domingo, 23 de outubro de 2005

THE LAST ACTION HERO


Eu fui institucionalizado. Deitei no colo da Mãe Sistema e adormeci profundamente. Só assim pra explicar a porrada que eu levei ao assistir Casshern (2004). Foi um despertar de um pesadelo em que imperavam filmes de ação hollywoodianos soporíferos (p. pleonasmo). Assisti Casshern sem qualquer equipamento de segurança e fui à lona. Até agora estou procurando o meu queixo. Eu estive diante de um filme maior, que se comunica em uma linguagem acima de qualquer idioma pop conhecido. Meras considerações comerciais, como gêneros e rótulos, não cabem aqui. Aliás, fico imaginando o trabalho que esse filme deu aos marketeiros da distribuidora. Se me restassem dois segundos de vida e tivesse de classificar Casshern nesse meio-tempo, eu mandaria um "aventuradeficçãocientífica" antes de cair fulminado e ciente de que me despedi desta vida de maneira desonrosa.

Não é à toa que Casshern até hoje só surfou em ondas alternativas. Não é nem um pouco comercial (e ao mesmo tempo o filme mais comercial que já vi - é inexplicável) e tem várias nuances caminhando em paralelo - algumas lentas e contemplativas como um Kurosawa, outras inebriantemente rápidas e eletrizantes como nem-tenho-referências-pra-isso - que, como num mosaico humanista que contrasta entre o idílico e o caótico, formam um panorama tão catártico e libertador quanto denso e opressor. Não adianta apenas vislumbrar passivamente o que Casshern tem a oferecer. O filme é um via de mão dupla e exige a interpretação ativa do espectador. Ele nos dá essa honra - que passa a ser inestimável quando percebemos que estamos diante de algo que não se encontra em qualquer esquina. Definitivamente ele não é pra qualquer um, mas deveria ser para todos.

A história se passa no futuro, num mundo dividido pela guerra entre as duas potências dominantes - a República da Ásia e a União Européia. No microcosmo que dá partida ao filme, a família Azuma passa por uma crise interna: o filho Tetsuya (Yusuke Iseya), recém-noivo da bela Luna (Kumiko Aso), quer ir combater na guerra, e o pai, o professor Azuma (Akira Terao), tenta dissuadí-lo da idéia, ao mesmo tempo em que busca patrocínio para seus experimentos revolucionários envolvendo a manipulação de neo-células (=células-tronco). Nos bastidores da guerra, há uma acirrada disputa política que envolve sucessão familiar e uma tentativa de tomada do poder por parte dos militares. O caos impera, até que um inesperado acontecimento dá uma guinada nas experiências até então fracassadas do professor: um misterioso raio rasga o céu e se solidifica (!) no centro de pesquisas, "completando" os experimentos científicos que podem alterar os rumos da guerra. Nascem então os chamados neo-sapiens, o ápice da evolução genética almejada pelo professor. Mas eles são vistos como uma ameaça aos planos do governo e passam a ser caçados impiedosamente. Os únicos sobreviventes se voltam contra o Sistema e declaram guerra à Humanidade.


Um jeito de se vender Casshern na banquinha de camelô é dizer que é uma produção metal hero japonesa com orçamento turbinado. Um Jaspion versão blockbuster. Ou um live-action de Cavaleiros do Zodíaco à beira da perfeição. Aí é só botar o trailer oficial pra rolar e acabar de vez com a hesitação de qualquer cliente desconfiado. Mas aí seria uma bela propaganda enganosa (o próprio diretor Kazuaki Kiriya afirmou ad nauseum que o trailer vende outro filme). Casshern se entrega em ponderações incrivelmente bem sedimentadas sobre conflito de gerações, geopolítica, remorso, violência, religião, ciência, ódio e sacrifício. São vários filmes correndo ao mesmo tempo, todos primorosamente escritos e dirigidos. E ação? Sim, ela comparece, em freqüência muito menor do que qualquer filme do Michael Bay, mas quando ela dá as caras é de dilatar as córneas.

Tudo (re)começa com o discurso do líder neo-sapien, quase didático ao justificar o seu ódio intrínseco pela raça humana. Aí, tem início uma cena vertiginosa de invasão de robôs gigantes aos principais centros urbanos, culminando na aparição do herói Casshern, que literalmente empilha os autômatos em montes de sucata. Trata-se de um trecho arrasador de animê feito com atores reais, humanizando a arte animada com todas as suas características mais caras (hiper-velocidade, combos mega-destruidores, saltos em direção à Lua onde o personagem vira só um pontinho no céu [fazendo aquele ruído de "fiiinnk"] e em seguida desce à mil por hora destroçando os inimigos, ameaças verbais no meio de uma superpancadaria demolidora, etc). É a melhor seqüência de ação dos últimos tempos. Sinceramente, não lembro de nenhuma mais frenética e arrepiante do que essa. É pra ser copiada à exaustão até não poder mais. Isso pra não falar na ameaça gigantesca que aparece na reta final...

Ah, sim. Casshern também é um deleite de experimentação fotográfica, com seu visual semi-neo-retrô (mais à Gattaca que à Capitão Sky e o Mundo de Amanhã) e inserções multimídia inesperadas, sempre fantásticas, capazes de fazer Sin City voltar ao pré-primário. A invasão dos robôs é uma pérola de plasticidade artística underground: o pano de fundo em vermelho e o design estilizado, parecem um mix da HQ Atomika - God Is Red com a porralouquice anti-imperialista das animações de Pink Floyd - The Wall. Já a palheta de cores é extrema, carregada, em concordância com a atmosfera de cada aspecto narrativo. As metrópoles, verdadeiros centros industriais, recebem o tom mais alaranjado possível - - reforçando a impressão de calor infernal, ao passo que o cinza, gélido e cruel, remete ao caos da Europa do pós-Guerra - - e o verde do jardim da casa dos Azuma e de quando Casshern está a sós com Luna - - parece ser a cor oficial de um sonho bom.


O filme tem laços estreitos com a cultura anime e mangá, e não é pra menos. É uma adaptação dos conceitos do desenho Shinzo Ningen Casshân (em inglês, Robot Hunter Casshan). Só que... e isto é uma coisa muito legal... segue adiante na continuidade do anime. Não é o mesmo protagonista que assume a super-armadura, e a memória do Casshern original - chamado Kyashan, e este sim retratado no filme como um símbolo lendário e um mártir defensor do povo - é preservada através de algumas referências quase solenes, como o seu antigo elmo (que, inclusive, inspira o "novo" Casshern em um momento-chave) e seu ex-cão-robô Flenders, que faz uma ponta cool na seqüência passada no vilarejo. Emocionante.

Aliás...


...eu chorei assistindo Casshern. Não teve como. Esse filme é uma porrada emocional que sabe onde é que dói pra valer. Várias situações angustiantes pululam daqui e ali, mas alguns momentos chegam a ser insuportáveis, tamanha a força dramática. O roteiro poderia nos bombardear com informações incompreensíveis e deixar por isso mesmo em nome da lendária paciência oriental (tradicionalmente incompreensível para nós, meros ocidentais comedores de lanches do McDonalds), mas, à exceção do intrigante raio solidificado-primo/irmão-do-Monolito-Negro-de-2001 (o qual tenho minhas próprias conclusões a serem desenvolvidas a contento), todas as pendengas sinistramente complexas se amarram de maneira nada menos que brilhante na reta final - que, por sua vez, nos reserva ainda um acontecimento (...um não, dois) que dilacera a alma de uma maneira a qual não acharíamos que fosse possível depois de tanta surra sensorial.

Talvez esse seja o primeiro Grande Filme de Entretenimento do século 21. Ele parece sussurar isso em sua mente através de alguma informação subliminar residual, no decorrer de sua belíssima mensagem pacifista às custas de sua própria desconstrução. Sob olhares jovens e viciados em urgência, Casshern com certeza não terá apelo maior do que chato, lento e complicado. Graças a Deus que seja assim.


Que filme.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

T'CHALLA BOUMA YE!

Black Panther #1/#8
Spoilers...? Que spoilers?


Até pouco tempo atrás, quando algum personagem de HQ sofria algum processo de atualização, tudo era resumido à fórmula "mais músculos, mais insinuações eróticas, mais explosões". Com o sucesso das linhas Ultimate e MAX, essa gag dos quadrinhos acabou sendo beneficiada. Muito do que se faz hoje nestes termos é baseado em fórmulas vencedoras daquele universo - em maior grau, na partida emocionante de WAR proposta pelas histórias dos Supremos. E é quase inevitável imaginar a nova concepção do Pantera Negra figurando nessa versão Jackass dos Vingadores. O Pantera é o extremo de toda aquela tralha acumulativa típica da Marvel. Nascido em 1966 na crista do blaxploitation, ele (e Luke Cage, Falcão, Manto, Misty Knight) era mais um personagem com vida curta na cronologia da Casa das Idéias. A situação dele era piorada por um mapa geopolítico complexo, que incluía o auge do apartheid na África e uma Guerra Fria mal-explicada. T'Challa, herói e líder de Wakanda, uma nação africana ultra-avançada? Não podia ter vindo em uma hora menos propícia e ele penou os próximos 30 anos na geladeira da mansão dos Vingadores.

Pois bem, o mundo dá voltas e a rotação do Pantera chegou novamente ao ponto zero. Com a compra dos direitos de filmagem do herói pela Artisan e o interesse de Wesley Snipes em encarnar o personagem, nada melhor do que uma recauchutada básica no Pantera, com direito à Wakanda's Kingdom Overpowered, veios do raríssimo vibranium e tratamento de assuntos espinhudos - como intervencionismo e globalização. Tudo isso e uma aventura a se desenrolar e um antagonista que é literalmente um símbolo deste (re)começo do Pantera: Ulysses Klaw, o assassino profissional belga mais conhecido como Garra Sônica.

Calma, calma... pra você, que lembrou dele sendo fatiado em Guerras Secretas e que recebeu em sua mente um déja-vu de tosqueira quadrinhística, muita calma nessa hora. O vilão, outrora um brutamontes quase irracional, ganhou um upgrade generoso, tanto em atitude e motivações, quanto no visual (ele era assim e ficou assim), chegando mesmo a lembrar os inimigos mais bacanas do 007. Junto com ele na "Legião B do Mal", outros sidekicks igualmente lambões ganharam providenciais roupagens up-to-date: Batroc (era assim, ficou assim), Homem-Radioativo (era assim, ficou assim), Rino (que era assim e continuou desse jeitinho mesmo) e um personagem chamado Cannibal, um "saltador de corpos" à Proteus (antigo inimigo dos X-Men).


Who Is the Black Panther? é sintomático até no nome. Com desenhos do hour-concours John Romita Jr. e roteiro de Reginald Hudlin (diretor do filme À Serviço de Sarah, de olho da adaptação do Pantera para o cinema), o arco de seis partes é quase uma reedição da origem do herói, dando ênfase à soberania tecnológica e cultural de Wakanda. O perfil do Pantera também é traçado de forma incisiva - caráter forte, austero, disposto a fazer grandes sacrifícios, arrogante, sedutor e algo cruel. O interessante é que Hudlin lembrou que o Garra Sônica também era originalmente um inimigo do Pantera - nada menos que o assassino de seu pai, o rei T'Chaka - e inseriu um flashback de tirar o fôlego na edição #3.

Talvez pela visibilidade mediana do título, Hudlin se deu ao luxo de meter a agulhada com força no cenário político internacional. Nunca Wakanda foi abordada desta forma. Ao demonstrar o impacto que o país imaginário teria no mundo real, com sua tecnologia de cem anos à frente e dona da maior reserva terrestre de vibranium (um tipo de metal raríssimo que absorve ondas sonoras), Hudlin cria um paralelo imediato com a delicada situação do Oriente Médio. E, sem o menor tato ou cerimônia,encarna um Mark Millar particularmente debochado e cria diálogos canalhas e inspiradíssimos, principalmente dentro da Casa Branca ("os wakandianos têm um espírito guerreiro que faz os vietnamitas parecerem, bem, os franceses"). Não satisfeito, ele ainda faz o que muitos ainda acham difícil de engolir, mas que pra mim soou absolutamente natural.


Fora isso tem muito mais: críticas pesadas à Igreja Católica (logo o Rino dizendo "às vezes temos de chutar alguns traseiros em nome de Jesus" é de uma ironia sem tamanho), o exército de 'Deathloks' que os EUA enviam para invad... digo, ajudar Wakanda, a relação tensa com países vizinhos e inimigos, e uma senhora ponta solta que ele deixa balançando pouco antes do final.

Na edição seguinte, a #7, o Pantera submerge na bad trip da Feiticeira Escarlate e tem a sua versão do universo House of M - no qual a Nova Ordem Mundial é revertida para um mundo de supremacia mutante - mas o herói mesmo não mudou nada de seu perfil. Excelente edição (também escrita por Hudlin) que acaba rápido demais. E o Raio Negro... putz, imagina se ele desse um arroto. Já a edição #8 (com mais uma beeela capa de Frank Cho), tudo volta ao normal, mas o Pantera é apenas o coadjuvante de uma aventura dos X-Men contra um geneticista louco de Genosha, a ex-ilha mutante do Magneto.

No final das contas, o Pantera Negra em carreira solo acaba por se mostrar uma gratíssima surpresa, suplantando até mesmo alguns bastiões sagrados da Casa das Idéias. É o tipo de revista que você devora até os créditos finais e ainda fica um bom tempo matutando a história na cabeça. Mal posso esperar pela próxima edição. E que venha o filme!

Na trilha: o excepcional Schizo Deluxe, o novo do Annihilator. Pra ouvir no volume 11. Vixe!