Uma coisa é certa: Homem de Ferro 3 (Iron Man 3, 2013) não joga na retranca. O filme é uma surpresa total. Recapitulando, Jon Favreau trouxe uma bagagem muito bem definida quando assumiu a franquia e a mesma se fez sentir em cada frame de Homem de Ferro e Homem de Ferro 2. Houve uma saudável relação de troca entre mitologia e contador. Com Shane Black não foi diferente, por mais heterogêneos que os elementos pudessem parecer. E nem eram tanto assim, afinal. Favreau é cria pop dos anos 2000, enquanto Black foi um dos principais idealizadores do cinema de ação dos anos 80. De tal modo que a bagagem, dessa vez, era pop, mas numa versão estrondosa. Para manter a coesão, prevaleceu a melhor constante da série: o bem-calibrado elenco conduzido por um Robert Downey Jr. tão viciado em dopamina quanto o Wolverine de Rafael Grampá. Ainda assim, os efeitos da nova fórmula foram mais visíveis que uma superdosagem do Extremis do filme.
Homem de Ferro 3 é um curioso exercício de estilo feito pelo cara que criou alguns dos meus heróis de adolescência. É bem interessante fruir o filme por essa perspectiva, ainda que aqueles que nasceram a partir de 1988 (como eles estão se proliferando!) não façam a menor ideia do que eu estou querendo dizer. O ponto é: estreitam-se os laços com o cinema, projetando os personagens e seu universo a um status cada vez mais liberto de suas origens, só que preservando suas características mais caras e sua paixão. O que os torna cinematograficamente mais genuínos, por assim dizer, e com menos fuça de fast-food prensado na chapa por uma joint venture.
O que pode advir disso, no futuro? Filmes "de super-herói" com tramas totalmente originais, sem relação direta com histórias ou arcos pré-existentes? Um universo 100% autossuficiente e independente dos quadrinhos, com legitimidade o bastante para interagir com eles como uma autêntica realidade alternativa from another media? Só Stan Lee sabe.
Por hora, o pacote garante apenas o que estava no anúncio - Shane Black dirigindo um Homem de Ferro. Para bom comedor de pipoca na casa dos 30, a sensação de déjà-vu era até esperada: uma aventura com obstáculos aparentemente intransponíveis para os (as) mocinhos (as), um vilão com delírios de grandeza, conhecedor do potencial destrutivo da mídia e com tentáculos estendidos até a banda podre do sistema e, claro, um ato final nitroglicerínico em uma enorme estrutura de trabalho operário onde os dois pólos finalmente colidem num porrada-palooza que resolve até questões que não podem ser resolvidas via porrada. Black não se furta nem em detonar a casa do herói, ao melhor estilo Máquina Mortífera.
Riggs & Murtaugh approves!
O roteiro, escrito por Black em parceria com Drew Pearce (Pacific Rim), trabalha o protagonista fora do contexto a que todos se acostumaram. Mas antes faz questão de marcar o território em que pisa, resgatando o típico m.o. hedonista de Stark, que já começa o filme estendendo uma festa de reveillon para uma one night stand de responsa com a cientista Maya Hansen (Rebecca Hall). Na mesma tocada, aproveita para reconstituir o background típico do vilão-cientista louco com um Aldrich Killian (Guy Pearce) socialmente disfuncional e sumariamente humilhado pelo herói em seus dias pré-redenção. Clichê, é verdade, mas daquele tipo que funciona pela simplicidade.
A mesma impressão se faz presente na figura do misterioso Mandarim (Sir Ben Kingsley), o clássico antagonista do Homem de Ferro nos gibis, aqui introduzido por flashes televisionados que o vendem como a maior ameaça ao "mundo livre". O que inicialmente gera certa dúvida sobre quem é o vilão principal, tal qual ocorreu com a dupla Ivan Vanko-Justin Hammer na aventura anterior. Mas à medida que a trama avança, os papéis vão sendo gradativamente ajustados - e que papéis.
Também revemos a gangue Stark quase intacta, à exceção da Viúva Negra e do agente Coulson, compreensivelmente indisponíveis. Estão lá o best buddy de Tony, ex-Máquina de Combate e atual Patriota de Ferro, Rhodey (Don Cheadle), o ex-motorista e atual chefe de segurança Happy Hogan (Fraveau, ex-diretor) e a adorável Pepper Potts (a adorável Gwyneth Paltrow), como sempre cobrindo os plantões do chefe/namorado. Mas ao contrário do que parece - e isso é uma constante na franquia - ela não fica relegada ao arquétipo da mocinha em perigo e influi ativamente na história, mesmo nas sequências de ação. E o faz de forma séria, sem autocaricatura, com entrega e conteúdo, inclusive na bonita cena inspirada na irmã do Ayrton Senna, Viviane.
Tudo bem que Pepper é raptada e amarrada lá pelas tantas, tal qual uma pin-up dos anos 40, mas isso ainda é Hollywood... a quase-festa do pijama dela com a fabulosa Rebecca Hall valem por qualquer deslize e minutinhos extras lá na terra de Morpheus.
Essa característica mainstream também se estende à Cheadle, dono de uma grande capacidade dramática, mas aqui a serviço de um thriller de ação dos anos 80 - e se divertindo muito com isso, diga-se. Definitivamente está mais à vontade e afinado com a proposta. A gag em que ele recebe um telefonema de Stark durante uma batida como o "Patriota de Ferro" é ótima. Já Favreau se destaca mais pela imensa humildade aqui demonstrada (artigo raro naquelas colinas) do que pelo perfil canastrão de seu Happy Hogan. A saída meio à francesa foi sob medida.
Obviamente, a produção é esteticamente desnorteante, explosiva e frenética, mas sem muita aderência nos neurônios. É um autêntico blockbuster padrão da Hollywood atual, ainda carente de novos Steven Spielbergs, Ridley Scotts e James Camerons. Podia muito bem ser o Michael Bay ali, sem que isso seja necessariamente algo ruim - e muito menos um elogio. O diferencial é o crossover envolvido: heróis que se arrebentam, sangram, erram, precisam de ajuda e vazam quando estão em desvantagem é herança oitentista do diretor; esses mesmos heróis sendo arremessados de um lado pro outro por uma explosão ou invés de morrerem carbonizados, desmembrados ou retalhados é convenção cartunesca daquele cinemão. Shane Black, por sinal, fez um excelente estudo sobre isso há alguns anos.
Da mesma forma, para espectadores veteranos, colocar Miguel Ferrer como o vice-presidente daqueles estados é entregar o jogo muito antes dos play-offs. Ficou tudo meio óbvio no momento em que seu nariz cruzou a tela. "Let the sun come out, you big, bad G.I. Joe"...
Eventualmente, a tal credibilidade cinematográfica entra em rota de colisão com tudo aquilo que faz os quadrinhos tão apaixonantes para os leitores - e que é aguardado silenciosa e khomeínicamente numa transposição o mais literal possível, ignorando até mesmo o fato de ser uma experiência em celulóide, não celulose. E o que vi em Homem de Ferro 3 foi o prenúncio de uma inssurreição fanboy.
Sabres de luz, pistolas Zillion e nunchakus do Panthro em riste! Morte aos infieis! Excelsior!!
O Mandarim clássico das HQs personificava o velho estereótipo chinês negativo tão disseminado na ficção ocidental de tempos idos, de Ming, o Impiedoso até o Dr. Fu Manchu. Com a escalação de Kingsley e seu visual sugestivo, com calça militar, óculos Ray-ban e pose de “el General”, era fácil chutar que a coisa não seria a epítome da fidelidade. O Mandarim aqui lembra uma batida de frente entre o comandante Fidel Castro e o extravagante Muammar Gaddafi. É um mashup de ditadores terceiro-mundistas que desqualifica até mesmo as raízes chinesas de seu codinome. Parecia até proposital...
Apesar das suspeitas, não cheguei a ir tão longe a ponto de decifrar o "Código Mandarim" antes do tempo. Me perguntava sim, onde um icônico, épico e defasado vilão se encaixaria numa trama já comprometida com Extremis, dra. Hansen e Killian com sua agenda de vingança contra Stark. Seria muito longa pra pouca metragem. Naturalmente, a surpresa foi grande quando a cortina finalmente se abriu, aliada a uma boa dose de incredulidade e confusão. Curti or not curti, eis a questão.
Igual à maioria dos leitores de gibis com barba na cara e contas chegando sem parar, sou um entusiasta dos clássicos. Detesto quando modernizam meus personagens favoritos ou quando pretensamente os "melhoram". Mas tento ser razoável e sensato na medida do possível, pautando minhas opiniões nos resultados práticos. Mandarim era um mastermind megalomaníaco e estilizado cujas motivações arcaicas já não cabem na concepção cinzenta de mundo que se tem hoje. Particularmente, a última vez que o vi em ação nos quadrinhos, semi-repaginado, a coisa terminou muito mal pra ele.
O que fariam agora? Descaracterizariam tudo em nome dos novos tempos? O reciclariam para uma melhor analogia ao cenário atual, com uma China comercialmente aquecida e economicamente instável? Ou mergulhariam como kamikazes na Era de Prata, o fazendo encontrar dez anéis místicos dentro da espaçonave avariada de um dragão alienígena? Realmente esse não é dos personagens mais fáceis de se trabalhar em outro contexto - isso já tinha ficado claro em sua versão "abstrata" na animação O Invencível Homem de Ferro.
Mesmo assim, a saída pela esquerda foi de uma frieza estratégica notável. Ainda mais sabendo que foi aprovada pelo crivo da Marvel Studios, até aqui bastante criteriosa com a adaptação de seus personagens. Essa bateu até o "Sentinela" de X-Men 3. No âmbito narrativo, no entanto, foi genial o recurso do hoax. Impactante e desconcertante ao mesmo tempo, contrariando todas as expectativas. Gostando ou não, ninguém ficou incólume: todos se importaram o suficiente para defender uma opinião a respeito. Tal qual o herói, o espectador também foi arrastado pra fora da sua zona de conforto. Missão cumprida, roteiro.
Ainda acho que o Mandarim daria um grande vilão numa adaptação pra valer (é difícil, não impossível), assim como acho que uma coisa necessariamente não invalida a outra. A facção terrorista Os Dez Anéis realmente existe naquele universo, tendo sequestrado Stark no primeiro filme. E provavelmente não adotaram esse nome porque são fanboys de J.R.R. Tolkien. Killian pode ter se apropriado de uma lenda urbana à Keyser Soze sobre um suposto Mandarim que seria o #1 da organização. Talvez tenha até despertado a fúria do verdadeiro Mandarim, que até então só operava nas sombras, providenciando assim um arqui-inimigo definitivo para futuras sequências.
Sabe o que dizem sobre sonhar...
É notório o quão estreitos são os vínculos de Robert Downey Jr. com o personagem Tony Stark. Chega ao ponto de poucos saberem exatamente onde termina a persona de um e onde começa a do outro. E os filmes anteriores espertamente trataram de deixar isso bem nítido, às vezes até em sacrifício da narrativa. Com as regras ligeiramente alteradas, foi fascinante observar "ambos" despidos de seus superpoderes e comendo poeira ao nível do cidadão comum. Boa parte de Homem de Ferro 3 envereda no formato road movie + cidadezinha do interior, com direito a ajudinha de ilustres desconhecidos, como o hilário "cara da TV" e até um coadjuvante cômico mirim (não-chato, o que já é algo positivo). Chega a evocar o mesmo sentimento de solidariedade popular visto nos filmes do Aranha pelo Sam Raimi - aliás, uma de suas qualidades mais pungentes. E, principalmente, foi uma jornada que serviu para reparação não apenas da nova armadura, mas do próprio Tony, em plena ressaca de Os Vingadores.
Foi uma bela sacada focar o impacto psicológico sofrido por um gênio narcisista convicto após ser atropelado por uma situação muito além de seu controle e compreensão. Deuses, alienígenas, monstros, tecnologias desconhecidas, buracos de minhoca... o estrago pós-traumático beira o colapso total e, apesar de Tony se desconectar do espectador algumas vezes em decorrência disso, rende muito em tridimensionalidade. Afinal batia mesmo um coração lá dentro daquela armadura.
Claro, como fã da obra de Warren Ellis e Adi Granov, eu gostaria que a história fosse adaptada na íntegra, com todo seu potencial intacto, não que o Extremis fosse reduzido a uma mera batidinha de chili com lava. Talvez fosse pedir demais que Tony sofresse tal upgrade, ao invés do downgrade brochante, mas coerente, do final. Fora a negligência criminosa do roteiro ao mandar aquele maravilhoso e vasto catálogo de armaduras direto pro Valhalla. Mas, felizmente, o filme se garante como puro entretenimento à moda (não tão) antiga. Então consigo lidar com tudo isso numa boa.
Talvez com exceção de uma coisa... sem AC/DC?