É sempre difícil comentar sobre um personagem com tanta estrada sem patinar em imediatismos e generalizações, tão comuns nesses tempos do editar/publicar. Mas acho que dá pra mandar essa na boa: em seus quase setenta anos, poucas vezes o
Batman rendeu interpretações tão criativamente peculiares. Em grande parte, em razão de
O Cavaleiro das Trevas e sua proposta revisionista, auto-suficiente e hermética, mas preservando bases cravadas na essência original. Bem,
foi o que foi (e vou parando por aqui senão sai outro review) e quem se aventurar pelos quadrinhos do morcego hoje vai se deparar com um cenário muito diferente e, de certo modo, tão arraigado em seus objetivos quanto o filme - para o bem ou para o mal.
Mas quer saber?
Batman R.I.P., a nova e polêmica saga, periga ser a melhor coisa publicada do herói em anos.
Antes do lançamento,
Grant Morrison, recordista olímpico dos 100 metros de autopromoção, se esmerou no hype. Afirmou em
entrevista ao CBR que faria com o Batman
"algo pior que a morte" e que seria o fim da era Bruce Wayne como o cruzado encapuzado. E ainda falou mais um monte por aí, desmentindo
algumas e se abstendo de
outras. Seja como for, o arco, que está agora em sua 4ª parte (
Batman #679), pode até não ser uma megaprodução, mas demonstra claramente porque Grant Morrison é Grant Morrison e não um Jeph Loeb qualquer.
Leitura instigante, com climão de labirinto conspiratório e uma boa dose de suspense. É quase uma nova forma de desconstruir/demolir o personagem por dentro a partir de elementos tradicionalmente "intocáveis". Afinal, não é todo dia que vandalizam o bom nome da família Wayne.
Spoilers à frente!
Martha e
Thomas Wayne, os pais de Bruce, retratados como junkies, alcoólatras e freqüentadores de orgias. O pequeno Bruce seria fruto do adultério de Martha com
Alfred Pennyworth (sempre o mordomo!). A suspeita de que Thomas teria forjado sua morte e agora seria quem puxa as cordinhas do submundo de Gotham. Esse pacote inflamável enfureceu muitos críticos e fanboys, mas até o presente momento teve seu lugar e motivações dentro do contexto. Certamente, grande parte é apenas armação de vilão recalcado - o problema é que
este vilão em particular parece ter acesso total aos segredos de Bruce. Mesmo a sua suposta identidade soa tão bombástica quanto improvável, visto que ele alega ser o próprio Thomas.
Mas nada pode ser descartado ainda, já que Morrison, perversamente, brinca com as possibilidades. Ao mesmo tempo em que sugere que tudo pode ser obra da
mente depauperada de Bruce (elemento citado pelo roteirista quando
comentou o fato de que o herói vive toda essa loucura desde os anos 30), ele também faz questão de mostrar que se trata de um pesadelo
bem real.
A trama é focada no retorno do misterioso
Black Glove, o "keyzer soze" que tentou assassinar o morcego no arco
League of Heroes, também de Morrison. Sem sair das sombras, ele reúne o perigoso
Clube de Vilões, que aparenta ser liderado pelo
Dr. Simon Hurt. Não fica claro se Hurt é o Black Glove - o verdadeiro antagonista do Batman aqui, considerando que o Clube oferece ameaça real apenas aos bat-sidekicks. Mas pelo andar da carruagem, eu já tenho o meu suspeito principal.
Após o
jump >>
É Jezebel Jet, a bela namoradinha do herói. Vários indícios saltam aos olhos (a primeira a receber um contato do Black Glove; esteve presente no momento do colapso mental de Bruce; convenientemente saiu de cena ao ser capturada; perfeita demais pro sempre trágico Darcnaite). Contudo, são pistas óbvias demais, o que contraria a única qualidade totalmente indiscutível de Morrison: ele pode ser tudo, menos datado. Quem em sã consciência poderia imaginar, p.ex., que
Xorn era o Magneto (estou avaliando imprevisibilidade aqui, não bom senso)? Essa busca pelo ineditismo e soluções inesperadas é justamente o que dá o tom principal de
Batman R.I.P. E nesse quesito, como diria Marcelo Nova,
o passado é o futuro, baby.
O Clube representa não só mais um trampo arqueológico absurdo de Morrison (é composto pelos arquiinimigos do velhuscão
Batmen of All Nations!), como também uma de suas maiores obsessões: a
Era de Ouro.
O próprio visual do bando parece ter sido inspirado na
False Face Society, organização criminosa que o morcego enfrentou em
Batman #152 (dez/1962). Curiosamente, seu líder mascarado se revelava ninguém menos que o
Coringa. Um modelo a ser seguido? Meu palpite é que não, considerando que o palhaço (que, por sinal, está parecendo um
primo do Marilyn Manson) já tem uma função bem definida no arco.
Toda essa gana para encaixar o passado camp/infantil/psicodélico/doidaço do velho Batman na dinâmica atual foi provavelmente o maior
guilty pleasure de Morrison ao escrever a saga. E prepara o terreno para a punchline não só da edição #678, mas também do arco e, se bobear, da década inteira.
O
Batman de Zur-En-Arrh.
Não dá pra ser mais rebuscado que isso.
Sem dúvida, é o carro-chefe da fixação cinqüentista de Morrison em
R.I.P. Enxerto inacreditável de
Batman #113 (fev/1958), história
Batman -- The Superman of Planet X! (haja maconha, Senhor), onde o morcegão é teleportado para o planeta Zur-En-Arrh e ganha poderes ao melhor estilo Superman. Lá ele conhece um Batman wannabe alienígena que se inspirou nele para defender a justiça em seu mundo. A idéia de revisitar esse passado negro (ou seria colorido?) em tempos de Coringa do Heath Ledger e após oitocentas
Crises só poderia ser feito do jeito que foi: tudo não passava de uma indução ilusória na cabeça de Bruce.
A palavra-gatilho
"Zur-En-Arrh" foi criada pelo Dr. Hurt para "desligar" a persona-Batman de sua psiqué. Ao mesmo tempo, Bruce, antecipando um eventual atentado psicológico (claro!), criou uma
identidade-backup, que é o Batman de Zur-En-Arrh.
Infos cedidas pelo infame Batmirim, também resgatado do limbo pré-
Crise - aparentemente, o Mxyzptlk do morcego aqui é apenas um agente de racionalização criado pelo herói. Em outras palavras, um grilo falante.
É certo que antes dessa invocação retrô ante-diluviana, poucos compreenderam de cara o significado de
certas cenas (os que entenderam ou são
freaks ou já estão quase comendo capim pela raiz... dá um tempo!). Ainda mais flutuando soltas dentro da costumeira narrativa fragmentada de Morrison, este David Lynch dos quadrinhos. Ou seja, Morrison é quadrinho que demanda mais que meras folheadas, o que é uma virtude e também um problema. Por mais que seja enriquecedor para o texto e ocasionalmente divertido para o leitor, não é sempre que bate a disposição de sair por aí à cata de referências (é ou não é
Alcofa?!). E o Morrison faz todo o acabamento do roteiro em torno disso.
A propósito, não estou acompanhando nenhum tie-in. Com
Secret Invasion e agregados já sobrecarregando o sistema (neurológico), é
humanamente impossível pra mim. Fora que ainda estou com o bat-radar em frangalhos desde a minha incursão em
World War Hulk. Santos caça-níqueis, Batman!
A arte de
Tony Daniel é competente, mas não surpreendente. Gostei do
novo Batmóvel à Aston Martin (não é nenhum
Tumbler, mas...). E as capas variantes de
Alex Ross são um show à parte. Fazia tempo que o "Capitão Marvels" não se apresentava tão bem em séries regulares.
Fica a expectativa para próxima edição - que está me parecendo muito, muito
divertida - e a resolução da trama que está sendo vendida como "definitiva" na trajetória do morcego. Com dois arcos subseqüentes já engatilhados (um de
Denny O'Neil e outro de
Neil Gaiman!), tudo indica que o velho cruzado vai mesmo
passar o capuz adiante - e, quem sabe, finalmente assumir a posição da sua contraparte na série
Batman do Futuro. Ao meu ver, não seria nada mal. Mas duvido que dure.
Ps: Grant Morrison deve ter pirado com o trailer de Batman: The Brave and the Bold!