demoníaco nas mídias de massa. Programas de tevê, músicas, livros, artigos de revistas e jornais, todos pareciam interessados no que o cramulhão tinha a dizer. Talvez um efeito do pessimismo generalizado impulsionado pelas sucessivas crises econômicas – incluindo aí uma certa Crise do Petróleo de 1973 – aliado ao sentimento amargo pós-Vietnã e ainda o imenso impacto popular de O Exorcista.

Por sinal, uma sequência memorável da subestimada série de 2016 era justamente com a jovem protagonista figurando num desses talk shows dos 70's.

Também será a chance de ver o ótimo David Dastmalchian no papel principal, pra variar. Nos últimos anos, o ator esteve em vários hits do cinemão hollywoodiano, de Duna a Oppenheimer, sempre como coadjuvante. Ele é um exímio ladrão de cenas, como visto em Esquadrão Suicida e em sua estreia nas telonas, em Batman: O Cavaleiro das Trevas – ofuscando Christian Bale sem uma fala sequer.

De cara, dá pra ver que a direção de arte é sensacional, evocando a estética dos late shows clássicos dos anos 1970, tipo Dick Cavett e Johnny Carson. Esmero do Shudder que fica parecendo até produção do A24. Esse cuidado se estende ao pôster retrô, que parece saído da vitrine de algum cinema de rua das antigas.


Bons tempos.

Late Night with the Devil estreia nos cinemas lá fora no dia 22 próximo. E no Brasil, só no dia 22 de agosto (!!). Mas não tema, pois em 19 de abril já estará disponível no Shudder. 😈

E agora... Nossos comerciais, por favor! ®️

Dica do Sandro Sem Link 666.

sábado, 16 de março de 2024

Au revoir, Feng Shui

Quando você dá um tapinha no visual da estante e só depois da arrumação se dá conta que ela estava daquele jeito para otimizar espaço.


Nunca subestime seu eu do passado.

Ps: coloquei tudo de volta, mas aqueles 5 minutos foram mágicos. Meus chakras brilharam que nem Las Vegas.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Uma gata perfeita

Olhei o descontinho de 42%, respirei fundo e fui.


Mulher-Gato por Ed Brubaker parecia inatingível e, mesmo assim, inevitável. Só conhecia os dois primeiros arcos, publicados pela Panini em Mulher-Gato: Um Crime Perfeito, e já tinha achado o melhor material que li da Selina. Coisas que só a dupla Ed BrubakerDarwyn Cooke faz por você.

Isso foi em 2008. Os tempos mudaram. E os preços também.

Desta vez, a fase está completa e trazendo um selecionado que vai de Mike Allred e Javier Pulido a Sean Phillips e Paul Gulacy. O irônico é que durante muito tempo, achava que o TPBzinho único cobria todo o material... Ignorance is bliss.

Mas que TPBzinho maravilhoso foi aquele.


Tal qual a anti-heroína, a edição era um charme: capa cartão com orelhas e reserva de verniz, papel couché, extras com capas originais, bios e pequenos mimos com informações. Um trampo editorial caprichado do Oggh.

Mesmo após 15 anos, o gibi nunca saiu do alcance da mão. Já o Omnibus-calhamaço de 1080 páginas não consegui nem levantar para a foto.


Na época, deve ter vendido meia dúzia de exemplares. Uma pena. Preferia mil vezes que o run fosse serializado assim.

sexta-feira, 8 de março de 2024

とりあえずさよなら鳥山 !!


Akira Toriyama
(1955 - 2024)

Hoje, meio-mundo acordou tomando susto: se foi o Akira Toriyama. Novo ainda, só seis ponto oito. Ao que consta, o fato se deu no dia 1º e só agora a notícia foi divulgada pelo seu estúdio. Notável. Os japoneses sabem ser discretos.

Desnecessário, mas obrigatório comentar que Toriyama foi um gigante do entretenimento. Sozinho, era um dos maiores expoentes comerciais de mangás, animês e games do mundo. Aquele net worth de US$ 55 mi estimado pelo CBR? Balela. Que um raio me parta se a coisa não passa do 1 bi, fácil. Metade disso só de licenciamentos. Neste exato momento, a notícia varre o globo furando bolhas e nichos como pouquíssimos nomes ligados aos quadrinhos seriam capazes.

Meu contato com a obra do mangaká se resume ao genial Dr. Slump e à brilhante primeira fase de Dragon Ball. E quanto ao estouradaço e quilométrico animê, assisti e reassisti tudo até o GT – que não contou com a participação do homem. Pois é, fui mais um dos abnegados que aguardavam episódios e episódios a fio até Goku chegar de algum lugar distante para arrebentar a fuça do vilão e salvar a pátria.

Teve seus problemas? Teve. Mas Akira Toriyama foi grande.

Bom, talvez não tão grande, mas com certeza garantiu um capítulo só seu lá naquele livro...

segunda-feira, 4 de março de 2024

“Celebrando a vida através da morte”


Foi um início disputado aquele da revista Superamigos, da Abril. Os Novos Titãs de Marv Wolfman e George Pérez, o Esquadrão Atari de Gerry Conway e José Luis García-López, o Batman de Steve Englehart e Marshall Rogers, o Guerreiro de Mike Grell e outros menos cotados. E entre esses menos cotados, um dos quadrinhos que mais me impactaram naqueles tempos de gibizeiro de várzea: o Arqueiro Verde de Mike W. Barr e Trevor Von Eeden. Foi meu primeiro contato com o personagem.

A minissérie em 4 partes foi publicada em Superamigos #6-9 (out/1985 – jan/1986). Saiu lá fora pouco antes, em 1983 e marcava a reestreia do vigilante RobinHoodiano após sua parceria com o Lanterna Verde na histórica fase Denny O'Neil/Neal Adams – talvez o símbolo máximo da Era de Bronze da DC.

Por incrível que pareça, foi a 1ª vez que o Arqueiro ganhava um título próprio desde a sua criação, em 1941. Por tudo isso, poderia ter se tornado um ponto de referência na cronologia do herói e também dos comics da época. Mas, pelo contrário, rapidamente submergiu numa quase total obscuridade. A HQ é pouco comentada por aí e nunca sequer foi compilada pela DC. E olha que eles compilam tudo.

Parte disso, provavelmente, se deve ao lançamento de Ronin na mesma época e do Monstro do Pântano de Alan Moore dali a cinco meses, eclipsando o que quer que fosse àquela altura. Mas não só. Revisitando mais uma vez as edições, saltam aos olhos as perspectivas ousadas, pero herméticas, de Barr e Von Eeden.

É um quadrinho fácil que não se vende fácil.


Na trama, Oliver Queen é convidado para a leitura do testamento de Abgail "Abby" Horton, uma velha amiga de seus tempos de garotão playboy. Para surpresa da família, Abby deixa quase toda a sua fortuna para Ollie, além do controle acionário de seu império, a Horton Química. E para surpresa de ninguém, ele começa a sofrer uma série de atentados, inclusive com a participação de supervilões contratados.

Relutante a princípio, Ollie decide assumir a presidência da empresa para investigar de perto a morte de Abby e o possível envolvimento de seus suspeitíssimos filhos, genro e irmão. Como esperado, acaba descobrindo que existe algo de podre no reino dos Horton.

Se a premissa básica gira entre um novelão do Gilberto Braga e um thriller de Supercine, ela também tece um cenário perfeito para ilustrar a relação entre Ollie e Abby. É uma amizade genuína, doce e bonita de ver, mesmo que em breves flashbacks. Ao mesmo tempo, é a deixa para o roteiro explorar o homem por trás da máscara.

Na verdade, esse é o alvo principal de Barr durante a mini: o próprio Oliver Queen.


Oliver Queen em dia de Frank Castle... pobre Conde Vertigo

Ao levar o Caçador Esmeralda a uma cruzada pessoal, o escritor atualiza seu papel dentro de seu próprio mythos, agora um tanto afastado das ideologias e causas sociais. Há uma ou outra observação sobre a ineficiência do sistema carcerário, um relance solitário de sua dupla com o Lanterna e parou por aí.

Barr se mostra um aficcionado pelos estertores da Era de Prata, conduzindo a história com uma pegada amadurecida daquele período. Só assim para explicar a participação, na reta final, de um vilão tão flamboyant quanto o Capitão Chibata (Cap'n Lash) – ao que consta em sua 1ª e única aparição, com a benção de Jack Sparrow.

Mesmo os eventuais roteirismos, como o fato de (quase) ninguém reconhecer o Oliver por trás de uma mascarazinha dominó e suas trocas de roupa mais rápidas que as do Billy Batson, parecem mais deliberados do que qualquer coisa. Para Barr, não havia nada a ser reparado – no máximo, ajustado – e absolutamente nenhuma Crise seria necessária...

...se é que ele sabia que viria uma muito em breve. E se sabia, passo a admirá-lo ainda mais pela audácia.

O traço de Von Eeden abraça a proposta com som e fúria. Esteticamente agradável, mas longe de oferecer uma narrativa visual comportada. O que não o impede de criar, com o nanquim contido e inteligente de Dick Giordano, instantâneos de sequência-espetacular-do-herói-em-ação.


Não canso de declarar meu amor pela splash page que abre a última edição. É um nirvana de fetichismo super-heróico.

Na maior parte do quadrinho, porém, Von Eeden é pura combustão. Seus entre quadros fluem do convencional ao fragmentado extremo, em sincronia passional com o texto. Em alguns momentos, a sequência de quadros é retorcida ao máximo, com a leitura se dando em modo reverso, tal qual um mangá. O artista, talvez ainda sob efeito de sua porralouquíssima série Thriller anterior, afunda o pé no acelerador sensorial e arrasta junto o leitor para a sua good/bad trip.

É um mestre. Um mestre difícil e caótico, mas ainda um mestre.


No final, após um confronto em alto-mar (com um cameo criminosamente curto da Canário Negro) e das reviravoltas na trama, uma singela cena com Ollie homenageando a memória de sua querida amiga. Sem tristeza ou ressentimentos, apenas amor e gratidão pelo tempo que passaram juntos. É um grande final e fico feliz por Abby nunca ter retornado de seu merecido descanso.

De certa forma, o fato deste recomeço ter sido descontinuado no éter protegeu a aventura das vicissitudes mundanas da indústria dos comics.

Um brinde a isto!

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

À mestra, com carinho

Steven Ringgenberg pens an obituary for one of the first women to draw superhero comics, with standout works throughout...

Publicado por The Comics Journal em Terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Excelente artigo sobre a carreira da Ramona Fradon pelo The Comics Journal. Os trechos sobre a sua passagem-relâmpago pela Marvel (e suas dificuldades com o "método Marvel") e como ela viu a darkinização das HQs nos anos 1980 são sensacionais.

E sigo embasbacado com a pouquíssima repercussão de sua partida entre as quadrinistas mulheres. Tirando as homenagens da Colleen Doran e da Gail Simone, que publicou um belo testemunho, a esmagadora maioria das condolências nas redes sociais é de quadrinistas homens. E olha que procurei.

Faltou respeito e sobrou alienação...

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Com amor, Ramona


Ramona Fradon
(1926 - 2024)

Se foi a legendária Ramona Fradon, do alto de suas gloriosas 97 primaveras.

Uma das maiores pioneiras dos quadrinhos da Era de Prata, embora sua carreira tivesse inciado já entre o pós-Guerra e o pré-Comics Code. Seu primeiro trabalho (não creditado) data de 1949, na Gang Busters #10, da DC. Afirmar que foi uma vida dedicada aos quadrinhos é pouco.

É uma peça fundamental para a representatividade feminina no mundo das HQs. Foi uma das primeiras quadrinistas a se destacarem no mercado mainstream, ao lado de June Tarpé Mills, Dale Messick, Trina Robbins, Marie Severin e de poucas outras corajosas desbravadoras. E numa época em que o machismo e as picaretagens das editoras com os artistas eram a lei.

Meu 1º contato com seu trabalho: Pequenina #9 - Homem-Borracha em Formatinho, da EBAL, lançada no mesmo mês e ano em que nasci. Certamente foi parar em minhas mãos por via de algum escambo com a molecada nos anos 1980. Foi paixão à primeira leitura. O traço cheio de movimento e levemente cartunizado trazia um monte de coisas acontecendo ao mesmo tempo e era impagável. Até hoje. É nítida a sua influência em artistas como Jill Thompson e Amanda Conner.

Fradon também co-criou o Metamorfo, o Aqualad original e a Fogo, a brasileiríssima Beatriz da Costa. Uma agradável honra a nossa.

Não dá pra dizer que foi exatamente uma surpresa. 75 anos de carreira, meu amigo (ela se aposentou no ano passado!). Fazendo o que amava e ainda mantendo o humor à toda prova.

Isso é incrível e maravilhoso muito além das palavras.


Thank you for everything, Ramona Fradon!

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Uma cadáver deliciosa


Uma Morte Horrível é mais uma HQ que jazia nas profundezas da minha pilha de leitura, perdida entre TPBs, HCs, formatinhos e fumettis. Uma injustiça horrível. A bande dessinée (ulalá!) da parisiense Pénélope Bagieu é uma grata surpresa: espirituosa, intrigante e com um toque de agridoce crueldade. Me lembrou aqueles thrillers obscuros exibidos nos Corujões da vida, surpreendendo zapeadores insones com uma trama ligeiramente fora da curva.

...difícil era achar o filme depois, com zero referências naqueles tempos valvulados. Cheguei a fazer pequenas loucuras para solucionar alguns desses mistérios. Outra história.

A obra é o debut da multitarefas Bagieu. Publicada originalmente em abril de 2010, lançada aqui em abril de 2016 e tirada do plástico por um leitor negligente em fevereiro de 2024. Vê como não houve demora?

Não há passado, nem futuro, tudo flui em um eterno presente – Dr. Manhatt... OPA.

A protagonista é Zoé, uma jovem adulta deslocada e sem perspectivas. E um tanto alienada também. Se vira fazendo bicos como hostess e vive com o namorado desempregado e boçal. É o perfeito retrato das gerações pós-millennials-e-lá-vai-ladeira.




É uma HQ que ganha toda a identificação possível já nas primeiras páginas.

Num dia qualquer, Zoé conhece Thomas, um escritor de meia-idade que vive recluso em seu apartamento. Mais do que recluso, Thomas parece cultivar um pot-pourri de agorafobia, antropofobia e que mais tiver de fobias sociais.

Diria que esse encontro é o grande gatilho da HQ.


Amargando um bloqueio criativo aparentemente intransponível, Thomas desenvolve uma relação platônica com Zoé, enfim se reconectando com a inspiração há muito perdida. Apesar de todas as diferenças (e talvez por causa delas mesmo), Zoé é alçada ao posto de Musa. E se reconecta com a felicidade e o amor em versão algo excêntrica.

As coisas se complicam com a chegada de Agathe, uma misteriosa personagem do passado de Thomas.

Pode não parecer, mas esse início SergeGainsbourguiano (desculpa aí o mau jeito) vai se desenvelopando mezzo como tramoia neo-noir, mezzo como o capítulo final de um novelão das 8. Não dá para comentar mais do que isso sem comprometer a história – e olha que já dei um show de contorcionismo até aqui.


É notável como Bagieu consegue equilibrar perfis tão distintos e ainda convertê-los em engrenagens essenciais nas reviravoltas. Soa quase como se tivesse escrito o roteiro partindo do final até o início. Coisa de craque, muito embora ela tenha apelado para uma malandragem elíptica perto da conclusão. Sabe como é, para ninguém antecipar o que vinha chegando.

Coisinhas de marinheira de 1ª viagem. Mas acabei simpatizando com o jeitinho brasileiro francês da opção. Afinal, funciona.

O traço da quadrinista é um cartunizado limpo e econômico, passeando por vários ângulos e sempre ao largo da tosqueira estética – vide as splashs bacanudas das páginas 54, 69 e 83. Inclusive, seu estilo até se aproxima da pegada da Margaux Motin (de Placas Tectônicas). Mais como uma cumplicidade artística do que propriamente uma influência. Se rolasse uma colaboração entre as duas, seria um cadáver esquisito imperdível.

O que me leva à única ressalva sobre a cuidadosa edição da Editora Mino.

Uma Morte Horrível foi lançado originalmente com o título Cadavre Exquis. É uma referência ao jogo interativo homônimo criado por surrealistas franceses em meados dos anos 1920. É bastante conhecido, incluindo em nossa jovem província.

“Baseado em um antigo jogo de salão, Cadavre Exquis – Exquisite Corpse, em inglês – era jogado por várias pessoas, cada uma das quais escrevia uma frase em uma folha de papel, dobrava o papel para esconder parte dele e o passava para o próximo jogador para sua contribuição. A técnica recebeu o nome dos resultados obtidos na primeira execução, ‘Le cadavre / exquis / boira / le vin / nouveau’ (‘O cadáver delicioso beberá o vinho novo’).”

Essa brincadeira/técnica coletiva pode ser aplicada tanto em textos quanto em desenhos.

A tradução brasileira "cadáver esquisito" obedece à tradição parônima que temos ao perceber erroneamente o termo inglês "exquisite" como "esquisito", ao invés do correto "delicioso" com o viés de "sabor refinado/sofisticado". É nóis.

Isto posto, Uma Morte Horrível foi uma opção ainda mais... esquisita do experiente tradutor Fernando Scheibe. A analogia com a história é perfeitamente compreensível, mas também aniquila as várias metáforas possíveis que poderiam ser feitas com o título original.

Pessoalmente, não abriria mão desse cadáver. Que é mesmo delicioso.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Milagre de Carnaval

O Rei Momo não é Santo, mas andou operando uns milagres pagãos durante a Festa da Carne: os crossovers DC-Marvel serão finalmente republicados.

Deu no 13th Dimension.

HUGE NEWS! DC AND MARVEL TEAM-UPS to Get New OMNIBUS EDITIONS This Summer. DETAILS:

Publicado por 13th Dimension em Terça-feira, 13 de fevereiro de 2024


Para registro:

DC Versus Marvel Omnibus collects Batman/Captain America #1, Batman/Daredevil #1, Batman/Punisher: Lake of Fire #1, Batman/Spider-Man #1, Daredevil/Batman #1, DC Special Series #27, Darkseid vs. Galactus: The Hunger #1, Green Lantern/Silver Surfer: Unholy Alliances #1, Incredible Hulk vs. Superman #1, Marvel and DC Present Featuring the Uncanny X-Men and the New Teen Titans #1, Marvel Treasury Edition #28, Punisher/Batman: Deadly Knights #1, Silver Surfer/Superman #1, Spider-Man and Batman #1, Superman vs. the Amazing Spider-Man #1, and Superman/Fantastic Four #1.

DC/Marvel: The Amalgam Age Omnibus collects DC Versus Marvel #1-4, DC/Marvel: All Access #1-4, Unlimited Access #1-4, Bat-Thing #1, Bruce Wayne: Agent of S.H.I.E.L.D. #1, Bullets and Bracelets #1, Challengers of the Fantastic #1, Doctor Strangefate #1, Iron Lantern #1, Legends of the Dark Claw #1, Lobo the Duck #1, Speed Demon #1, Spider-Boy #1, Super Soldier #1, Thorion of the New Asgods #1, X-Patrol #1, and more, plus a treasure trove of behind-the-scenes material.

Estão quase todos aí, incluindo minha adorada-salve-salve Os Fabulosos X-Men e os Novos Titãs. ❤️

A saber: a ausência da HQ-evento LJA/Vingadores.

Chuto que a última deverá vir num busão próprio e do tamanho certo para arrombar ainda mais os arrombados que a vendem por preços pornográficos na internet. Será lindo.

Ps: ok, ok, também não sou fã de juntar tudo num X-Busão sem o menor critério qualitativo. Mas é o que tem pra amanhã.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Whoa, Wade, whoa, Wade, whoa, Wade, whoa, Wade...

...o trailer de Deadpool & Wolverine / Deadpool 3 ficou bom bagarai!


Provavelmente vai pegar um pouco para quem não viu Loki e passou batido pela TVA, mas devem mastigar e regurgitar o conceito em dois minutinhos. Além do mais, após Ultimato, a ideia de multiverso viralizou bolha afora. Fora que nem é nova. Taí o crossover entre os universos Bombril & Bamerindus que não me deixa mentir e ainda entregam minha velhusquice. Sopa no mel para os neófitos.

Confesso que acho a metalinguagem dos filmes do Deadpool um pouco demais, mesmo alinhado com o quadrinho. O problema é que esse "God mode" e a autozueira me impedem de me importar o suficiente com as ameaças que o maluco enfrenta – particularmente em Deadpool 2. Mas é indiscutível que ver algo diferente da fórmula Marvel já dá uma injeção de ânimo na veia. E foi só um trailer.

A pergunta, então, se faz inevitável: Deadpool & Wolverine poderá salvar o Universo Cinematográfico Marvel?

Na minha opinião, o MCU tem sido mais dispensado do que assistido, propriamente. É o "não é você, sou eu" das franquias blockbuster interligadas. Algo previsível e inevitável se não apimentarem a relação. E é aí que entra o Wade Wilson.

Ryan Reynolds nasceu pra isso, sem discussão. Assim como Hugh Jackman – sabiamente não revelado – também já nasceu pra isso, uma vez. Surpreso apenas de rever a Morena Baccarin na série. E foi estranho e muito legal me deparar com o Matthew Macfadyen na prévia. Esse cara é fodão (já assistiu Um Refúgio no Passado, nome merda brasileiro para In My Father's Den?) e completamente estranho nesse nicho. E tem outro nome do elenco registrado no IMDb que só podia figurar nesta produção mesmo. Se não ligar para spoiler, vá lá.

No mais, precisei voltar ao ponto 1:47 só para me certificar de que não era o Victor ali. Que susto. E quero o Troféu Cata-Piolho pelo gibi de Guerras Secretas atirado no chão lá no finalzinho. Fiquei bem curioso para ver como o diretor Shawn Levy (Gigantes de Aço, Free Guy) trabalhou as zilhões de referências dessa gigantesca caixa de brinquedos.

Mas voltando... sim, acho que pode salvar sim.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Que garota maluca...


Cynthia Bonacossa, a Cynthia B., é quase uma 3x4 do quadrinista brasileiro: uma alma inquieta, sagaz e que ri das próprias desgraças com um sorriso doido no rosto. O único porém é que a autora não esteve tão mal na foto. Entre 2009 e 2015, trabalhou com Allan Sieber e em publicações udigrudi como Golden Shower e Pé-de-Cabra, fez tiras para a Piauí, para a Folha e, de quebra, fez residência na Maison des Auteurs, em Angoulême.

Tudo isso e ainda lembrava a Karen O naquela foto de divulgação. Nada mal mesmo.

Daí que Estudante de Medicina, sua estreia autoral, apenas seis anos após pendurar o jaleco de médica para seguir carreira nos quadrinhos, é algo digno de nota. Publicado pela Veneta em 2017, o livro, inclusive, ganhou edição francesa.

Até aí, tudo bueno, tudo azul, com entrevista para o G1 e pá e bola. Mas de lá pra cá, o jaleco retornou da gaveta, vingativo. E foi a vez do nanquim ser pendurado. Ao menos, é o que consta. Brasil pós-2018 não é para fracos.

Estudante de Medicina é um registro semi-autobiográfico de Cynthia no período em que ela cursou Medicina na UFRJ, entre 2006 e 2011. E confesso, é uma HQ que me ganhou já na prévia gratuita... pelos motivos mais escatológicos.


Foi a prévia certa na hora certa. Na época, andava imerso na onda de "vídeos satisfatórios" no YouTube. Mas sem putaria: os vídeos em questão mostram extrações de toda sorte de abcessos, espinhas e cravos tão gigantescos que parece que a qualquer momento vão sair dali e destruir Tóquio. Impressionante a quantidade de trasheiras que se abrigam por baixo da pele.

Em outras palavras, foi amor à 1ª vista. Ou espremida.

Peguei logo que vi. Mas por motivo de pilhadegibis, só li agora. 6 anos para devorar o livro em 1 hora. É uma leitura purulenta/suculenta e divertidíssima.

E um tanto diferente do que imaginei naquela impressão inicial.


A rotina acadêmica pode ser um dos períodos mais complicados na vida de qualquer um – coroando a pós-adolescência, um período já bem pau-no-cu por si só. Com a quadrinista não foi diferente.

Então, o livro acaba priorizando temas mais intimistas baseados em experiências pessoais e/ou de terceiros, a dinâmica caótica dos relacionamentos, dilemas vocacionais, entreveros familiares e pronto, temos aí uma obra coming of age moderninha, extrovertida, morando na Barra e bronzeada pelo sol de Ipanema – não exatamente o Carnaval de vísceras & fluídos humanos que assaltava minha imaginação há anos.

Felizmente, o storytelling de Cynthia é muito cativante. Bem-humorado e salpicado de tons irônicos e autodepreciativos, mesmo quando a homônima protagonista passa por seu momento mais sombrio (sem spoiler). O choque de realidade no finalzinho é, ao mesmo tempo, terno, engraçado e com um puta gosto amargo que me lembrou do final-porrada de A Primeira Noite de um Homem.

Sim, acabei de comparar o gibi com o clássico de Mike Nichols. Nunca me pegarão vivo.


Claro que a coisa toda fica brilhante quando aborda a rotina punk de prontuários, pediatrias e propedêuticas. Ri alto nos perrengues mais, digamos, fisiológico-viscerais e nos bizarros causos hospitalares (o cerumano é muito, muito escroto) – tudo acentuado pelo seu traço "toscomics", que aqui coube à perfeição. Também é difícil não se emocionar com o drama de algumas situações, sempre retratadas com pragmatismo e sensibilidade pela autora.

Daria fácil um Estudante de Medicina 2 - A Revanche só com essas histórias cabulosas de enfermarias e pronto atendimentos.

Sinceramente, é o mínimo que espero se um dia ela pendurar o jaleco mais uma vez.

InstagramFacebookTumblr

sábado, 27 de janeiro de 2024

Colossão de quadrinhos

101.822 itens únicos. É o que fez Bob Bretall entrar para o Guinness como o dono da maior coleção de comic books do mundo.

Kneel before Bob!

Colossal Comic Book collection - Guinness World Records

Meet Bob Bretall: A true comic book enthusiast 📚With an inspiring collection, Bob has earned his spot in history as the ultimate guardian of comics! 🦸‍♂️

Publicado por Guinness World Records em Terça-feira, 15 de agosto de 2023

A conta agora está atualizada em pouco mais de 138.000 peças de picanha quadrinhística. Mas, como sabemos, o mercado americano não leva muito em consideração o que se passa no mundo. E são, leia bem, comic books. O que equivale a um pinguinho perto dos oceanos europeu e japonês de quadrinhos. Devem existir por aí coleções de Tex com acervos maiores.

Porém, realmente é uma marca difícil de se aproximar. O finado Geraldo Cachola deixou, brincando, mais de 250.000 gibis em suas instalações – mas não exclusivamente de itens únicos. Portanto, respect.

É gritante que Bretall é marvete de carteirinha e cartinha publicada. Mas é claro que a Distinta Concorrente tem seu lugar na tribuna de honra. Tremi quando mostraram a coleção completa dos DC Archives. Ouro puro, reluzente e inalcançável.

Me falta pouco mais de 133 mil gibis para chegar lá, mas já guardo algumas similaridades com o modus operandi do mestre:

Sistema de numeração + base de dados = PRATICIDADE.

Dá um trabalhinho para organizar e catalogar, mas isso é uma vez só e o resultado é a Capela Sistina da arquivologia. Ir direto a um gibi/livro/revista específico num catálogo abarrotado é lindo. Em contrapartida, duvideodó que Bretall um dia verá novamente aquela HQ que está lá numa caixa no fundão da garagem. Pior, no fundão e na parte de baixo. Isso só em futuras escavações arqueológicas.

Quanto ao arquivamento per se, confesso que preciso melhorar. Bretall organizou todos os seus gibis de pé, em sacolas, longe da luz, em local seco. Como manda o figurino.


Marvel Comics Guide to Collecting Comics (1982)

E não é força de expressão.

domingo, 21 de janeiro de 2024

Depart... Corregedoria de aquisições


Quando foi publicada pela Panini em agosto de 2022, Supergirl: Mulher do Amanhã foi direto para a lista completa-carrinho – também conhecida como zera-frete. O que foi indigno e burro da minha parte, não precisa me informar. O megahit de Tom King e da talentosíssima Bilquis Evely não apenas varreu o mundo em velocidade warp, como será a base do filme solo da heroína no DCU do James Gunn. É uma Genki Dama de moral quadrinhístico.

Isso me deixou tranquilo para empurrar a aquisição com a barriga por mais uns bons 4 meses. Procrastinei por mais uns 2, com a mini ainda hypadaça e, teoricamente, hors concours no catálogo.

Até que um dia resolvi ensacolar e voilá:

Produto indisponível.

"Sem problema", pensei errado. "Vou à caça e resolvo rapidinho", permaneci no erro.

Da noite pro dia, o encadernado evaporou da web. Esgotou em todas as lojinhas e sebos online, varejistas, marketplaces e até nos maloqueiros deviantes da OLX. Na verdade, só encontrei um único exemplar à venda na Shopee por módicos 310 lulas + frete. Só 227% em cima do preço de capa – o anúncio continua lá.

O jeito foi ativar a notificação no site da Panini, sentar e esperar. Mesmo que isso tenha o efeito de uma supernova na bioquímica de um verme colecionador. E após as sagas homéricas para botar as mãos em O Evangelho Segundo Lobo, Hellboy: Edição Gigante e os dois John Constantine, Hellblazer da Denise Mina, isso seria só mais um passeio no parque. Bom... nem tanto.

Quase 1 ano de espera e nada. O departamento comercial da Panini claramente se inspirou na "estratégia" da HQM no auge da febre The Walking Dead. Mas pelo menos me deu a chance de acompanhar em 1ª mão uma dessas anomalias que testemunhamos de vez em quando em compras online.

Primeiro. nunca subestime a Estante Virtual. Já encontrei relíquias a preço de banana por lá e fui prontamente ressarcido em eventuais BO's. Sempre munido, claro, com a tal da paciência. É basicamente logar, fazer a busca do Graal e pressionar F5 ao menos umas duas vezes por dia. Mágicas acontecem. Dessa vez, não foi diferente.

Da noite pro dia², magicamente surgiram 20 anúncios de Supergirl: Mulher do Amanhã por quase a metade do preço original (94,90). E o mais interessante...


...pelo vendedor Editora Panini.

Ora, já comprei produtos esgotados no site da Panini até por sua conta oficial no Mercado Livre – o que ainda acho esquisito, por desviar tráfego de sua própria loja online e por se tratar de uma plataforma de vendedores, em sua maioria, informais. Mas nunca por preços abaixo de sua tabela. Essa já uma nova modalidade de esquisitice.

Antes mesmo que pudesse jogar o gibi no carrinho, outra reviravolta: o sininho de notificações dá notícias, após uma volta completa em torno do Sol.


Reiterando, isso aconteceu basicamente no mesmo minuto (lembra do F5 psicótico?). Que Olavo de Carvalho renasça das cinzas se eu estiver mentindo.

Respirei fundo e fechei a compra – na E$tante, lógico. Mas antes fiz uns prints para a minha própria sanidade mental. Aqueles 1.100 lulas (e 80 cents) não iriam passam batidos.

Após tantas kryptonitas pelo percusso, Kara chegou voando em Mach 5. Ficaram as dúvidas, mas cavalo (quase) dado não se olha os dentes. Mesmo que seja o Cometa.

E Supergirl: Mulher do Amanhã, neste exato momento, voltou ao seu status anterior. Sumiu da internet. Mais uma vez.


Como se tudo não tivesse passado de um sonho de verão. Realismo mágico é isso aí.