Dizem que a jornada é mais importante que o destino. Só esqueceram de avisar aos cineastas Joe e Anthony Russo. Vingadores: Ultimato entrega tudo que o público médio não-estúpido espera de um blockbuster de qualidade (e mais), além de concluir espetacularmente as três primeiras fases do universo cinematográfico da Marvel Studios. É o auge de um trabalho ousado e faraônico que levou onze anos num projeto inédito até aqui em dimensão, capital humano e conquistas técnicas.
Para um velho leitor de gibis, a recompensa maior é ver na telona vários daqueles conceitos malucos e infilmáveis até há alguns anos funcionando como se tivessem nascidos pra isso. Neste sentido, é o filme mais eficiente já realizado no gênero, com um Taa II de vantagem sobre os demais. Acima de tudo, por entender que não se trata apenas de som e fúria, mas também de coração, altruísmo e sacrifício, a quintessência dos quadrinhos de super-herói desde sempre. Ultimato não cede um milímetro desses fundamentos, em maior parte, veja só, de raiz marvete.
Heróis que são pessoas antes de tudo e com cada um fazendo a diferença no resultado final; uma admirável preocupação pelo estado psicológico geral; tempo e espaço para cada personagem respirar e se redescobrir; narrativa que sabe onde enxugar e o que priorizar; trama imprevisível no ponto de partida, na condução e na conclusão sem reviravoltas mágicas; e tridimensionalidade: cada integrante do núcleo principal, seja herói, vilão ou zona cinza/azul/verde, tem suas motivações pessoais e age de acordo.
É notável como os roteiristas de Christopher Markus e Stephen McFeely, que também assinam Vingadores: Guerra Infinita, conseguem administrar tantos personagens e variáveis. E ainda manter o foco numa premissa complexa para os padrões mainstream e, por isso mesmo, potencialmente desastrosa. De forma sucinta, o roteiro exerce sua lógica interna apoiado em extrapolações simples, cobrindo assim os pontos cegos enquanto leva o espectador para a brincadeira.
No fim, Ultimato não só se apresenta como uma sequência digna para Guerra Infinita, como expande seu conflito e aumenta as apostas.
O filme tem três atos divididos por um exercício de estilo brutal. O 1º terço amarra as pontas deixadas pelo longa anterior em tempo recorde e investe com mão pesada no drama. Num clima funesto, os sobreviventes tentam juntar os estilhaços de um mundo com 50% a menos de seres vivos e todos os estragos decorrentes disso. A 2ª etapa sobe o tom partindo de um princípio bem difundido na ficção pop - mas com uma dinâmica deliciosamente... quadrinhos - e faz uma verdadeira celebração para quem acompanhou os filmes da Marvel todos esses anos. Já o arco final é a experiência Splash Page de George Pérez definitiva. É todo o pay-off e o fanservice que existem no final do arco-íris. Sangue de Kirby tem poder.
Quase todo o elenco principal está integrado ao seu personagem-avatar num nível Christopher Reeve-é-o-Superman de conversação, além de apresentar suas melhores performances até aqui: Jeremy Renner zera o até então subaproveitado Gavião Arqueiro num bem-vindo acerto de contas com o roteiro, Karen Gillan extrai ainda mais camadas da hermética Nebulosa, Paul Rudd precisa fazer muito em muito pouco tempo e o Homem-Formiga dá conta, Scarlett Johansson se atira, literalmente, na evolução de "Nat" Romanoff, o Capitão América de Chris Evans é a melhor personificação do herói clássico que poderíamos ter hoje e Robert Downey Jr. fecha o ciclo com a redenção do personagem de sua vida.
Chris Hemsworth, por sua vez, tirou a sorte grande. Thor foi um dos poucos que mantiveram uma saga própria nos dois filmes. Em Ultimato, confesso, o susto inicial foi grande, porém coerente. Plus: agora sim o loiro está parecendo um Viking.
E a Situação-Hulk. Personagem que a Marvel Studios penou para achar o tom na telona, algo que só aconteceu em Thor: Ragnarok, quando já era tarde demais para qualquer pretensão cinematográfica do Golias Esmeralda & mitologia. A expectativa por uma virada foi lá pro caixa-prego após a ignorada sistemática em Guerra e agora, em Ultimato.
Pensando bem, isso já vinha sendo estabelecido desde Vingadores: Era de Ultron (2015), com a infame derrota do Verdão para o Hulkbuster (Hulkbusters e esquadrões Caça-Hulk existem para serem esmagados pelo Hulk, oras!). Seus poderes nos gibis nunca foram adotados pelo UCM: nada de saltos quilométricos, palmada sônica, fator de cura e o mais importante e muda-vidas, o "quanto mais furioso, mais forte o Hulk fica". O que sobrou é um Hulk limitado e em estado de calma - em Ultimato, em estado de calma baiana. Mark Ruffalo é um sujeito boa-praça, mas nem de longe é um Dr. Bruce Banner. A trama ainda dá alguma continuidade à sua cronologia nas HQs, despejando o personagem direto na fase do Hulk inteligente, o que resulta apenas e tão somente num Ruffalo Verde. Um Hulkffalo.
Paradoxalmente, é dali que sai uma das referências mais bacanas aos quadrinhos - a clássica imagem do Hulk em Guerras Secretas. E outras, que não sei bem se foram referências de fato ou apenas dissonâncias em minha cachola de gibizeiro: o Verdão doando o braço em Planeta Hulk, a aventura espaço-tempo-apoteótica de Vingadores Eternamente, o "1" do Dr. Estranho para Tony Stark paralelo ao timing de Adam Warlock para o Surfista Prateado em Desafio Infinito, Steve Rogers e Gail no final de Supremos 2 e por aí vai. Essas vieram fluídas e precipitadas como lembranças de velhos amigos. E eu agradeço ao filme por isso.
Surpreendente mesmo foi o resgate de dois grandes personagens por dois atores maiores que a vida: Tilda Swinton reprisando a Anciã e Robert Redford novamente como Alexander Pierce. Redford já havia encerrado a carreira em meados de 2018, mas voltou atrás no final do mesmo ano. Esqueça a mera condição de filme-pipoca. Isso já é cinema grande, meu chapa.
Josh Brolin pode não ter percebido ainda (ou é modesto demais para admitir), mas acabou por personificar um dos maiores vilões do cinema. Thanos é fascinante, perspicaz, tem a sua cota de honra distorcida e acredita piamente que está do lado certo da História. Ameaçador e absurdamente poderoso, Thanos protagoniza, fácil, as melhores e mais engenhosas lutas super-heroísticas já feitas até aqui. Mesmo a Capitã Marvel de Brie Larson - um tanto deslocada pelos cameos pontuais - teve seus melhores minutos numa telona, incluindo aí seu filme solo. O ponto alto, claro, é sua frenética e nervosíssima luta com o Titã Louco.
Há pelo menos uns três ganchos antológicos durante a luta de Thanos contra a "Trindade" - também conhecida como Vingadores Primordiais. E fazia tempo que não via uma sala de cinema virando uma arquibancada em final de campeonato. Especialmente no momento "Capitão, o Digno". Memorável.
Quando Jim Starlin criou Thanos no início da década de 1970, a gênese do Titã não indicava uma carreira muito promissora. O autor mesmo comentou: "Você pensaria que Thanos foi inspirado em Darkseid, mas não era o caso quando eu o apresentei. Nos meus primeiros desenhos de Thanos, se ele parecia com alguém, era com Metron. (...) Roy (Thomas) deu uma olhada no cara com a cadeira ao estilo Metron e disse: 'Aumente esses músculos! Se for para roubar um dos Novos Deuses, então roube Darkseid, o único realmente bom!'"
45 anos depois, Thanos está mais vivo do que nunca, coletando Jóias do Infinito em blockbusters bilionários e se tornando uma referência pop no mundo inteiro. E o que é mais incrível: adaptado sem comprometer sua personalidade. Pra mim, que li e reli as sagas de Thanos infinitas vezes, isso é muito além de um presente.
Toda a sequência final reservada ao personagem é sob medida. O momento da transição do Thanos ambientalista para o Thanos niilista é de arrepiar. Era o passo que faltava para o... Dark Side. E ainda corrobora os pensamentos de Jim Starlin sobre uma futura abordagem da Senhora Morte, a convidada que faltava. Promissor como parece.
Já se vão onze anos desde que saí daquela sessão de Homem de Ferro com um enorme sorriso no rosto e a cabeça fervilhando em pensamentos. Alguns viraram texto; outros, atrelados a uma certa melancolia por tempos idos, foram para o mesmo cantinho da memória que já serviu de palco para grandiosas batalhas emprestadas das páginas dos gibis. Eu sabia que ali era o máximo que o cinema real se aproximaria dos quadrinhos e estava mais do que satisfeito com aquilo. Filme após filme, desafio após desafio, a Marvel Studios foi superando aqueles limites - em maior ou menor grau e com resultados variáveis, mas sempre com bom senso, respeito às duas artes e, principalmente, coração.
Vingadores: Ultimato é sangue, suor e lágrimas. O ápice de uma autêntica odisséia cósmica (epa!) e o registro de que um dia duas formas de arte chegaram tão perto que quase convergiram.
Mesmo sendo o mais épico, ambicioso e visualmente deslumbrante, claro, não é um filme perfeito. Capitão América: O Soldado Invernal (2014) segue no topo da minha lista. E ainda tenho um carinho todo especial por Os Vingadores (2012) pelo impacto sobre este leitor ad eternum de Heróis da TV. Junto com Guerra Infinita, Ultimato habita n'algum lugar no éter entre esses dois.
Algo a se avaliar com o tempo. E com sessões infinitas.
8 comentários:
Disse tudo meu amigo!
Oito décadas de HQ e 22 Filmes.
épico demais.
O filme é um presente pra quem curtia HTV, SAM... e pra todo mundo que gosta de diversão com qualidade.
Joe e Russo atentos ao mestre S.L. "uma história sem uma mensagem, mesmo que subliminar, é o mesmo que um homem sem alma"
Sangue de Kirby tem poder!
Abraços.
Fala aí, Samurai!
Grande citação. Uma lição que infelizmente - e estou sendo sincero demais - a Distinta Concorrente não assimilou.
No fundo, eu esperava por esses filmes desde que folheei meu 1º gibi (Hulk #12, da Abril)!
Por mim, eu já estou satisfeito. O que vier pela frente é lucro.
Abração!
Que bela resenha. Uma escrita com o coração.
Por alguns minutos me senti no cinema de novo.
Eu estava pensando que talvez tenha sido uma pena matarem o Titã mas pra uma certa senhora morte nada é impossível. Falando em morte ainda não consegui montar as peças na minha cabeça de como e por quê o Caveira Vermelha foi parar naquele planeta da jóia da alma.
E aí, Vinícius!
Valeu, cara. Rabisquei esse numa tacada, logo depois da estreia. Não tem nem spoiler, rs. Postei mesmo depois de ver pela 2ª vez, só pra ter certeza.
Ao meu ver, uma volta do Titã pelas mãos da Senhora Morte seria o passo definitivo para a versão das HQs. Fora que isso abre o precedente para todo o cast de entidades cósmicas/conceituais da Marvel: Mefisto, Eon, Caos & Ordem, Intermediário, Eternidade, Tribunal Vivo!
Sobre o Caveira Vermelha:
No final de Cap 1, o Caveira foi tragado pela implosão do Cubo Cósmico, que na verdade era um receptáculo para a Jóia da Alma (assim como o Tesseract era o receptáculo da Jóia do Espaço). Em "Guerra Infinita", ele revela a Thanos e Gamora que a Jóia o baniu para Volmir, para servir de guia a todos que "buscavam um tesouro que ele jamais poderia ter".
Poesia pura!
Abração!
Minha saga pessoal nos dois filmes, indubitavelmente, é a de Thor. Em Guerra, ele deixa para trás a palhaçada esteticamente linda de Waititi e entrega o que é - na minha opinião, claro - o melhor diálogo* de todo o MCU até aqui. Sobre uma vida de milênios e sua perspectiva sobre as perdas que sofreu ao longo da sua timeline. É o Odinson zombeteiro com o néctar de cevada Jason Aaroniano. Eu bebi/bebo a isso.
(*) https://www.youtube.com/watch?v=Mo1fBqQpzC0
E em Ultimato, embora o que tenha ficado gravado em pedra, para a maior parte da audiência, foi o momento Big Lebowski... o meu foi testemunhar sua inadequação com a amarga derrota sobre Thanos e, mais que isso, a culpa por seu momento de orgulho catártico, afinal, poderia ter finalizado o Titã não fosse o seu desejo de que o vencido olhasse os os olhos do seu executor. Talvez, de fato ele tenha mesmo se tornado indigno em algum momento entre seu retiro e o reencontro com a mãe em Asgard.
No fim, ahhh, o fim... Naquele morrinho, com os Vingadores Primordiais, fitando Thanos sentado: "- Vocês sabem que é uma armadilha, não é? [...] Ótimo!". Um Thor com barba trançada, sem bodybuilding e muita atitude. Se um cisco caiu, acho que caiu ali.
Belo texto, parceiro.
P.S. Sobre o timing do Norrin, publiquei semana passada: http://osescapistaspodcast.com.br/2019/05/29/os-escapistas-16-surfista-prateado/
Modéstia à parte, tenho muito orgulho do serviço aqui.
Abraço.
Aprendi a ler com Os Três Porquinhos, na escolinha, e Vingadores, em casa, que meu pai ganhou abastecendo em um posto Shell, graças a uma promoção que rolou na época (primeira vez que personagens da Marvel foram publicados no Brasil - ops, entreguei idade!). De lá pra cá tenho acompanhado (ou não, dependendo da época), a trajetória desses personagens durante décadas a fio, o que já dá pra ter uma noção da familiaridade quase fraternal que tenho com esses seres de papel e tinta, e agora celulóide. Então, fica realmente difícil qualificar a catarse e o impacto emocional desses dois últimos filmes, a quantidade de momentos antológicos e a profunda admiração pelo trabalho não só dos diretores mas de todos os envolvidos, Kevin Feige à frente. Dá vontade mesmo de morar no universo Marvel, mas testemunhar isso na tela já é uma recompensa gigantesca pra quem lia e se empolgava com essas histórias que ninguém prestava atenção. E de novo tenho que repetir que suas críticas tem mais conhecimento de causa, coração, estilo e abordagem criativa que 99% do material que a gente vê por aí, e olha que o que tem de matéria clickbait desse filme não tá no gibi (ops, entreguei idade de novo). Valeu Doggma, por colocar em palavras o que todos nós provavelmente sentimos mas não temos talento suficiente para escrever.
Salve.
Bela resenha parceiro e ao meu ver sinto que como fā de quadrinhos desde pequeno (ja passaram decadas) me sinto contente em afirmar que o fā service foi entregue c/ sucesso. Sai 2x extasiado e poderia como disse Steve : "Posso fazer isso o dia inteiro."
Fala, Luwig!
Da conversa do morrinho em diante é zênite, êxtase, apoteose, nirvana, infinitos etc.
Por isso que considero o final do Cap pra lá de merecido. É um sujeito que, parafraseando o Roy Batty, viu "coisas nas quais vocês nunca acreditariam".
O momento do Thor desabafando com Rocky em "Guerra" é meu preferido dele também. Introspecção pura. Pela 1ª vez conseguimos ver o peso (e o preço) da longevidade do Odinson. Fora a dinâmica de brodagem entre o Deus do Trovão e o... guaxinim. Só a Marvel mesmo.
Opa, vou já conferir o Pod Prateado. Esse promete!! Abração!
* * *
E aí, Bernardo!
Para um leitor da velha escola, é difícil mesmo não ficar comovido com esse grande Omnibus cinematográfico da Marvel Studios. É muito recompensador após tantos anos (décadas!) de dedicação, dificuldades diversas para manter o hobby, afastamentos, voltas e por aí vai.
Chegou a ganhar uns gibis Super Heróis Shell? Caramba, tu é... experiente! :D
Abraço!
* * *
Ei, Marcelo! Beleza?
Também fui ao cinema duas vezes e só não fui uma 3ª pra não gastar o filme na minha mente, rs. Mas estou quase abrindo uma exceção pra ajudar a desbancar aquele "Avatar" marrento lá do topo.
Abraços!
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