quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Uma cadáver deliciosa


Uma Morte Horrível é mais uma HQ que jazia nas profundezas da minha pilha de leitura, perdida entre TPBs, HCs, formatinhos e fumettis. Uma injustiça horrível. A bande dessinée (ulalá!) da parisiense Pénélope Bagieu é uma grata surpresa: espirituosa, intrigante e com um toque de agridoce crueldade. Me lembrou aqueles thrillers obscuros exibidos nos Corujões da vida, surpreendendo zapeadores insones com uma trama ligeiramente fora da curva.

...difícil era achar o filme depois, com zero referências naqueles tempos valvulados. Cheguei a fazer pequenas loucuras para solucionar alguns desses mistérios. Outra história.

A obra é o debut da multitarefas Bagieu. Publicada originalmente em abril de 2010, lançada aqui em abril de 2016 e tirada do plástico por um leitor negligente em fevereiro de 2024. Vê como não houve demora?

Não há passado, nem futuro, tudo flui em um eterno presente – Dr. Manhatt... OPA.

A protagonista é Zoé, uma jovem adulta deslocada e sem perspectivas. E um tanto alienada também. Se vira fazendo bicos como hostess e vive com o namorado desempregado e boçal. É o perfeito retrato das gerações pós-millennials-e-lá-vai-ladeira.




É uma HQ que ganha toda a identificação possível já nas primeiras páginas.

Num dia qualquer, Zoé conhece Thomas, um escritor de meia-idade que vive recluso em seu apartamento. Mais do que recluso, Thomas parece cultivar um pot-pourri de agorafobia, antropofobia e que mais tiver de fobias sociais.

Diria que esse encontro é o grande gatilho da HQ.


Amargando um bloqueio criativo aparentemente intransponível, Thomas desenvolve uma relação platônica com Zoé, enfim se reconectando com a inspiração há muito perdida. Apesar de todas as diferenças (e talvez por causa delas mesmo), Zoé é alçada ao posto de Musa. E se reconecta com a felicidade e o amor em versão algo excêntrica.

As coisas se complicam com a chegada de Agathe, uma misteriosa personagem do passado de Thomas.

Pode não parecer, mas esse início SergeGainsbourguiano (desculpa aí o mau jeito) vai se desenvelopando mezzo como tramoia neo-noir, mezzo como o capítulo final de um novelão das 8. Não dá para comentar mais do que isso sem comprometer a história – e olha que já dei um show de contorcionismo até aqui.


É notável como Bagieu consegue equilibrar perfis tão distintos e ainda convertê-los em engrenagens essenciais nas reviravoltas. Soa quase como se tivesse escrito o roteiro partindo do final até o início. Coisa de craque, muito embora ela tenha apelado para uma malandragem elíptica perto da conclusão. Sabe como é, para ninguém antecipar o que vinha chegando.

Coisinhas de marinheira de 1ª viagem. Mas acabei simpatizando com o jeitinho brasileiro francês da opção. Afinal, funciona.

O traço da quadrinista é um cartunizado limpo e econômico, passeando por vários ângulos e sempre ao largo da tosqueira estética – vide as splashs bacanudas das páginas 54, 69 e 83. Inclusive, seu estilo até se aproxima da pegada da Margaux Motin (de Placas Tectônicas). Mais como uma cumplicidade artística do que propriamente uma influência. Se rolasse uma colaboração entre as duas, seria um cadáver esquisito imperdível.

O que me leva à única ressalva sobre a cuidadosa edição da Editora Mino.

Uma Morte Horrível foi lançado originalmente com o título Cadavre Exquis. É uma referência ao jogo interativo homônimo criado por surrealistas franceses em meados dos anos 1920. É bastante conhecido, incluindo em nossa jovem província.

“Baseado em um antigo jogo de salão, Cadavre Exquis – Exquisite Corpse, em inglês – era jogado por várias pessoas, cada uma das quais escrevia uma frase em uma folha de papel, dobrava o papel para esconder parte dele e o passava para o próximo jogador para sua contribuição. A técnica recebeu o nome dos resultados obtidos na primeira execução, ‘Le cadavre / exquis / boira / le vin / nouveau’ (‘O cadáver delicioso beberá o vinho novo’).”

Essa brincadeira/técnica coletiva pode ser aplicada tanto em textos quanto em desenhos.

A tradução brasileira "cadáver esquisito" obedece à tradição parônima que temos ao perceber erroneamente o termo inglês "exquisite" como "esquisito", ao invés do correto "delicioso" com o viés de "sabor refinado/sofisticado". É nóis.

Isto posto, Uma Morte Horrível foi uma opção ainda mais... esquisita do experiente tradutor Fernando Scheibe. A analogia com a história é perfeitamente compreensível, mas também aniquila as várias metáforas possíveis que poderiam ser feitas com o título original.

Pessoalmente, não abriria mão desse cadáver. Que é mesmo delicioso.

2 comentários:

Luwig Sá disse...

Parece um gibizinho morbidamente maravilhoso. Vou atrás.

P.S. Queria ver teu checklist de compras num mês fraco. Sabia nunca desse gibi.

doggma disse...

Putz, já me preparei pro "pô, agora que cê leu?!".

Este mês o carrinho começou com mais Pénélope Bagieu e terminou com o Nelson Ned. Muitos altos e baixos.