Chegamos à meia-temporada de
The Walking Dead e não foi nenhuma evisceração, nem algum zumbi carcomido que me deixou mais aterrorizado. Foi o
artigo do Hollywood Reporter sobre a saída misteriosa de
Frank Darabont da série e as desastrosas intervenções da
AMC para esticar a margem de lucro. Algo polemizador, mas com análises e especulações bastante pertinentes, o texto pinça um cenário de horror nos bastidores. Elenco atônito com a dispensa do
showrunner, cortes radicais no orçamento e polêmicas em torno da equipe criativa. Nem parece que a série é o
maior hit da casa, superando até os números mais otimistas - os outros dois grandes da AMC,
Mad Men e
Breaking Bad, nem arranharam a lataria. Ao que tudo indica, a raiz do problema parece ser os imbróglios financeiros da própria network que entraram em conflito com Darabont e resultaram na saída do mesmo. E nesse ponto, a malversação de verbas no
final da primeira temporada não contribuiu em nada.
O que me leva a concluir que a adaptação teve que se adequar ao modelo enxuto de produção imposto pela AMC. A primeira medida foi cortar direto na carne necrosada: menos zumbis povoando os episódios, mais drama e tensão entre os humanos. Pular o arrepiante arco no condomínio
Wiltshire States e antecipar a estadia dos sobreviventes na fazenda de
Hershel Greene foi o passo seguinte para diminuir custos. Sem mais aquele grupo de desesperados pegando a estrada enfurnados num trailer fedorento, passando fome e sede, sem dormir, sempre fugindo de hordas de mortos-vivos e ainda penando num inverno de lascar - que aliás, seria um detalhe importante (e caro) na trama do condomínio.
Ainda que esse arco não seja essencial para a saga, é importante sob o aspecto psicológico. É um intensivão de tudo aquilo que
The Walking Dead trata e do que os protagonistas tanto temem: sobreviver em condições subumanas e zumbis doidos por um naco de carne. Eles deviam passar por isso antes de chegarem à fazenda. Tornaria sua angústia em permanecerem lá mais palpável, tridimensional. Ou, no mínimo, colocaria nosso amigo
Shane mais próximo de seu fatídico ponto de ebulição. Fora que evitaria a barrigada narrativa que eventualmente se formou ao longo desse primeiros 7 episódios.
Mas deixando de lado a panfletagem e o radicalismo fanboy, rapaz... a temporada estreou em alto nível.
Pelo visto, colocar o protagonista se esgueirando embaixo de algum veículo abandonado é uma constante promissora na série. Dessa vez foi o
elenco principal inteiro ralando o peito no asfalto enquanto uma manada de zumbis fazia sua marcha pela fome. A sequência é de jogar o miocárdio num barril de Red Bull e desde já uma das mais nervosas e divertidas já produzidas por uma série de TV. Mesmo que você me pergunte
"mas peraí, de onde vieram todos aqueles zumbis?", eu daria ao menos umas três alternativas bem satisfatórias e seguiria para o próximo tópico.
O episódio segue criando cenas de
forte apelo, novamente superando o material original com o
cliffhanger trágico do
Carl e definindo o perfil de alguns personagens dali em diante - mais notadamente o presunto ambulante
T-Dog (se machucando sozinho e sangrando em bicas) e o senhor de todas as fodezas,
mr. Badass-Redneck-with-a-Fucking-Crossbow Daryl.
O segundo capítulo é quase todo calcado no drama da família Grimes e a taxa de zumbis/m² despenca. Só aumenta no clímax eletrizante com Shane e
Otis encurralados na escola por uma turba putrefacta. Para os leitores da HQ, o episódio também reservou uma redenção em especial: Hershel e
Maggie, em carne e osso. E aí bate novamente aquela sensação meio onírica e surrealista, provavelmente a mesma de ver justas personificações de Yorick, 355, agente Graves, Jesse Custer, Leo Patterson. Jessica Jones. É um espetáculo à parte ver personagens marcantes transpondo as dimensões ficcionais. Quase dá pra ver as rachaduras na
4th wall. E isso não tem nada a ver com atuações dignas da Palma de Ouro. É a empatia que conta.
Os episódios seguintes se dividem entre a recuperação de Carl, o início do relacionamento de
Glenn e Maggie, o segredo de
Lori, o clima desconfortável entre Hershel e o grupo de sobreviventes, a crescente desestabilização de Shane e, claro, as incessantes buscas por
Sophia. Muito do clima de terror agregado ao tema da série é colocado em 2º ou até 3º plano, dando lugar à extensos
build ups dramáticos e alívios cômicos ou emocionais. Todos relevantes e bem conduzidos, mas com uma consequência imediata que remete à sangria orçamentária explicitada lá no início: a escassez de
zombie action.
A economia ficou evidente no episódio 4,
"Cherokee Rose", com o surgimento das criaturas se dando de forma singular e, digamos, concentrada, numa espécie de compensação em moeda
splatter.
O que é um deleite para os olhos durante uma lauta refeição em algum boteco pé-sujo - porém não o suficiente para espantar a sensação de que a fazenda por vezes se torna um improvável oásis para os personagens.
Só pra ficar num exemplo recente, uma das (várias) coisas negativas da série
Falling Skies - ambientada no mesmo formato pós-apocalíptico com ameaças monstruosas à espreita - é justamente ver os protagonistas convivendo, brincando e fazendo planos num território neutro (no caso, uma escola), tranquilos, à luz do dia. É uma zona de conforto que destoa das circunstâncias e que se repete em
The Walking Dead.
Talvez a narrativa do arco simplesmente não deslanche na TV tão bem como na HQ, onde tudo é minimalista por natureza. Ou talvez eu esteja mal-acostumado com os humanos vivendo como ratos (e
comendo ratos) na franquia do
Terminator.
Se na 1ª "temporada" as impressões já haviam sido positivas, nessa 2ª, Daryl está sendo a grande revelação. Interpretado à perfeição pelo ator
Norman Reedus (o Scud, de
Blade II, é mole?), o personagem, além de ser o mais esperto no trato com mortos-vivos, tem ganhado uma bem-vinda complexidade. Não por acaso, o episódio
"Chupacabra" foi um dos melhores até aqui. Com um
cameo especialíssimo de
Michael Rooker, Daryl mergulha numa autêntica
bad trip hillbilly pontuada pela aparição de seu irmão, o Governad... aham,
Merle Dixon. Um excelente e intenso momento-solo. Ou,
nas palavras do próprio Reedus, "
Amargo Pesadelo encontra Motörhead".
Alternando um pouco o ângulo sobre o personagem, cabem algumas considerações. Daryl é um caçador e rastreador, um sobrevivente nato. Come esquilos crus como se fossem doritos. Obviamente é o tipo de pessoa que qualquer um iria querer ao seu lado numa situação daquela. Também é um personagem criado especialmente para a série, ao passo que um elemento muito importante nos quadrinhos ainda não deu qualquer sinal de vida na telinha:
Tyreese.
Aos que acompanham a HQ, desnecessário dizer o quão Tyreese é um dos personagens mais queridos e carismáticos criados por
Robert Kirkman. A despeito da
boa probabilidade que o autor havia dado para sua inclusão ainda nessa temporada, nada é muito certo desde que as coisas andaram tumultuadas na coxia. No cast publicado no IMDb para esta temporada, por enquanto, nada feito.
Responsável por várias sequências de cair o queixo, Tyreese faz o tipo
badass motherfucker na mesma escala de Daryl. Caso ele apareça, certamente irá arrancar elogios dos espectadores incautos. Caso nunca apareça por uma união de fatores (redundância + corte de orçamento), Daryl poderia naturalmente assumir os seus passos na série, como vem fazendo, aliás. Quem sabe até concluir a sua saga de maneira ainda mais perturbadora que o próprio Tyreese na HQ.
Daryl, de joelhos em frente à prisão... será?
Jeffrey DeMunn e
Jon Bernthal renderam um dos embates mais bacanas da série como Dale e Shane, respectivamente. O veterano DeMunn, presença assídua na filmografia de Darabont, não só consegue capturar todas as nuances do sensato Dale, como o sintoniza ao seu próprio método de atuação. Literalmente roubou o personagem. Do outro lado da balança, o ótimo Bernthal faz um destilado de puro instinto e reação. É notável a degradação moral de Shane indo sistematicamente de encontro a Dale, sua antítese imediata. É algo que nunca ocorreu nos quadrinhos e que certamente deve ter sido um dos grandes arrependimentos de Kirkman - que, na função de produtor executivo, está ganhando a chance inacreditável de lapidar a sua obra enquanto bate recordes de audiência. Sem brincadeira, o sujeito deve achar que está num sonho.
Andrea, por sua vez muito bem representada por
Laurie Holden, chegou a protagonizar uma cena de sexo com Shane num lance inexistente nos quadrinhos, mas ao meu ver muito bem sacado (afinal, foi a gota d'água para Dale). A forma como a atriz transita por sentimentos diametralmente opostos, como fragilidade/frieza, é impressionante. Preciosismo cênico de encher o olhos, embora não seja surpresa pra quem se lembra dela como a inesquecível Marita Covarrubias, dos bons tempos de
Arquivo X, e como a agente Olivia Murray, em
The Shield.
Sobre o sul-coreano
Steven Yeun há pouco a se comentar. O cara é o próprio Glenn esculpido em cerâmica oriental. Parece até que Kirkman se baseou nele para o personagem da HQ. E é o ator mais sortudo da série, visto que Maggie é interpretada pela delícia cremosa
Lauren Cohan (a mercenária Bela, de
Sobrenatural). A química dos dois ainda é apenas razoável, já que seus personagens têm perfis muito diferentes. Bela... ou melhor, Maggie tem um gênio bem mais forte que nos quadrinhos, enquanto ele mantém o mesmo tom passivo do original.
Apesar disso, a dupla tem se afinado nas cenas mais recentes e alguma evolução já desponta no horizonte, com direito a Glenn no
zombie massacre mode.
Ah, o amor pós-apocalipse zumbi é lindo.
A atriz
Sarah Wayne Callies, em contrapartida, carrega um enorme fardo nessa série. Lori Grimes é a típica personagem sofrida de drama pesado, enrolada numa teia infinda de segredos, conflitos maritais e maternais e outros dilemas sem qualquer solução razoável. Era exatamente assim na HQ e no entanto foi dela o momento mais chocante de toda a saga. Nos créditos finais de cada episódio deveria haver uma menção especial abaixo do nome da atriz: "há um
build up em andamento aqui,
fellas. E o
payoff vai te deixar com as pernas bambas".
Na mesma tocada,
Melissa McBride também lida com sentimentos pra lá de tortuosos como
Carol, a mãe de Sophia. É um papel difícil, visceral, não tão fácil de assistir, mas que ela conduz com perícia ímpar. Como
ela mesma disse, interpretar Carol
"é como presenciar uma batida de carro". No mínimo.
Já
IronE Singleton tem poucas ferramentas à disposição. Seu Theodore "T-Dog" Douglas é um personagem irrelevante que precisa morrer violentamente o quanto antes. O mesmo vale para os coadjuvantes da família Hershel, praticamente invisíveis.
Quanto ao garotinho
Chandler Riggs, o Carl, parafraseio um amigo:
"não dá pra esperar muito de um ator criança assim, mas pra mim tá ótimo". Leia num tom menos rabugento e é isso aí.
Já expressei minha admiração pelo trabalho do britânico
Andrew Lincoln antes, mas não dá pra não repetir a babação. Muito magro neste
mid-season, o ator está imerso no protagonista
Rick Grimes. Mesmo descontando os suportes de make-up, efeitos, luzes e o escambau, é visível o estado precário de Rick. Especialmente após ele doar 99% do sangue para salvar a vida do filho. Parecia que o homem ia desmontar a qualquer momento em cena. Performance entregue e impressionante, na escola punk rock de De Niro e Christian Bale. Narrativamente, porém, acabou sendo apagado pelo pró-ativo Shane. Rick continua sendo um líder?
E Hershel Greene. É quase certo que o experiente
Scott Wilson nunca nem passou na frente da revista (estou no aguardo pela entrevista no blog da série), portanto é fabuloso como um ator com esse perfil tradicionalesco tenha comprado a premissa com tanto fervor. Soa um tanto menos rústico e austero que na HQ, mas a elegância e sobriedade que ele empresta ao personagem justificam qualquer coisa. Quem não se emocionou com o seu semblante arrasado no clímax do episódio 7 é porque teve o coração devorado por um zumbi há muito tempo.
A fazenda de Hershel também foi palco de uma das grandes questões de
The Walking Dead: a real condição dos zumbis. Estariam mortos de fato ou gravemente enfermos? Há cura? Kirkman assimilou esse item da mitologia comum em torno das criaturas, que remonta ao folclore haitiano original. Homens sendo envenenados com extrato de datura, declarados clinicamente mortos, enterrados vivos, desenterrados e, induzidos a um estado de transe, escravizados por algum mestre bokor - Wes Craven fez um filme ótimo sobre isso,
A Maldição dos Mortos-Vivos.
Da mesma forma que na HQ, a discussão é apenas superficial. Compreensível, já que sobrevivência é a ordem do dia. Mas recapitulando o polêmico arco do CDC, algumas das críticas apontavam que aquela explicação científica acabaria com a ambiguidade da questão, que seria abordada mais tarde no plot do celeiro de Hershel.
Bobagem. Se a ideia inteira do CDC foi ruim, não foi por isso. Nenhuma das informações divulgadas pelo cientista representou uma reviravolta na mitologia dos mortos-vivos.
Na verdade, foi apenas uma versão moderna daquilo que
George A. Romero já havia exposto (literalmente) numa cena didática do filme
Dia dos Mortos, seu clássico de 1985.
Pra mim parece mais um dos tributos de Darabont ao
Godfather of all Zombies. Não sei quantos mais destes serão presenciados até seus derradeiros trabalhos frente à série, mas tomara que
Glen Mazzara, o novo
showrunner, mantenha a tradição. E o respeito.
E que conclusão surpreendente. Nem me importa que tenha se afastado, e muito, do que aconteceu nos quadrinhos. Aquele clímax foi The Walking Fucking Dead até a medula. Minha maldita ficha só caiu mesmo quando a trama assim o quis. E isso é mais do que posso dizer da maioria dos roteiros que pululam por aí. Sem redenção às portas do inferno, deixai toda a esperança vós que entrais, quando não houver mais lugar no inferno os mortos vagarão pela Terra, dance with the dead in my dreams listen to their hallowed screams e tudo o mais. Compensou? Pra caralho.
A série retorna no episódio
"Nebraska", no dia 12 de fevereiro, em pleno carnaval, a festa da carne. As apostas estão estratosféricas. O caldo que tinha que entornar na fazenda já entornou. Shane já está "no ponto". E alguns ajustes não fariam nada mal. Minha sugestão: mais Rick Grimes, mais zumbis, mais urgência, mais baixas.
E se não for pedir muito, uma pequena escala num certo condomínio antes do provável
cliffhanger final dessa temporada...