quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

AS NOVAS AVENTURAS DO CAPITÃO SPAULDING


Na época do lançamento de A Casa dos 1000 Corpos (House of 1000 Corpses, 2003), fiquei com o pé atrás, achando que o diretor estreante Rob Zombie - um cara bacana - se deixaria levar pela empolgação natural de quem está realizando sonho antigo. Inexperiência técnica e excesso de informações também vinham no pacote. Com a missão de realizar uma produção B com um ar, digamos, despretensioso, Zombie acabou criando um pequeno divisor de águas. O filme, execrado por 2,98/3 da população terrestre, era um tour-de-force nonstop de cultura trash.

O estilhaço de história começava no padrão estrutural típico (adolescentes, postos de beira de estrada, casarões sinistros, caroneiros[as] suspeitos[as]), mas logo descarrilhava em um carnaval macabro com missivas nada sutis ao american way of life. Tudo isso com um climão que remetia a um director's cut de Contos da Cripta/Amazing Stories/Twilight Zone. A Casa dos 1000 Corpos foi um levante anti-genéricos de Pânico, uma distorção febril de Massacre da Serra Elétrica, exagerado, irregular, perturbador, injetado de referências cult e incursões experimentais. É horror B, mas na versão Pro, não a Home Edition.

Eis que chega Rejeitados Pelo Diabo (The Devil's Rejects, 2005), uma continuação do "incontinuável". Tudo me levava a crer que o Zé do Caixão gringo iria triplicar o tempero daquele acarajé coagulado, tornando a digestão ainda mais complicada. Mas não é que o cara se revelou um chef sofisticadíssimo? Acima de tudo, Rejeitados marca uma evolução aterradora de Rob Zombie enquanto idealizador e realizador de filmes. É absurda a segurança que ele adquiriu entre um filme e outro. Ao zerar toda a tralha estereotipada de outrora (e olha que era muita coisa), Zombie colocou os monstros pra brincar à luz do dia, sob um ponto de vista nítido e revelador. He let the dogs out. E também foi esperto ao livrar a cara de personagens que, embora fossem a quintessência genealógica das famílias Sawyer & Voorhees, eram tão fascinantes quanto um ser humano com opinião própria.

Como o diretor mesmo disse, Rejeitados não é uma seqüência literal de A Casa. De lá, herda apenas as conseqüências da matança generalizada (que vem na forma de uma caça às bruxas Texas Ranger style) e seus protagonistas mais carismáticos: o esquisitão Tiny (Matthew McGrory, o gigante de Big Fish), o sociopata Otis (Bill Moseley), sua irmã Baby (Sheri Moon Zombie, esposa do Rob - tá bem o maluco) e Mama Firefly (Leslie Easterbrook, perfeita no lugar de Karen Black), além, é claro, do singular Capitão Spaulding (Sig Haig, outra vez excelente). O processo de revisão não poupou nem os demais membros da família Firefly (como Rufus - aqui numa ponta feita pelo dentes-de-sabre Tyler Mane - e o Vovô Hugo), nem Dr. Satan e suas abominações genéticas conjuradas dos círculos inferiores (estes, além de Rosario Dawson no papel de uma enfermeira, aparecem na seção de cenas deletadas do DVD).

Realmente Zombie deu uma faxina no casarão mal-assombrado. Falando nisso, o casarão também foi pra escanteio.


Rejeitados começa sem pausa pra respirar, como se fosse a ressaca da farra do primeiro filme. A residência dos Firefly é cercada por uma força-tarefa policial liderada pelo xerife Wydell (William Forsythe, imerso no personagem), irmão do tenente Wydell (abatido no filme anterior), obviamente obcecado por vingança. Acuados, Otis e Baby conseguem escapulir do cerco e caem na estrada. Logo pedem auxílio ao Capitão Spaulding, que recomenda um ponto neutro como abrigo - no caso, um puteiro dirigido pelo seu colleague Charlie Altamont, interpretado pelo venerável Ken Foree (ator do clássico O Despertar dos Mortos, de George A. Romero).

Aliás, a fina flor do cinema outsider compõe a escalação. Além de Foree, também marcam presença o folclórico Michael Berryman (de Quadrilha de Sádicos), P.J. Soles (de Carrie, A Estranha e do primeiro Halloween), o veterano Geoffrey Lewis, o onipresente Danny Trejo (de Um Drink no Inferno e dá só uma olhada no 3x4 dele no IMDb!) e, por última, uma senhorita que acabou com o tédio das minhas tardes pré-adolescentes: Ginger Lynn Allen.

Já a trilha sonora é um primor de compilação southern rock, utilizada sem a menor parcimônia. Notável também é o "carinho" que Zombie demonstra pelos personagens, conferindo-lhes tridimensionalidade e motivações individuais críveis. Até o fato de não poupar nenhum deles da crueldade hardcore daquele mundo-cão denota um respeito absoluto às suas existências bem tramadas. Ao contrário de um thriller comum de horror, ninguém tem cara de presunto ali. A maioria é gente-fina que se meteu numa merda de dar gosto, na qual gentes-finas podem perfeitamente se foder. Um momento bem ilustrativo da malvadeza do diretor é a horripilante "cena do mascarado" (ma-gis-tral-men-te filmada, uma pérola), desde o momento em que ele sai do hotel até o final. É a vida (ou a arte).

E aí chegamos aos "rejeitados pelo diabo", Otis, Baby, Capitão Spaulding e Mama Firefly, selecionados por Zombie como se fossem os participantes de um Big Brother from Hell. Ao focalizar suas atitudes práticas no cotidiano, Zombie cria uma sensação incômoda e persistente para o espectador. De um modo insólito, eles parecem surpreendentemente familiares, donos de uma moral interna que vai de encontro à moral do resto do mundo, mas ainda assim uma moral. Otis tem pose de rockstar e contestador do Sistema. Baby é a típica garota-que-só-quer-se-divertir, provocante, sacaninha e que dispara palavras rápido como uma cigana (conheço umas vinte assim). A zelosa Mama Firefly é a coroa insinuante na idade da loba (aliás, Easterbrook e Forsythe protagonizam alguns dos diálogos mais deliciosamente insanos dos últimos tempos). E Capitão Spaulding... é praticamente o meu padrinho.

A partir daí, Zombie desenvolve um loop de percepção, que eleva o filme de entretenimento bacana para um veículo de um significado maior e desgraçadamente humanista, que antige seu clímax justamente na vingança tão almejada pelo xerife Wydell. E aí meu amigo... só terminando com um spoiler mesmo pra eu poder desabafar:

(antes que eu me esqueça, spoiler do filme Dogville também)



Ao virar a mesa sobre quem é a caça e quem é o caçador, Zombie formulou uma questão de apelo universal. Note bem, em nenhum momento criamos algum tipo de simpatia pela família Firefly, e Zombie jamais suaviza a mão nas atrocidades que eles cometem, exatamente para que isso não ocorra. Mas em compensação, ele nos enfia goela abaixo o sabor amargo da vingança, ainda que direcionada à assassinos tão cruéis. O ensaio de genialidade vem justamente aí: após impregnar a tela com uma seqüência visceral de atos hediondos, Zombie praticamente esgota a nossa crença em conceitos como humanidade e boa-fé. Mas durante o pau-de-arara físico e psicológico empregado por Wydell - quando o nosso espírito de solidariedade está lá no centro da Terra - o sentimento de compaixão inevitavelmente vem à tona, com força total.

Tive pena da Mama, de Otis, de Spaulding, e torci para que Baby conseguisse fugir em uma cena extremamente simbólica da "mensagem" embutida no filme - situação a qual não pude deixar de relacionar com Grace, de Dogville, e suas ponderações que variavam de um extremo a outro sobre o destino que escolhera para os habitantes daquele vilarejo (não poupando nem o bebê de sua algoz). Observando a trajetória de Grace, Wydell e de... minha nossa, alguém anotou a placa... Yu Ji-tae & Oh Dae-su, de Oldboy, me pergunto até onde a vingança é eficiente como cauterizador espiritual.

A constatação do que realmente Rejeitados Pelo Diabo trata, surpreende. Funciona tanto como alegoria à política dos EUA em combater o terrorismo com terrorismo, quanto como um olhar pungente sobre a pena de morte. A redenção chega (sim, ela chega), e não deixa de ser lírica - lírica de uma maneira reconfortante para os personagens e alienígena para nós (mas compreensível enquanto testemunhas de sua trajetória). E novamente retornamos ao padrão - afinal, é um loop - e o filme se despede como um legítimo road movie, ao som da bela Free Bird, do Lynyrd Skynyrd.



Confesso... esperava menos de Rob Zombie. Muito menos.

Rejeitados Pelo Diabo é um filmaço.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

HOUR CONCOURS


Antes de começar o post, devo informar que vou falar sobre todo o volume 2 de Ultimates até a nona edição. Aqui no Brasil acho que só publicaram a primeira ainda. Spoilers a granel, portanto.

Doggma registrou ano passado um depoimento de Mark Millar afirmando que um filme do arco Wolverine: Enemy of the State, que ele escreveu e John Romita Jr desenhou, teria um orçamento de 300 milhões de dólares. Brincou também dizendo que as proporções astronômicas do arco seguinte, Agent of S.H.I.E.L.D., duplicaria este orçamento se fosse filmado e colocou esta figura para dar uma idéia. Quase um ano depois temos The Ultimates v2 #09, também roteirizado por Millar, só que com o ultra-realista Bryan Hitch no lápis (sem desmerecer Romita Jr. de qualquer forma – ele é phueda demais, mas com outra proposta) e fica claro que o mega-roteirista tem uma tara secreta pela queda dos aeroporta-aviões "shieldianos", como pode ser visto na imagem acima: praticamente uma revisão do mesmo tema. Peguemos então as considerações a respeito do orçamento dos filmes do Wolverine e consideremos que o mesmo estaria para um filme dos Ultimates V2 como um Xuxa e os Duendes estaria para Senhor dos Anéis.

Não dá para apenas reverenciar Hitch em duas palavras no meio de um parágrafo. Certamente o roteiro de Millar é o maior responsável pelo sucesso dos Ultimates, mas estaria blasfemando se dissesse que é responsável único. A arte de Bryan Hitch, mesmo que constantemente atrasada, é de um realismo cinematográfico. Os enquadramentos, splash pages, seqüências, dinâmicas e fisionomias são embasbacantes, e ainda permite-se fazer citações claras a diversos filmes como, por exemplo, O Silêncio dos Inocentes. Assim como Millar, Hitch também parece que desenha tendo todo o arco de eventos na cabeça, capaz inclusive de realizar contrastes que cruzam várias edições para serem percebidos; visão que não é própria de qualquer artista por aí não.


Triskelion antes e depois do puxadinho (#1 e #9)

O volume 1 dos Ultimates já havia sido algo absurdamente impressionante no sentido de que tem sido difícil encontrar material deste nível dentre as HQ's mais – digamos – comerciais. Sim, temos coisa muito boa acontecendo por aí (destacando-se o samba do crioulo doido ocorrendo na DC, Supreme Power, Demolidor, Astonishing X-Men – segundo arco - e, como pôde ser visto no post abaixo, New Avengers), mas a maioria é concentrada em 4 ou 5 roteiristas que trabalham mais tempo do que as tais 24h que, dizem por aí, compõem um dia. Se pegarmos tudo que é publicado nesta linha (eixo comercial Marvel/DC, repito) por mês, a quantidade relativa de material extraordinário deve ser bem pequena.

Com isto, sempre que algo muito bom surge no horizonte, sentimos como quando aquela mulé muito-gata-arrasa-quarteirão enlouquece e se exibe contigo na rua, o que torna natural a expectativa ferrenha pela continuidade do sonho. A primeira temporada ainda tinha a preocupação de apresentar os personagens e dar um mínimo de background para cada um deles antes da porradaria desenfreada. Agora, um ano depois daqueles eventos, houve uma queda de ritmo sugerindo que a cadência seria mais light. E, cara, que orgulho de dizer que estava enganado! Não sei se alguém percebeu mais acima, mas ao invés de chamar o volume 2 de arco, classifiquei-o como temporada, o que me leva a dizer que Millar está sendo vanguardista numa forma de escrever quadrinhos como se fossem temporadas de tele-séries. Um tema que toma conta de um ano inteiro com eventos paralelos plenos e estufados de verossimilhança para dar mais gosto à massa, tudo isto com um paralelo político contemporâneo digno de palmas.

E as influências cinematográficas não param nos exemplos dados. Fora a primeira edição, sem título, todos os outros são cópias de títulos do cinema ou adaptações dos mesmos ou de outras mídias populares. Lidos em seqüência, praticamente contam a história por si só:

#2 - Dead Man Walking – referência a Os Últimos Passos de um Homem, filme com Sean Penn que mostra um homem condenado esperando o tempo passar no corredor da morte.

#3 - The Trial of the Incredible Hulk – Referência óbvia.

#4 – Brothers – Referência a filme homônimo que denota a existência de outros que nem eles.

#5 - The Passion Play – referência a uma peça homônima que representa a Paixão de Cristo.

#6 - The Defenders – O único caso que não achei referências.

#7 - The Wolf in the Fold - Referência à fábula do lobo em pele de cordeiro.

#8 - Born on Forth of July – Filme com Tom Cruise, mostrando o descaso pelo ex-combatente.

#9 - Grand Theft America – que é uma referência à cidade tomada pelos bandidos de Grand Theft Auto – o jogo.

Pois pergunto: como é que Millar consegue escrever o que escreve, vender aos borbotões e ninguém dizer o cara é um terrorista em potencial? Na temporada anterior já pintara um Capitão América que é o perfil comportamental da classe que comanda os EUA e sua relação com o mundo, agora toda a equipe e os eventos que participam tornam a visão mais sistêmica, abrangente, pintando os EUA como um elefante imenso em desabalada carreira, numa inércia impossível de conter. Todo o cenário faz companhia à postura intempestiva, autoritária e egoísta do personagem, dando ainda mais sentido de "vejam como eles são féladaputas" ao chamar atenção para as operações do grupo não mais restritas ao solo americano e aguçando os ouvidos da mídia.


Ihhh... Fodeu!

E é esta a linha principal: Ultimates sendo usados como milícia na defesa dos interesses norte-americanos onde quer que seja, mas de preferência onde não possam se defender e tenham algo de valor para ser tomado. Na tangente surgem diversas sub-tramas que, aparentemente, não têm como se cruzar, mas rapidamente nos surpreendem e vemos que tudo tinha que ser como está sendo mesmo e somos completamente tapados por não termos percebido antes! Elementar, meu caro Zombie-son!


"Algumas pessoas dizem que The Ultimates acabaram de passar um
pouco dos limites e usaram uma pessoa de destruição em massa
em um delicado caso político internacional."


Larry King – The Ultimates v2 #1


Parêntese: curioso notar como um personagem criado para envergar uma causa nacionalista legítima na aurora dos quadrinhos é chamado agora de "pessoa de destruição em massa", encarnando tudo de ruim que temos no direcionamento da postura americana.

Voltando: Por alguns momentos, como dito um pouco acima, chegamos a acreditar que as histórias paralelas, apesar de fantásticas independentemente, não teriam como convergir em algum ponto futuro de forma perfeitamente satisfatória e coerente, mas em 26 páginas da nona edição todos os nós são atados, mostrando que nada do que aconteceu até então foi gratuito. Vemos, depois de tropeçarmos em nosso queixo no chão, todo o cenário de conspiração global que sempre quisemos ver em qualquer veículo de entretenimento e ainda podemos brincar com novas questões nas próximas 3 edições. Mark Millar deve ser um enxadrista de mão cheia! Definida a linha central, para chegarmos ao que acontece na estrondosa nona edição, cabe um resumo do que aconteceu até aqui.

Senão vejamos: Após a ação no Oriente Médio, onde os Ultimates libertaram alguns reféns americanos, além da frase de Larry King acima, temos também Thor dizendo que a operação no Iraque ocorrida sob a bandeira de ajuda humanitária é, na verdade, um golpe publicitário para trazer a opinião pública para um lado favorável. Sugere que servirá para quando forem necessários futuros ataques preventivos.

Com o alerta de sacanagem no ar, surge a linha que coloca Thor em posição de louco megalômano tarado por teorias de conspiração – e aqui Millar brinca não só com a percepção que os personagens têm do Deus do Trovão, mas também embaralha qualquer coisa que nós, leitores (ou espectadores, as you wish) possamos vir a pensar. Quando lerem a estória onde acontece o almoço com Volstagg, reparem bem na figura asiática de verde que passa ao fundo.


Tá vendo a merda acontecendo?

Somos envolvidos, aparentemente sem motivo, nos problemas na relação entre Steve e Janet, narrados com propriedade ácida rodriguiana (assim como a sugestão da relação incestuosa entre Pietro e Wanda), ao passo que percebemos o acentuado isolamento de Hank Pym (humilhado, encostado nos Defensores e encoxando uma defensora pré-púbere) e Bruce Banner. Este último ainda coloca indiretamente mais óleo para a fritura de Thor, acusado de ter vazado as informações a respeito da natureza do Hulk e sua ligação com os Ultimates. Em paralelo, temos a informação de que há mais de dezoito meses os europeus vêm trabalhando no seu exército de super-soldados, dando pela primeira vez conotação de "corrida armamentista".


"A única coisa que precisam fazer é dizer 'armas nucleares' e vc sai
correndo para lutar contra quem quer que seja ao lado deles.
Suponha eles achem que a China é uma ameaça daqui a alguns anos."


Thor para Tony – The Ultimates v2 #6


A trama então elimina o primeiro peso pesado ao executarem o Hulk (ou pelo menos tentarem), enquanto mostra o envolvimento de Natasha e Tony Stark, uma relação clássica do universo normal que aqui toma rumos bem mais interessantes.

Thor é a bola da vez e Nick Fury não pensa duas vezes ao mandar que o cacem sob a alegação oportunista e super up to date de que o Deus Nórdico estivera "(...)encorajando o uso de violência contra governos democráticos eleitos". Parece Bush, mas foi Loki quem disse - o Deus da Farsa e Mentiras - que coisa não? A arte imita a vida. Aliás, esta edição merecia um post separado. Aqui ocorre uma verdadeira via-crúcis para Thor, justificando o título. É porrada do começo ao fim, grandioso como tem que ser e terminando com um "Father" que é praticamente um déja vu, além de referência que não lembro ter visto tão bem aplicada nesta mídia ou em outra qualquer.

Acontece então a primeira afirmação categórica de que existe um traidor no grupo e este procura Pym, o desacreditado e humilhado pseudo-herói. Ultimates e heróis europeus atuam no Oriente Médio e apreendem ogivas em "ataque preventivo". Esta ocorrência faz com que um chefe de estado da região – em Ultimates Annual v2 #1 – ameace Nick Fury caso ele continue com o programa de supersoldados.


"Nós acabamos de aleijar um país, Hank!"

O Traidor para Hank - The Ultimates v2 #6


Com dois pesos pesados fora de combate, chacinam a família de Clint Barton – o Gavião Arqueiro – e fritam mais um maioral: Steve Rogers. A personificação do perfil autoritário americano sucumbe ao próprio veneno, já que, depois de tudo o que fez pelos seus superiores, é caçado e derrubado após Fury dizer "Não posso acreditar em como foi estúpido. Como pude trazer este punk para o time só pela sua palavra quando fizemos seis meses de análise de passado de qualquer outro?".


Há espaço ainda para mostrar que o exército dos EUA, tradicionalmente extremista politico, mostra-se incomodado com o papel dos Ultimates solapando o seu, bem como verbalizam a insatisfação quanto ao desenvolvimento de tecnologia que Tony Stark provê à SHIELD e veda às Forças Armadas, deixando-os com recursos tecnológicos atrasados em 5 anos. Prato cheio para teorias da conspiração.

Sobram apenas o Homem de Ferro, Natasha, Pietro, Wanda e os reservas para começar a nona edição. E aqui a batalha toma proporções que nunca tinha visto na série até então. A seqüência inicial Oldboy style, onde a conspiração mostra como consegue os códigos de acesso ao Triskelion, é o prenúncio de que algo grande viria e, quando vem, não faz por menos. Com as defesas tecnológicas derrubadas e as super-humanas enclausuradas, o último peso pesado é pego numa autêntica chave-de-perna enquanto a(s) cidade(s) é(são) varrida(s) numa seqüência matadora (literalmente) de eventos. Em minutos os EUA estão no chão.


Ihhhh.. Fodeu³!!!!

Mermão... é uma trama de dar nó! Só um psicótico pensaria em algo deste tipo. Só que o cara não surpreende só por isto. Por mais paradoxal que possa parecer, já estamos nos acostumando a nos surpreender com sua criatividade chocante em diversas publicações, mas até em detalhes contingenciais ele se destaca. Assim como abusou da imaginação ao fazer o Capitão América derrubar o Gigante no volume 1 de forma crível, aqui ele chacina a tropa de gigantes de um jeito que só com muito scotch daria para imaginar (sacanagem falar isto... tá no meio de um tratamento quimioterápico - será que é por isto?)! Não satisfeito, foge da institucionalização natural dos roteiristas da cronologia normal e nos traz aquilo que seria o óbvio, mas era uma questão intocada até então: se Tony faz uma armadura para si, por quê não faz outras para outros membros? Somos agraciados pois com Natasha de posse de uma das maiores armas do mundo. Isto sim é uma pessoa de destruição em massa.

Poderia agora me meter a futurólogo e tentar prever o que vem por aí, afinal o desenrolar dos fatos mostrou que Pym e Banner estão por aí e querem voltar a ser gente, mas este é o tipo de coisa que, tratando-se de Millar, é muito arriscado tentar.

Durante algum momento cheguei a pensar que a evolução que esta armada teve necessitaria de um tempo de maturação que não existiu. No entanto, ao rever as edições anteriores para escrever este post, notei detalhes que antes não notara, como a quase onipresença de Loki no limite dos eventos, a passagem de um ano dos eventos do V1 para o V2, além da existência de 18 meses separando a adoção de Thor pelo grupo ainda no V1, quando a frente européia do programa de super-soldados já era bem evoluída. A cena final e o turbilhão de informações que voltam à superfície da memória nos faz perceber que as citações de Millar, além de oportunistas, não cessam. Loki tem aparência oriental e lidera o exército que derruba a grande potência do ocidente - o Grande Satã. Numa tacada só ele insere elementos que vão de Nostradamus à Bíblia (novamente).


Esquema ilustrativo do que aconteceu até agora

O detalhe é que Loki esteve inserido no projeto de super-soldados europeu desde seu início, o que leva a crer que a iniciativa oriental deve ser contemporânea - talvez anterior - à americana. Cabe lembrar que, dada a iniciativa de desenvolvimento tecnológico e criação do Homem de Ferro ser uma questão pessoal de Stark, além do patrocínio da S.H.I.E.L.D para Pym e Banner - este útimo só logrou êxito por acidente e de forma descontrolada - , o resto do programa de super-soldados americano era um fiasco, contando com dois mutantes desacreditados depois de Retorno do Rei e meia dúzia de agentes bem treinados, mas que de super não tinham nada. Creio que no fim tudo ficará bem e os EUA se reerguerão, mas aí é obrigação editorial comercial. O que importa é que todas as críticas internas e geo-políticas que queria fazer já foram feitas. No post sobre os Ultimates de quase um ano atrás, meu chefe brincou perguntando se já dava para chamar Millar de Mestre. E agora eu pergunto: Tem jeito de fazer diferente, gafanhoto?

O traidor? Não conto. Baixem e leiam, mas isto não me impede de deixar algumas questões que ficam no ar:

Thor é ou não um Deus pagão? Se é, por quê perdeu os poderes quando lhe tiraram o cinturão? Se não é, por quê o colocaram na cela destinada ao Hulk?

Qual a natureza daqueles soldados voadores que agiam como um enxame?

Os POD´s teriam sido os protótipos antigos do Homem de Ferro cujos projetos foram passados pela Viúva (ou pelos militares) para a armada inimiga?

Por fim: O que segura Thor e Capitão em suas celas no Triskelion agora que ele está sem energia? E Pym e seus "Visões"?

Para vocês brincarem: Quem seriam – além do Loki – os carinhas que estão nesta imagem aqui?

Faltando apenas 3 edições para o fim da era Millar/Hitch à frente dos Ultimates, digo que tenho medo, muito medo, pelo que Jeph Loeb e Joe Madureira - os novos responsáveis pela série - podem fazer. É de revirar o estômago. Sei que Loeb já acertou mais do que errou, mas não consigo – nem com muito álcool – ver como ele pode manter este nível. E Madureira e sua fúria mangá não tem nada a ver com a idéia de realismo que permeia tudo o que foi feito com o grupo até então. Podia ser, ao menos, Tim Sale (afinal, já é íntimo do Loeb e tem uma arte menos caricata), mas vendo o que vem sendo feito em Amazing Spider-Man, acho que Deodato seria o cara perfeito para o trabalho.

The Ultimates é seguramente o que de melhor vem sendo publicado nesta linha.


Tão esperando o quê? Leiam logo! Não sabem o que estão perdendo!

Artigos relacionados: 
Artigo 1



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SAM KIETH VAI ANIMAR A GALERA

Todo mundo já deve estar sabendo que Sam Kieth vai emprestar seu estilo cinematográfico-surrealista e seus pontos de vista únicos para o Batman, correto? Pois então: seguem dois links para download das duas obras independentes que Sam lançou nos últimos anos. Zero Girl e The Maxx. Cliquem nos nomes para baixar.

Não li The Maxx ainda, mas arrisquei ler 2 páginas de Zero Girl e só percebi que tinha sido capturado na terceira edição de um arco de 5. A última vez que lembro ter sido arrebatado assim por algo novo foi quando li 15 edições de Y - The Last Man seguidas. Zero Girl é original em tudo que mostra, até mesmo quando trata do clichê da outsider vs grupinho de malandras do colégio. Num universo com meia dúzia de personagens Kieth consegue fazer uma história com premissas absurdas ser completamente atraente. Tô bobo.


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PESQUISA DE OPINIÃO

O que vocês acham desta action figure? Se disser que comprei eu seria louco?




domingo, 15 de janeiro de 2006

AVENGERS REASSEMBLED!


Com passos bem cuidadosos e estruturando uma projeção a longuíssimo prazo, segue adiante o processo de reinvenção do principal supergrupo da Marvel. Certamente eles não querem que a prata da casa reunida numa só equipe naufrague antes mesmo de gritar "I'm king of the world". Compreensível. Só o fato de estarem ali os mega-stars Homem-Aranha e Wolverine... "nada de queimar o filme desses dois", deve ter sido a ordem mais proferida pelo editor-in-chief Joe Quesada em seu belo escritório (que, imagino, deve ter um tapete daqueles que afundam até o joelho e um kit de mini-golfe bem no meio). Tanto o Capitão América quanto o Homem de Ferro têm um peso bem menor no merchandishing em geral, mas conferem o tom de propriedade e tradicionalismo necessários.

Luke Cage, ainda em test-drive, tem no currículo o fato de ser a personificação da cultura negra de rua (Blade, nos quadrinhos, definitivamente não deslanchou - o que é um paradoxo interessante, pois o mais difícil ele conseguiu). E já veio atualizado por uma mini no selo Max e pelas participações esporádicas nas histórias da Jessica Jones. O Cage atual não ouve Kool & The Gang, e sim Wu-Tang Clan e Tupac Shakur. Já a Mulher-Aranha, também reaproveitada, chega num momento de absoluto hype para as heroínas mais, assim digamos, voluptuosas (gostosas mesmo). O biotipo das pinups hoje está mais pra Druuna que pra Jean Grey, e eu bebo a isto.

Do lado das novidades, temos Robert Reynolds, mais conhecido como o complicadão Sentinela, e o misterioso Ronin (curiosamente, um ninja com nome de samurai sem mestre... há um conflito de interesses aí).

Espero que todos estejam acompanhando as edições nacionais de Vingadores - A Queda, pois tudo a partir daí se tornou literalmente imperdível. Ok, já estamos na edição #14 da revista The New Avengers e ainda não houve nenhum cataclisma de proporções globais, mas o clima enegrecido e conspiratório que permeia as histórias sugerem que uma mega-castanhada se avizinha no horizonte. Se é fogo de palha, ainda não dá pra saber, mas, vindo de Brian Michael Bendis, eu prefiro não arriscar, assim como não arrisco a enumerar quantas revistas da Marvel ele anda escrevendo. E, o mais incrível, sempre mantendo um respeito absoluto ao material com situações e diálogos muito acima da média (até mesmo naquele Aranha ultimate cara-de-mamão). Atual, criativo, bem-humorado, inteligente e com um puta timing, Bendis está insaciável. Aproveitem enquanto ele ainda está são, pois se continuar nesse ritmo ele vai pirar com certeza (e se virar um louco como Alan Moore, até que seria uma transição interessante).


Na última vez que comentei sobre os Vingadores, eles não conseguiram se livrar da ressaca escarlate de Disassembled e cada um seguiu seu rumo. Após uma violenta rebelião na Balsa (a prisão para supervilões), 42 prisioneiros superturbinados escapam e um novo grupo de heróis se forma ao acaso. Liderados pelo Capitão América (que acha que tudo é obra do destino... não o Dr. Doom... destino mesmo, de sina e tal), eles começam a agir de forma "auto-suficiente" - com capital inicial bancado pelo Stark, claro (afinal, os Vingadores também tem de ter seu Bruce Wayne).

Investigando os fatos que ocorreram na super-prisão, eles vão até a Terra Selvagem no encalço de Sauron (sem ser aquele do Senhor dos Anéis) e lá esbarram no invocado Wolverine. Juntos, eles se deparam com Yelena Belova, a nova Viúva Negra, cheia de tinta no cabelo, e uma operação esquisitíssima da SHIELD, envolvendo extração de vibranium para fabricação de armas ilegais. A Viúva Yelena e uma equipe de agentes tenta eliminar os nossos heróis, mas, além de fracassar, ela só consegue queimar o próprio filme - .

Bom, nunca gostei da Yelena mesmo, mas a #6 termina ao melhor estilo "eu voltarei".


Na edição seguinte, a primeira de um arco com quatro partes, os Novos Vingadores encaram uma missão quase impossível (puta frase clichê!): desatar os trocentos nós que envolvem o passado surreal do Sentinela. E quando eu digo "surreal" é porque a coisa sai dos trilhos mesmo. A vida do Sentinela parece um filme de David Lynch com roteiro de Spike Jonze e edição de Darren Aronofsky. Pra você ter uma idéia, Bendis recorre até à arriscadíssima metalinguagem, inserindo na história ninguém menos que Paul Jenkins , o criador do Sentinela (aliás, mais uma vez eu recomendo a leitura de The Sentry... ô hq pertubadora da muléstia).

Este é um terreno caro para a Marvel, afinal trata-se de um personagem-analogia ao mito do Herói (não simplesmente uma "versão do Superman", como andam dizendo por aí).

Não é à toa que nessas quatro edições rolaram participações especialíssimas de Alex Ross e Sal Buscema - sem contar que o titular da vez foi Steve McNiven, um dos meus artistas favoritos e o melhor 'desenhador' de Sue Richards do mundo. Já tava ficando cansado do David Finch e do seu jeito Image de ser.


Mas voltando ao assunto, após uma breve consulta aos Fodões da Marvel - - Tony Stark e os Novos Vingadores recebem sinal verde para futucar o vespeiro do Sentinela, obviamente com direito a um reforcinho básico - .

Após uma certa relutância - - o "Caso Sentinela" acaba sendo resolvido e todas as pontas soltas de sua existência são amarradas com eficiência ímpar - que, como se fosse um buraco negro de pura catarse, emulou The Sentry, Paul Jenkins e a Essência do Herói e os cuspiu de volta, em um único organismo, expurgado, pronto para (re)começar. Pedala Bendis!

Depois do estrondoso arco anterior, a edição #11 começa bem soturna. Marca justamente a introdução do personagem Ronin.


A parada é a seguinte: no rastro do foragido Keniuchio Harada (o vilão mutante Samurai de Prata), os Novos Vingadores tentam impedir que o meliante reassuma sua antiga posição no Japão, como senhor do Clã Yashida. Após uma negativa de cooperação por parte de Matt Murdock (mais uma), a equipe acaba recebendo o suporte de Ronin, por indicação do próprio Matt. Na verdade, a razão de ser desse arco é retomar a conspiração que Bendis vem desfiando, e que envolve a banda podre da SHIELD e agentes infiltrados da Hydra.

Por falar nisso, aqui David Finch retorna ao traço e faz da Madame Hydra quase a irmã gêmea da Aphrodite IX (personagem que ele criou e desenhou anos atrás), confira aqui.

Ao final, mais duas deixas para as próximas edições. Uma é a Jessica Drew revelando ter o (lindo) rabo preso com as forças "do lado de lá" e o mistério em torno da identidade do Ronin - que rende um comentário simplesmente impagável do Aranha. Sobre isto, uma constatação spoilerosa logo abaixo. Marque para ler (acho meio difícil alguém que esteja lendo não saber de quem se trata, mas...).

Ronin é Maya Lopez, copycat de artes marciais e outra ex-comida do Demolidor Matt Murdock. Não sei se ela vai continuar se chamando "Ronin", visto que é mais conhecida como Eco. Aliás, o uniforme que ela está usando lembra muito aquele mais recente do Pantera Negra. De qualquer modo, fiquei meio surpreso com a fisionomia européia/caucasiana da moça. Clique aqui pra comparar a concepção dela nas artes de David Mack e David Finch (se bem que é até covardia comparar o Finch com o Mack... são iguais só no primeiro nome mesmo).


Chega a última edição, a #14, e o chow começa já nos créditos. O homem, o mito, Frank Cho assume os desenhos! Sabe o que isto significa? Sabe o que isto significa?? Significa isto, isto, isto, isto e, por Deus, até isto aqui. Só o Cho-san tem moral pra fazer aquelas splash pages totalmente gratuitas com direito a assinatura no cantinho da página (Cho nº1... Cho nº2...). Apreciar a arte desse rapaz é tão relaxante, que até um puta errão de continuidade parece bobagem (no finalzinho da edição #13, Cap está de uniforme e Jessica Drew de jaqueta vermelha, mas no início da #14 eles... resumindo, foi assim, mas o Cho pode, ele tem regalias para o tanto que nos proporciona!).

Aaaah, tem a história também...

Cap coloca Jessica contra a parede, e ela explica sua situação de agente dupla por acidente. Aparentemente, a Hydra a coagiu a trabalhar como espiã infiltrada na SHIELD. Ela acabou revelando o esquema para Nick Fury, que recomendou que ela fizesse o serviço de mão dupla, assim ele poderia saber dos passos da Hydra. Mas ninguém poderia saber do trato, só os dois, caso contrário ambos ficariam expostos. O problema é que Fury encontra-se foragido da SHIELD (na verdade, ele foi traído lá dentro, numa puxada de tapete digna da UCT, da série 24 Hs). Agora, os heróis têm de desvendar a conspiração que está apodrecendo os alicerces da SHIELD, enquanto cedem de vez à pressão da opinião pública, que quer saber quem são esses "Novos Vingadores".

Ainda há muitas nuances a serem delineadas em The New Avengers. Wolverine não assumiu uma posição de membro fixo, apesar de ter participado de tudo até agora (rendendo uma divergência de opiniões muito bacana entre Cap e Stark). A presença do "Ronin" ainda é incerta. Cap, por sua vez, ainda não desistiu de recrutar o Demolidor. E o Sentinela está arriscando os primeiros passos, construindo um perfil. Lentamente, diga-se de passagem. Não deverá ser fácil se sobressair em meio a medalhões editoriais e líderes de bilheteria. Mas é Bendis quem está no manche. Nas mãos dele, cada edição de The New Avengers parece um evento.

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terça-feira, 10 de janeiro de 2006

HOJE EU ME SINTO MENOS HUMANO


O cinema às vezes é menosprezado quando colocado na balança contra outros veículos culturais. Estou acostumado a ver o pessoal dito "mais culto" (ou os que querem posar de) colocar que o teatro é algo tão acima desta coisa mundana onde o cinema chafurda que até penso se não era para eu me sentir culpado por adorar tanto aquela telona! Não nego que, dada a natureza eminentemente autoral dos palcos, contrastando com a maioria esmagadora de blockbusters do cinema americano, realmente faz com que a idéia tenha lá seu quê de lógica, mas seria uma tremenda falta de respeito – para não dizer cegueira voluntária – com todas aquelas obras tão autorais quanto e que ficam ombro a ombro com outras que usam bem o poder de criação de realidades para passar algumas mensagens só possíveis no cinema.

Já há algum tempo, vivendo numa cidade grande como a minha – e que não é diferente em absoluto da cidade grande que você aí e você também vivem – passei a perceber que o respeito pelo próximo e pelo próprio corpo/vida têm se transmutado em descaso. A vida alheia tem se mostrado cada vez mais descartável, trazendo como conseqüência a falta de entendimento que as dificuldades do seu vizinho podem vir a se tornar suas também. Ninguém passa incólume por isto, nem eu. Quando garoto, costumava ir a pé para o colégio e sempre passava em frente à banca de jornal perto de casa. Nesta época, o jornal O Povo (um diário do Rio de Janeiro, não sei se em outros estados também circula) começava com suas edições de certa forma inovadoras: as capas sempre traziam uma manchete praticamente medieval que acompanhava uma foto de meia página de algum cadáver chocante ou pedaço de, sendo que o recheio do tablóide não era diferente. Praticamente dava para torcer o jornal e encher um copo de sangue. A quantidade de pessoas que parava em frente à banca para ver aquela imagem não fazia frente nem à quantidade de crianças na porta das casas no dia de São Cosme e Damião. O horror contagiava e continua contagiando. O tempo passou e as percepções também. Naquela época, as pessoas ainda se sensibilizavam com um assalto ocorrido na esquina. Hoje, se um arrastão tiver passado na mesma esquina e largado alguns corpos pelo chão, não haverá sensibilização alguma além de um: "é... de novo".

Como disse mais acima, ninguém passa incólume por isto. Nem eu. Amadureci e continuei convivendo com a violência – não nego que gosto de alguns filmes violentos, mas estes trazem a idéia inequívoca de ficção. Folheava a parte sobre "O Mundo" do jornal e via aquelas fotos de refugiados indo daqui pr'ali: Etiópia, Libéria, Bósnia, Albânia, Palestina etc. Eram apenas fotos de jornal acompanhadas de, no máximo, 40 palavras. Ocupavam meu tempo apenas enquanto não mudava para a página dos esportes. Achava que tinha perdido a capacidade de me sensibilizar, de me indignar.

Graças a Deus o cinema não é tão vulgar quanto pregam aqueles do começo do texto. Ontem vi Hotel Ruanda (Hotel Rwanda, 2004 – EUA, Itália, GBR e África do Sul) e confirmei que a sétima arte consegue fazer-me perceber que ainda sou capaz de sentir algo que transcende o entretenimento barato. O filme, dirigido pelo estreante no cinema Terry George, é baseado em fatos reais vividos e contados por Paul Rusesabagina, encarnado primorosamente por Don Cheadle. Sabe quando temos aquela sensação de legitimidade quando nos deparamos com ela? É mais ou menos isto! Nunca vi o tal Paul, mas a sensação que tive durante o filme é que o cara deve ter sido tão bem encarnado quanto foi Ray Charles por Jamie Foxx (não por acaso, foi seu algoz no Oscar passado).


E Paul nos conta que em 1994 ocorreu uma guerra civil na Ruanda entre as duas castas que habitavam o país: a maioria Hutu contra a minoria Tutsi. Conta também que, quando da colonização, os belgas, naquele afã de controlar o país tendo alguém nativo ao seu lado que seja o menos diferente possível – e de quebra criando um racha humano que sempre favorece o controle pelos colonizadores – pescaram dentre a população aqueles com nariz mais afilado, maior estatura e fisionomia mais delicada, ou seja, o mais próximo possível do padrão europeu, mas negro. Chamaram estas pessoas – minoria, cabe reforçar - de Tutsi e os colocaram para mandar no país do restante Hutu – os baixinhos de nariz achatado. Todos sabemos que se um irmão é tratado com privilégios que outro não tem, fatalmente brigas virão; o que dirá de uma nação fragmentada desta forma? A carnificina seria questão de tempo, e aqui estamos falando de números como 40 mil corpos encontrados em um lago e 1 milhão de ruandeses assassinados nas ruas. A título de comparação, a 2ª Guerra MUNDIAL matou 6 milhões de judeus.

"Quantos atos genocidas são necessários para haver um genocídio?"

Então a frase acima, proferida em um programa de rádio, seguida de respostas escorregadias de uma entrevistada européia das Nações Unidas, nos acorda com um tapa na cara. A vida humana passa então a ser uma questão de interpretação de expressões oficiais que os países ditos desenvolvidos – comandantes da ONU – torcem ao seu bel prazer, de preferência para onde dá mais votos – como disse o personagem de Nick Nolte, com aquela interpretação insossa de sempre.

É nesta hora que a pessoa que ainda guarda um pouco de dignidade encontra-se perguntando: "Como é que não fizeram nada? Como deixaram aquilo tudo acontecer sem ninguém se meter? Cadê a tal da luta pela garantia de liberdade? Como podem invadir um país em busca de armas fictícias de destruição em massa ao lado de campos de petróleo e deixar uma estrada inteira ser pavimentada com corpos a perder de vista feitos na base da faca?" - e somos lembrados que na mesma época a Bósnia era violentada e estampava os jornais. Mas ao menos a Bósnia é européia - dá ibope!, diria João Cléber.

O que é relatado no filme foi em 1994, mas se esticarmos o braço para o lado, pegarmos um jornal e apenas o folhearmos, certamente encontraremos algum somali ou angolano numa foto da Reuters fugindo de um campo de refugiados para outro. Todo dia aquilo que o filme mostra acontece novamente, numa repetição incessante que até chega à tela do Fantástico, mas segue-se exatamente como a personagem de Joaquin Phoenix prevê: "As pessoas olham, exclamam 'O Horror! O Horror!' e voltam a jantar".


E aqui vem a mea culpa. Não posso me resguardar atrás do recrudescimento do espírito derivado dos anos de exposição à vulgarização da vida, sob pena de incorrer no mesmo erro da secretária de Hitler em A Queda, quando diz que não há desculpa para este tipo de coisa. O filme é impiedoso. As cenas pungentes se sucediam com eficiência na busca pela derrubada de minha indolência: o contraste do ônibus acomodando brancos retirados do Hotel pela ONU e deixando-o recheado de mortos-vivos, o extermínio de crianças para eliminar uma geração, o fornecimento de armas para o exército pelo governo francês, as cenas de colinas verdejantes com a música alegre do começo contrastando com todo o desenrolar do filme... enfim... tudo. Um país movido a suborno para toda e qualquer atividade não poderia existir sem ajuda do mundo, mas quando ouvimos falar da África? Nunca! Mais da metade das pessoas de nosso país certamente acha que aquilo tudo é selva, da mesma forma que os americanos acham que o Brasil é habitado por Blankas, Pelés e Ronaldinhos que andam por aí balançando-se em cipós. Então o pensamento viaja até a personagem de Rachel Weisz em O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, 2005) e de como eu já me senti envergonhado vendo o que aquela mulher era capaz de abrir mão em função do próximo, mas minha vergonha vendo Hotel Ruanda tomou proporções absurdas. O que me consola é que Paul, assim como eu, no começo tinha a mesma postura de "as coisas se acertam", até perceber que "as coisas se acertam" só se alguém for o sujeito da oração. Caso contrário, não há como as coisas se acertarem; neste caso não há verbo reflexivo nem sujeito indefinido. Desnecessário dizer que o que aconteceu ali tem chance e caminha firmemente para acontecer aqui se não fizermos nada.

As lágrimas de raiva e vergonha não conseguiram se conter no final, assumo, assim como o punho cerrado. A parte boa disto é que estas lágrimas trouxeram consigo a certeza de que, se hoje realmente me sinto menos humano, ainda consigo manter aqui dentro a sensibilidade para dizer "Porra... eu me importo!" e começar a tentar fazer algo para meu semelhante.

Se tivesse visto este filme uma semana e meia antes, diria que foi o melhor de 2005. Ao menos para mim.