terça-feira, 19 de setembro de 2023

Uma câmera na mão


Os aspectos que mais me surpreenderam em Talk to Me têm a mais a ver com o zeitgeist das redes sociais do que propriamente com o filme. O longa australiano foi co-escrito e dirigido pelos gêmeos Danny & Michael Philippou, youtubers cujo canal RackaRacka contabiliza quase 7 milhões de inscritos. A experiência da dupla com cinema é zero – no máximo, fizeram uns vlogs e pequenas gags com visualizações hiperestouradas. No entanto, Talk to Me passa longe de amadorismos ou incursões trash. O produto final é bem acabado e tecnicamente acima da média, provando, mais uma vez, que o streaming é uma grande escola.

Isso se estende aos vários segmentos deste business: maquiagem, iluminação, figurinos, filmagem, edição, F/X, atuação, comédia e dá-lhe etc. Uma geração de autodidatas do audiovisual está se formando via Internet. É o Do It Yourself 3.0, com resultados práticos e financeiros quase imediatos. E sem sair de casa.

O filme nasceu semi-indie, mas riscou os céus do mainstream em Mach 5. De um orçamento de US$ 4,5 milhões, voltou para casa com quase US$ 70 milhões de bilheteria. Sem dúvida, a molecada se identificou. E comprou. Tudo sob as bênçãos (e o logo) do badalado estúdio A24, que distribuiu o filme nas Américas. A sequência já está engatilhada e irá se chamar, claro, Talk 2 Me.

Outro ponto é ligado ao plot: um grupo de adolescentes faz pequenas reuniões para brincar com uma misteriosa mão decepada e embalsamada que permite a comunicação com os espíritos. A mecânica é simples. Basta apertar a mão, dizer "fale comigo" e algum morto aparece. Daí, é só dizer "eu deixo você entrar" e ser possuído pelo tal espírito. Após as incorporações, que não podem exceder 90 segundos, o possuído parece ter voltado de algum barato estupidamente viciante. Aí, é espírito na veia.

Claro que qualquer um com um mínimo de maturidade e bagagem de vida iria aproveitar a conexão com o além e tirar todas as dúvidas existenciais possíveis. O que não acontece no filme por uma boa razão: nenhum adulto jamais chega a tomar conhecimento do artefato e a galerinha só pensa em usá-lo para curtir e postar as fotos nas redes. Em tempos de virais e desafios online que, não raro, causam vítimas graves ou fatais, esse contexto não poderia ser mais atual e realista.

Jovens são estúpidos. Ponto. Abre parênteses. E, antes da Internet, o que se fazia em Vegas, ficava em Vegas. Fecha parênteses com emoji de piscadinha.

Isto posto, a sequência do sarau de possessões é surpreendentemente divertida e bem montada. A dinâmica da mão passada de mão em mão (ops) chega a ser até animada demais para um filme de terror. E perturbadora. Ao mesmo tempo em que parece que eles estão dividindo um bong fumegante, a impressão é de que a coisa está mais para uma roleta russa. A merda é iminente – e quando chega, não decepciona.

As meninas e meninos estão ótimos. A atuação certamente teve um molho de improviso, o que beneficiou muito as caracterizações. Em especial do trio principal formado por Alexandra Jensen (Jade), Joe Bird (Riley) e a ótima Sophie Wilde (Mia). Só assim para nivelar com a presença gigante de Miranda Otto. Mesmo com uma participação reduzida, a veterana rouba as cenas sem esforço e nem sequer intenção. Inclusive, protagoniza um momento impagável da mãe jogando quilos de verde nos filhos para descobrir uma possível festinha durante sua ausência.

Gatos um pouco mais escaldados, pós-Ghost (e até pós-O Sexto Sentido), irão telegrafar as reviravoltas da trama com bons minutos de antecedência. Mas ainda assim é um bom passatempo. E um bom hype.

2 comentários:

Alexandre disse...

Filmão. Chego a arriscar que até o momento, é um dos melhores do ano, em termos de terror.
Não pega leve, não tem piadinha pra aliviar.
Assisti com expectativa zero, e me surpreendi.
O lance das redes sociais chega a ser assustador, ainda mais com o evento recente de NPCs em terras brazilis.

doggma disse...

Outros tempos, Alexandre. Neste sentido, o filme retrata fielmente a geração atual, a cultura do smartphone, das redes sociais e por aí vai. Vindo exatamente de dois caras que pertencem a ela e souberam levar isso para a tela.

E bem lembrado: tem momentos bem humorados (diferente de piadinhas) e nenhum jump scare gratuito. Notável!

Abração.