Rambo IV (Rambo, 2008) me trouxe uma certeza que há tempos eu buscava. Sempre achei que se aquele sujeito cabeludo fosse explorado de maneira menos ideológica e mais pessoal, revelaria uma psique em frangalhos. Qual seria a fronteira entre o certo e o errado do ponto de vista de - vamos entrar na brincadeira - um membro da elite das Forças Especiais, arrastado além de seus limites físicos e psicológicos? No mínimo, desfocada. O assunto já rendeu vários longas (Sob o Domínio do Mal, Caçado, Elite Squad) e uma trilogia inteira (Bourne's), e em todos eles os "heróis" estão quase submersos na loucura. Parece ser o que Sylvester Stallone tenta elucidar nesta nova investida de seu personagem mais globalizado. O que antes era um comercial de democracia american way, com o Campeão Bombado da Liberdade surrando a fuça de algum estereótipo comunista/ditatorial em tons coloridos e vibrantes, agora é um retrato sombrio e visceral. Fica claro que as novas motivações de John Rambo, personificação da América coerciva que é, vêm com um amargo, decepcionado e arrependido desencargo de consciência.
O roteiro, de Sly e Art Monterastelli, é bastante econômico, mas sobretudo instintivo. Foi preciso apenas um "Fuck The World" para traduzir em termos o que sentia um cara que: foi hostilizado por aqueles que defendeu na guerra; foi abandonado por suas fileiras em território inimigo; e que - mais uma vez salvando o traseiro da América da ameaça comunista - ajudou talibãs e futuros terroristas a reinarem soberanos no Afeganistão, sem imaginar a merda que isto iria render um dia. Então, nada mais pragmático num mundo em que os caras maus não andam por aí com uma marca vermelha na testa - desde que você tenha A Bomba, claro.
A própria imagem do protagonista remete ao atual estado de espírito desta Velha América. Longe daquela forma e agilidade de iron-man, Rambo agora é um farrapo triste e austero. E novamente refugiado entre nativos de uma região isolada, o que é curioso, dada sua proximidade com uma zona de guerra - detalhe que parece sempre estar presente em suas escolhas de moradia (tenho certeza que isto renderia outra elucubração psico-geopolítica de boteco, mas deixa então pro boteco). O início do filme dá uma boa idéia do clima de pesadelo que domina a área. Ao invés do Tio Sam, desta vez é um grupo de ajuda humanitária quem pede auxílio ao velho soldado. Após vários avisos, Rambo concorda em transportar a equipe com seu barco para "além da linha vermelha" - mas não pela ilusão de estar mudando o mundo com isso, e sim convencido pelo discurso/semblante deslavadamente Madre Teresa da missionária Sarah Miller (Julie Benz, de Dexter).
Durante a viagem, eles são abordados por piratas que querem raptar Sarah. O ex-boina verde se vê obrigado a trabalhar e dá uma aula de como não se faz prisioneiros. Ao ter seus métodos questionados por um dos médicos da missão, ele agarra seu pescoço e metralha: "They would've raped her 50 times and cut your fuckin' heads off! Who are you? Who are any of you?" Esse é o clima.
Apesar de chocado com o episódio, o grupo decide continuar, cheio de boas intenções e nenhuma arma na bagagem. Não demora até um pelotão carniceiro de militares birmaneses entrar de sola na vila que está sendo amparada. É neste momento que somos apresentados ao Rambo pós-Pulp Fiction, pós-O Resgate do Soldado Ryan, pós-Falcão Negro em Perigo, pós-Hostel, pós-Viagem Maldita. Desde o seqüestro do Cel. Trautman, foram quase duas décadas de chafurdações NC-17. E vieram com juros. Bancários.
Quando respondeu as críticas que afirmavam que Rambo IV é um dos filmes mais violentos já feitos, Stallone declarou: "Not one of the most. The most. I worked very hard for this". Sendo assim, ele pode se orgulhar da cria - a seqüência da vila é incomodamente longa, de um grafismo brutal e sádico. Pessoas são desmembradas com rajadas de balas, explodidas, incendiadas, mulheres são violentadas, crianças são mutiladas. É chacina filmada de trás das trincheiras. Tão realística, crua e desesperadora quanto foi no aterrador Savior - A Última Guerra (Savior, 1998). Um soco na boca do estômago.
Muito se discute sobre o que é justificado ou não em cenas de violência extrema no cinema. Neste caso específico, tenho certeza de duas coisas: 1) Sly escolheu a dedo o cenário de crise que iria abordar (ano passado, a isolada Birmânia/Myanmar se revelou a nova filial do capeta na Terra), talvez até contribuindo para a denúncia em outros meios; 2) Era a lenha necessária para a fogueira de Rambo. Em nenhum dos filmes da série os antagonistas se mostraram tão revoltantes. Neste sentido, há uma grande sacada do Sly-diretor ao transformá-los em agentes impessoais, produtos de um sistema maior que jamais caberia em 91 minutos de celulóide (lembrando muito o caos sócio-político de O Sobrevivente, de Werner Herzog). Um bom exemplo é a inclusão dos insurgentes Karen na reta final (mais rebeldes? Oh-oh...).
O militar anônimo que lidera o pelotão birmanês, o Vilão per se, não é nenhum General Kurtz e quase se confunde com seus subordinados - diferente dos oficiais do alto escalão dos filmes anteriores, verdadeiros aristocratas de fardas impecavelmente engomadas fazendo a revista semestral nas latrinas de seu exército. Consumindo cigarros tediosamente enquanto aldeões são massacrados, aos poucos ele revela um perfil simplório. Institucionalizado, unidimensional e, curiosamente, gay e pedófilo.
Acho que é evidente que Stallone está se tornando um diretor bem interessante. Pelo menos, muito melhor que a maioria dos que já o dirigiram. As cenas de guerra são frenéticas e orquestradas com esmero, sem os vícios action hero típicos, incluindo o nuke de bolso improvisado (uma mina Claymore plantada no pé de uma bomba Tallboy da 2ª Guerra). As nuances dramáticas são breves e sugestivas, balanceando o que Stallone quer fazer com o que ele consegue fazer. Sua abordagem não poderia ser mais sóbria e consciente. Um homem beirando a 3ª idade (06/06/1947) cujo percurso traumático há tempos arrancou sua sanidade dos trilhos - no clímax de um pesadelo, Rambo é morto pelo Cel. Trautman, em alusão à cena deletada do filme original, constante no livro no qual foi baseado.
E pela primeira vez, Sly dá um passo em direção às suas origens, sinalizando positivamente o destino do personagem. Provavelmente o que seria a próxima parada de John antes de ser detido pelo Xerife Will, há 26 anos atrás. Promissor...
Trilha de operações: RATM, Neil Young, AC/DC, Black Sabbath. Nada de "Let The Bodies Hit The Floor".