quinta-feira, 16 de maio de 2024

De volta à terra do Never


Às vezes me sinto como aqueles cachorros que vivem perseguindo porcos-espinhos – e, invariavelmente, se dão mal.

Então, Nathan Never, o herói sci-fi da Bonelli, finalmente voltará a ser publicado no Brasil. E novamente via Catarse, só que desta vez pela editora Futuro. Editora esta, que, até 2ª ordem (ou 1ª publicação), é uma daquelas incógnitas.

A Futuro é ligada ao site Spider145 (você já deve esbarrado com ele por aí, divulgando lançamentos da Panini, Mythos, DarkSide, etc), cujo dono é Carlos Costa, o "Spider", da defunta e, nos seus estertores, malfadada editora HQM. O mesmo Spider que no ano passado tentou publicar Cerebus, do polêmico Dave Sim, sem sucesso.

E o mesmo Spider que, também no ano passado, rendeu um dos fios mais cortantes do X-Twitter, que carinhosamente apelidei de Fio da Navalha”. Segura minha cerveja, Sonia Abrão.

Olha... fiquei um tempão olhando para aquele Catarse antes de decidir apoiar. Foi um brainstorming psicótico no departamento mental de aquisições. A proposta da Futuro é dar continuidade ao volume da finada editora Graphite. Aquela, que foi ali na esquina comprar cigarros com a grana arrecadada no Catarse e sumiu no mundo sem dar satisfações (ai, minha Legs Weaver e meu Nathan Never Vol. 2). Mas é preciso reconhecer uma coisa sobre a Graphite: suas edições eram bacanas. Acabamento, diagramação, letreiramento, mimos, tudo uma uva. Até o tal papel pólen bold, do qual não sou muito fã, envelheceu bem.

Admito que essa impressão positiva residual foi um fator de peso. Isso, mais o plano da Futuro em seguir a numeração com quase os mesmos padrões de publicação – uma estratégia arrojada da velha escola, vide Tex na Vecchi-Globo-Mythos e as Coleções Don Rosa e Carl Barks na Abril-Panini. Outro detalhe importante é a parceria com as competentes editoras 85 e Saicã, que contribuem nos kits de recompensas. “Diga-me com quem andas...” é isso aí.

Mas o Voto de Minerva foi incontestável: a sensacional Lilian Mitsunaga no letreiramento. Essa desempata qualquer jogo.

Apesar disso tudo, o Catarse de Nathan Never Vol. 2 atingiu menos da metade da meta. Menos mal que a campanha era flexível. A previsão é que o trabalho de impressão comece hoje, 16/05/2024, e vá até 16/06/2024. Os envios começam em 17/06/2024.

Tomara que não vá morder outro porco-espinho desta vez. Oremos a São Bonelli. 🙏

sábado, 11 de maio de 2024

Adeus ao Pontífice


Roger William Corman
(1926 - 2024)

Se foi o lendário Roger Corman. É o que se pode chamar, sem reservas, de fim de uma era.

Chega a ser surreal a importância do homem para o cinema mainstream, para o cinema independente e até para o cinema extra-Hollywood, o infame "cinema estrangeiro". A lista de cineastas e astros que ele mentoreou, influenciou ou simplesmente lançou não tem equivalente. Uma conferida nos talentos em início de carreira dos filmes que produziu já dá uma ideia do escopo.

Também não existia limites para a variedade de gêneros e baixos orçamentos com que trabalhou. De fato, era o “Papa do Cinema B”.

Uma das minhas edições prediletas do delicioso Closet Picks, do canal da Criterion, foi com ele, no final do ano passado. Sua seleção de filmes é maravilhosa, mas o que rouba a cena mesmo são os causos.


E isso era outra coisa que ele tinha em quantidade inigualável...

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Godzilla Plus One (Million)


Godzilla Minus One talvez seja o maior retorno às raízes de Godzilla desde, bem, Godzilla, de 1954. Inicialmente criado como uma metáfora às bombas nucleares – lembrando que o Japão levou duas delas apenas 9 anos antes – e à perseverança humana sob os cenários mais adversos, a franquia do Rei dos Monstros revela muito sobre aquele povo e seu ethos. Quiçá, sobre o resto do mundo.

Se pegar King Kong, de 1933, como contraparte, vira tese. Diante da sua criação, os cowboys do velho oeste se portavam como... cowboys do velho oeste. Vieram, viram, venceram e não se fala mais nisso. Vinte anos depois, o país do sol nascente não só adotava o subgênero, como o reinventava, expandia e colocava seus titãs para fazer de Tóquio um octógono.

Era patente a diferença nas abordagens: Hollywood abatia a tiros os monstros que ousavam atentar contra o american way, varrendo pra baixo do tapete toda a sua verdade inconveniente; o Japão os reverenciava como uma força da natureza, imparáveis, onde as únicas opções eram correr ou ser pisoteado. Era um fantasma que não dava para exorcizar – no máximo, dava para se adaptar a ele.

Isolados os devidos traumas do pós-Guerra, seria a cura pela destruição-reconstrução-repetição? Só o Dr. Gori explica.

O filme passa longe de toda a filosofia de boteco e trata suas reflexões com peso, dramaticidade e, diria até, bastante ousadia em se tratando da honorável Toho Studios. Méritos de Takashi Yamazaki, diretor, roteirista, supervisor de efeitos especiais, contrarregra, ascensorista, zelador, cozinheiro, encanador e flanelinha do filme. Embora não seja das tarefas mais fáceis, o cineasta não hesita em ir fundo nas antigas feridas.


Ryunosuke Kamiki interpreta um protagonista pra lá de improvável, o ex-piloto kamikaze Shikishima. Vagando por um país moralmente derrotado e estruturalmente arrasado, aos poucos ele vai reconstruindo a vida ao lado da jovem Noriko e da bebê Akiko, duas sobreviventes igualmente sozinhas em meio ao caos. Ironicamente, Shikishima passa a ganhar a vida num serviço mortal: recolher e/ou detonar as milhares de minas americanas que agora flutuam pelos mares japoneses. Não demora até eles toparem com algo muito pior vindo das profundezas do oceano.

A trama básica coexiste com o subtexto denunciando os efeitos catastróficos das ações do homem na natureza, um tópico obrigatório na série e desgraçadamente atual. Mas um aspecto que salta da tela logo no primeiro terço do filme é o forte tom de autocrítica política. Coisa rara, ao menos dessa forma tão direta e num Godzilla-movie. Sem cerimônia, Yamazaki aponta o dedo (médio) para as fuças de Hirohito e seus militares pelas mazelas impostas ao povo na 2ª Guerra. Isso não em apenas um diálogo ou cena, mas no filme inteiro. Considerando sua natureza mainstream, diria que é até transgressor.

O roteiro aproveita essa passagem de boiada – alô, ex-ministrinho! – e faz questão de dar nome aos bois do cenário geopolítico da Guerra Fria, notadamente as duas superpotências, bastante ocupadas dividindo os espólios da guerra. O discurso é inesperado, sobretudo contundente: governos fazem a merda e deixam a batata quente para a população civil resolver. Um viés que remete a O Hospedeiro (The Host), espetacular kaiju sul-coreano de 2006.

Todo esse contexto é magistralmente integrado e desenvolvido com o elemento humano. O Shikishima de Kamiki é real, introspectivo, devastado pela síndrome do sobrevivente. E ainda assim, crível quando tenta retomar os trilhos de sua vida. Seu núcleo de colegas de trabalho é divertido e ligeiramente caricato, quase daquela forma que nos acostumamos a ver em filmes e séries orientais. Já a Noriko, da belezura Minami Hamabe (mega-estrela no Japão), é um farol de esperança para o quebrado Shikishima, além de protagonizar simultaneamente a melhor e a pior sacada do filme.

E o que Takashi Yamazaki consegue atingir com um orçamento de 10 milhões de doletas é de tirar o fôlego atômico do Godzilla


O CGI não é indefectível. Isso tanto pelo teto de gastos quanto por opção estilística. Por exemplo, Yamazaki não quis a renderização de músculos na criatura em homenagem aos heróis fantasiados dos primeiros filmes. Então dá para perceber a mecânica dos movimentos do bichão em algumas cenas. Felizmente, acaba conspirando a favor da estranheza geral, que é ver um monolito de milhares de toneladas com um coral do tamanho do Everest nas costas arremessando navios e destruindo edifícios por esporte.

As sequências de ataque do Godzilla são apoteóticas. A nova Baforada Atômica é simplesmente a melhor já feita até aqui.

Durante a ação, o caldeirão de influências pop fica bem evidente. Vai desde os filmes antigos e dos mais recentes da franquia (caso do excelente reboot Shin Godzilla, de 2016), a clássicos sci fi como A Guerra dos Mundos e muito Steven Spielberg – principalmente, Tubarão e Jurassic Park, utilizados com inteligência e diligência, não do modo preguiçoso e esquemático de Godzilla, a bagaça yankee dirigida por Roland Emmerich.

Godzilla Minus One é para ver, rever e guardar no coração. É, antes de tudo, uma experiência cinematográfica. Que, estupidamente, perdi. E tento reeditar caseiramente, da melhor maneira possível.

É... tenho que conviver com o fato de que vi o Godzilla '98 no cinema ao invés dessa maravilha. Trauma de guerra é fogo.

Ps: a versão Godzilla Minus One/Minus Color, em p&b (dã) e com uma pegada mais documentarista, também é imperdível.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

O dia em que o gravador desligou


Steve Albini
(1962 - 2024)

Steve Albini, cara. Se foi o Steve Albini. Aí é pra desanimar de vez mesmo.

Difícil mensurar a sua importância para o som alternativo e até para o rock mainstream do final do século passado. Mal dá pra discernir os dois. E sobre os novos tempos, nunca foi de medir palavras.

Adoro as suas bandas e ex-bandas: o Big Black, o Rapeman (ah, esse nome hoje) e o Shellac – que conquistou seu lugar num ZdO de tempos imemoriais – nunca se ausentaram dos meus monitores e fones por muito tempo. Mas foi o seu lado produtor, ou, como ele gostava de ser chamado, "gravador", que me apresentou a um mundo de maravilhas musicais. E mudou a minha vida.

Surfer Rosa (Pixies), Rid of Me (PJ Harvey) e Tweez (Slint) são clássicos no meu caderninho. Fora tudo em ele que meteu a mão do Jon Spencer Blues Explosion, The Breeders, Zeni Geva, Stinking Lizaveta, The Jesus Lizard, Neurosis e uma carrada de outros. Teve muita porcaria também, claro. E acho tanto o In Utero, do Nirvana, quanto o Walking into Clarksdale, do Jimmy Page & Robert Plant, discos problemáticos, mas, ainda assim, fascinantes exercícios do wall of sound albiniano.

Só divagando. A porrada foi grande.

Albini partiu ontem, trabalhando no estúdio. Apesar de ser uma fera ao vivo, tenho a impressão que ele se foi em seu palco preferido...

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Perseguidor implacável


Falcão sendo caçado por um Sentinela defeituoso que jazia num ferro-velho. Leiturinha básica num domingo chuvoso, resgatada no red label Os Heróis Mais Poderosos da Marvel Vol. 19: Falcão, da Salvat. Quando moleque, lia e relia essa história na Capitão América #78, da Abril, reforçando fobias mecatrônicas plantadas no córtex pela face robótica de Yul Brynner em Westworld, pelas fembots de A Mulher Biônica e pelo aterrorizante braço cibernético de Geração Proteus. Só que em versão kaiju. Brrr.

A ideia de ser perseguido por um robô assassino que se reergue dos escombros para continuar a sua caçada era combustível de pesadelos. E mais uma para a extensa conta do James Cameron e seu O Exterminador do Futuro, de um ano depois.


A história fazia parte de uma minissérie em 4 capítulos e foi escrita pelo Christopher Priest na época em que ainda assinava como Jim Owsley. Os desenhos são do grande Mark D. Bright, recentemente falecido. Na trama, o pobre Sam Wilson passa um dobrado ao ser confundido com um mutante pelo Sentinela bugado.

O que não lembrava é que a aventura também incluía fortes comentários políticos e sociais – hoje, bem mais instigantes para mim do que eram em tenra idade. É justamente o que faz da mini uma excelente releitura.

Mas admito que rever aquele velho Sentinela A-7 me fez sentir como o Prefeito Marvin Kuzak reencontrando o robô Cain, em RoboCop 2...