Daybreakers (2010) é um tremendo arrojo na filmografia dos irmãos Michael e Peter Spierig. Elenco bacana, orçamento decente (US$ 20 milhões), Lionsgate garantindo os holofotes, enfim, o tratamento classe A que costuma ser um divisor de águas para certas carreiras. Bem diferente de seu longa anterior, o cult trash Canibais (Undead, 2003), um carnival bizarre que misturava meteoritos, zumbis e abduções alienígenas no mesmo pacotão B. As estilosas cenas de ação e o gore transbordante destoavam da narrativa irregular e fora de foco, típica de iniciante splatter, mas rendeu uma bem-vinda moralzinha underground.
E agora, finalmente, eles chegam ao seu primeiro filme "sério". Coincidência ou não, a trajetória dos Spierig Bros. até aqui está bem parecida com o background de gente como Sam Raimi e Peter Jackson. A Academia é o limite!
Outro ponto extra-arte a favor dos manos australianos: o timing. Especialmente em tempos de Crepúsculo e True Blood - ambos destroçados a furiosas mandibuladas pelo astro da produção, Ethan Hawke. E, de fato, o filme é uma opção redentora pra quem já não suporta mais o mela-calcinha em que se transformou o filão dos vampiros.
Aliás, já ouviu falar na "Regra Hawke"? A que reza que ele nunca participou de um filme ruim? Me lembre de passar amanhã em algum cartório de registros e patentes.
A premissa é esperta e consegue evitar o lugar-comum. Em 2019, uma pandemia transformou a maioria dos seres humanos em vampiros. Com isso, a sociedade foi totalmente reorganizada e adaptada às suas novas necessidades, mas não consegue evitar o pior (e o mais óbvio): a escassez de sangue humano. Para contornar a crise, uma gigante farmacêutica tenta sintetizar sangue em laboratório, além de manter um estoque de humanos capturados, Matrix style. Ao mesmo tempo, promove a caça de um grupo de resistência formado pela minoria não-infectada.
A dinâmica do filme é dividida entre personagens-chave e o turbulento contexto social daquele universo - o que representa seu melhor aspecto e acaba sendo explorado menos do que merecia. Com o sangue humano virando artigo de luxo e os sucessivos (e explosivos) fracassos em sintetizá-lo, o clima nas ruas vai ficando cada vez mais desesperador.
Vampiros menos favorecidos são os primeiros a enlouquecer, passando a devorar outros vampiros e originando assim uma subespécie monstruosa e marginalizada. Uma boa sacada foi mostrar os primeiros sinais da mutação aparecendo à medida que a privação de sangue vai se estendendo. É só uma questão de tempo até a crise chegar aos altos escalões. Metáfora social simplista, mas relevante e, definitivamente, uma bela evolução dos Spierig Bros. enquanto roteiristas.
Falar em "química" aqui é até redundante, tendo em vista os nomes do elenco. Hawke está muito bem como o chefe hematologista simpático aos humanos e o sempre competente Sam Neill está melhor ainda como o líder da megacorporação vamp-fascista. Já Willem Dafoe é quem parece mais à vontade, no papel mais livre e caricato do filme: um ex-vampiro (!) estradeiro fissurado em Elvis.
No elenco de apoio, destaques para a ótima Claudia Karvan como a rebelde Audrey e para a linda Isabel Lucas (de Transformers 2), surpreendendo como a filha do personagem de Neill. Sua entrega é tal que chega a roubar a cena do veterano ator.
Mesmo com todo o refinamento conceitual, a mão dos Spierig continua pesadona quando o assunto é podreira e sanguinolência. Estão mais contidos aqui, mas extravasam generosamente em situações pontuais ao longo do filme. Uma das cenas do clímax é um espetacular esquartejamento em bando (do tipo que os zumbis de George A. Romero faziam nos anos 70), filmado num elevador com a câmera em ângulo invertido num efeito nauseante. Decapitações e eviscerações também são reproduzidas com grafismo ímpar.
O visual das subespécies impressiona. As criaturas são uma involução bestial dos vampiros, a meio passo de morcegos antropomorfizados e lembrando vagamente os Rippers, de Blade 2, até pelo fato de se abrigarem nos esgotos. Méritos do designer e supervisor de efeitos Steven Boyle, que já havia feito um bom trabalho na adaptação de 30 Dias de Noite.
A fotografia em tons cinzentos e azulados mantêm uma atmosfera sufocante e opressiva em sincronia com a abordagem dos diretores. Embora utilizem com frequência os recursos tradicionais do gênero terror, os Spierig construíram em essência um sci-fi da velha escola. Em diversos momentos, o filme lembra um Gattaca com vampiros, sensação em parte reforçada pela presença de Hawke, em parte pela distância e cadência entre os personagens.
Numa proposta cheia de inovações, como a cura bastante plausível para o vampirismo, e uma cinematografia que beira o genial, é de se estranhar que Daybreakers derrape feio na última curva. Entre a missão de deixar um final em aberto e tentar amarrar a trama inteira com um banho de sangue generalizado, a perda foi apenas parcial - mas tirou dos Spierig a chance clara que tinham de reinventarem a roda e a moda.
6 comentários:
Nunca tinha ouvido falar O.o
Muito bom, cara. É um filme redenção. Mas discordo de vc sobre a última curva. Acho que foi bem amarrada.
Enfim, o que vale mesmo é que eles criaram um universo com zilhões de possibilidades.
Mto bom o filme.
Recomendo que vejas Carriers(Virus em pt-br) mto bom tb, um roadie movie ao estilo zumbilandia mas sem mta comédia, mto bom mesmo, ao melhor estilo Madrugada dos Mortos.
Opa, vi o trailer desse filme antes de O Lobisomem. Parece bem interessante realmente. E com o remake de "Crazies", do Romero, vindo aí...
Só fui assistir a este filme por indicação deste site. No fim das contas, é sempre melhor ter uma boa indicação de alguém que conhece o gênero. Sobre o filme em si, em várias cenas tive a nítida impressão de que alguns vampiros "desevoluídos" comportavam-se como zumbis e a comparação não é arbitrária. Só por mostrar zumbis que se alimentam de doses cavalares de sangue, não possuem reflexo no espelho e temem o poder fulminante da luz solar, já é um bom respiro para os "Crepúsculos da vida". Contudo, como escreveu o revisor, o filme perde ótimas chances de reinventar a roda vampírica e tentar impulsionar uma classe de filmes adultos com temática vampiresca. No mais, é um bom filme e merece uma visada.
Pois é, Luiz. Acho até que essa premissa inicial poderia ser expandida e melhor desenvolvida na forma de uma continuação. O que não acho que vá acontecer, apesar da boa carreira nas bilheterias (custou 20 milhões, arrecadou 50 milhões).
Ainda nesse terreno, viu "Stake Land"?
Postar um comentário