sexta-feira, 10 de maio de 2024

Godzilla Plus One (Million)


Godzilla Minus One talvez seja o maior retorno às raízes de Godzilla desde, bem, Godzilla, de 1954. Inicialmente criado como uma metáfora às bombas nucleares – lembrando que o Japão levou duas delas apenas 9 anos antes – e à perseverança humana sob os cenários mais adversos, a franquia do Rei dos Monstros revela muito sobre aquele povo e seu ethos. Quiçá, sobre o resto do mundo.

Se pegar King Kong, de 1933, como contraparte, vira tese. Diante da sua criação, os cowboys do velho oeste se portavam como... cowboys do velho oeste. Vieram, viram, venceram e não se fala mais nisso. Vinte anos depois, o país do sol nascente não só adotava o subgênero, como o reinventava, expandia e colocava seus titãs para fazer de Tóquio um octógono.

Era patente a diferença nas abordagens: Hollywood abatia a tiros os monstros que ousavam atentar contra o american way, varrendo pra baixo do tapete toda a sua verdade inconveniente; o Japão os reverenciava como uma força da natureza, imparáveis, onde as únicas opções eram correr ou ser pisoteado. Era um fantasma que não dava para exorcizar – no máximo, dava para se adaptar a ele.

Isolados os devidos traumas do pós-Guerra, seria a cura pela destruição-reconstrução-repetição? Só o Dr. Gori explica.

O filme passa longe de toda a filosofia de boteco e trata suas reflexões com peso, dramaticidade e, diria até, bastante ousadia em se tratando da honorável Toho Studios. Méritos de Takashi Yamazaki, diretor, roteirista, supervisor de efeitos especiais, contrarregra, ascensorista, zelador, cozinheiro, encanador e flanelinha do filme. Embora não seja das tarefas mais fáceis, o cineasta não hesita em ir fundo nas antigas feridas.


Ryunosuke Kamiki interpreta um protagonista pra lá de improvável, o ex-piloto kamikaze Shikishima. Vagando por um país moralmente derrotado e estruturalmente arrasado, aos poucos ele vai reconstruindo a vida ao lado da jovem Noriko e da bebê Akiko, duas sobreviventes igualmente sozinhas em meio ao caos. Ironicamente, Shikishima passa a ganhar a vida num serviço mortal: recolher e/ou detonar as milhares de minas americanas que agora flutuam pelos mares japoneses. Não demora até eles toparem com algo muito pior vindo das profundezas do oceano.

A trama básica coexiste com o subtexto denunciando os efeitos catastróficos das ações do homem na natureza, um tópico obrigatório na série e desgraçadamente atual. Mas um aspecto que salta da tela logo no primeiro terço do filme é o forte tom de autocrítica política. Coisa rara, ao menos dessa forma tão direta e num Godzilla-movie. Sem cerimônia, Yamazaki aponta o dedo (médio) para as fuças de Hirohito e seus militares pelas mazelas impostas ao povo na 2ª Guerra. Isso não em apenas um diálogo ou cena, mas no filme inteiro. Considerando sua natureza mainstream, diria que é até transgressor.

O roteiro aproveita essa passagem de boiada – alô, ex-ministrinho! – e faz questão de dar nome aos bois do cenário geopolítico da Guerra Fria, notadamente as duas superpotências, bastante ocupadas dividindo os espólios da guerra. O discurso é inesperado, sobretudo contundente: governos fazem a merda e deixam a batata quente para a população civil resolver. Um viés que remete a O Hospedeiro (The Host), espetacular kaiju sul-coreano de 2006.

Todo esse contexto é magistralmente integrado e desenvolvido com o elemento humano. O Shikishima de Kamiki é real, introspectivo, devastado pela síndrome do sobrevivente. E ainda assim, crível quando tenta retomar os trilhos de sua vida. Seu núcleo de colegas de trabalho é divertido e ligeiramente caricato, quase daquela forma que nos acostumamos a ver em filmes e séries orientais. Já a Noriko, da belezura Minami Hamabe (mega-estrela no Japão), é um farol de esperança para o quebrado Shikishima, além de protagonizar simultaneamente a melhor e a pior sacada do filme.

E o que Takashi Yamazaki consegue atingir com um orçamento de 10 milhões de doletas é de tirar o fôlego atômico do Godzilla


O CGI não é indefectível. Isso tanto pelo teto de gastos quanto por opção estilística. Por exemplo, Yamazaki não quis a renderização de músculos na criatura em homenagem aos heróis fantasiados dos primeiros filmes. Então dá para perceber a mecânica dos movimentos do bichão em algumas cenas. Felizmente, acaba conspirando a favor da estranheza geral, que é ver um monolito de milhares de toneladas com um coral do tamanho do Everest nas costas arremessando navios e destruindo edifícios por esporte.

As sequências de ataque do Godzilla são apoteóticas. A nova Baforada Atômica é simplesmente a melhor já feita até aqui.

Durante a ação, o caldeirão de influências pop fica bem evidente. Vai desde os filmes antigos e dos mais recentes da franquia (caso do excelente reboot Shin Godzilla, de 2016), a clássicos sci fi como A Guerra dos Mundos e muito Steven Spielberg – principalmente, Tubarão e Jurassic Park, utilizados com inteligência e diligência, não do modo preguiçoso e esquemático de Godzilla, a bagaça yankee dirigida por Roland Emmerich.

Godzilla Minus One é para ver, rever e guardar no coração. É, antes de tudo, uma experiência cinematográfica. Que, estupidamente, perdi. E tento reeditar caseiramente, da melhor maneira possível.

É... tenho que conviver com o fato de que vi o Godzilla '98 no cinema ao invés dessa maravilha. Trauma de guerra é fogo.

Ps: a versão Godzilla Minus One/Minus Color, em p&b (dã) e com uma pegada mais documentarista, também é imperdível.

5 comentários:

Marcelo Andrade disse...

Filmaço! Literalmente falando...

doggma disse...

Esse Takashi Yamazaki é bom de Godzilla, hm?

Luwig Sá disse...

Já que você concluiu o texto fazendo uma menção ao Godzilla '98, vou dizer que lembrei muito do Shikishima '98...

https://i.ebayimg.com/images/g/mYwAAOSwwShjER5p/s-l1200.jpg

...tipo, muuuuito.

Sério. Senti como se Minus One tivesse o (insuportável) Upham como seu protagonista humano. O que, vamo combinar, potencializa a catarse do Zilla pisando nos Cheetos humanos. É um filmaço exatamente pela experiência das estripulias do monstro, mas o "herói" quebrado me quebrou. E a saída/reentrada da mocinha quase me derrubou do sofá. :)

Abração.

Tulio Roberto disse...

Apresentei o personagem a o meu filho quanto tinha cerca de 10 anos assistindo Godzilla de 54 e foi paixão á primeira vista. Depois me fez correr atras dos outros e assistiu a todos.
Tive o privilégio de assistir a esse filme no cinema com ele agora com 15 anos. E achei que depois de Senhor do Anéis não veria o surgimento de um novo clássico pessoal. Mais um filme pra guardar na minha prateleira do coração.

doggma disse...

Luwig, lembro do Jeremy Davis como o Farraday, em Lost, anos depois. Era a bola da vez (de novo). E também fez um Manson sinistro em Helter Skelter. Incorporou o maluco!

Sobre a mocinha, quando veio a onda de choque gritei, gritando mesmo, "COROYO!"

Aí depois chega o telegrama-reviravolta de novelão das oito. Foi uma pena não terem segurado a bronca. Teriam demonstrado COJONES GODZÍLLICOS.

Abração!

🦎 🦎 🦎 🦎 🦎

Fala, Tulio!

Cara, legal demais essa experiência aí. Obrigado mesmo por compartilhar.

Pretendo maratonar a filmograZilla inteira em breve. Ainda me faltam alguns dos anos 90, tipo Godzilla Vs SpaceGodzilla, Godzilla Vs Mechagodzilla 2 e Godzilla Millennium.

Abraços!