Nas HQs, os
Novos Mutantes enfrentaram sagas espetaculares e monumentais, mas nenhuma comparada à saga de sua 1ª adaptação para o cinema.
Os Novos Mutantes é sério candidato ao hall (
hell?) dos filmes com bastidores turbulentos – um seleto clube onde se encontram preservados em carbonita
O Portal do Paraíso (1980),
Street Fighter (1994),
A Ilha do Dr. Moreau (1996),
Os Chefões (1996) e
Quarteto Fantástico (2015), entre outros diamantes do ego humano. Porém, ao contrário destes, a culpa não é do diretor
Josh Boone, mas
é das estrelas (
ah, essa foi boa, vai): a produção, que teve início oficial em julho de 2017, sofreu mudanças de direcionamento
após o sucesso de It, ganhou refilmagens para reforçar os aspectos de terror, foi parar na geladeira após a
aquisição da Fox pela Disney, teve vários cortes do estúdio até o derradeiro, em que o cineasta o deixou mais próximo de como foi idealizado originalmente, e sua data de estreia foi adiada só Deus sabe quantas vezes.
Ah, e teve a pandemia.
Amém.
Com esse perrengue todo, surpreende que o filme consiga entregar uma boa horinha e meia de distração – nada que corresponda à expectativa gerada por aquele
longínquo 1º trailer, porém. No geral, forma e conteúdo remetem a um típico piloto de série nos padrões atuais.
Um pouco disso é pelo
timing há muito perdido para a invasão dos super-heróis pelo
streaming nos últimos anos. Outro pouco pelos flutuantes valores de produção sambando pra deixar tudo mais ou menos nivelado. E outro pouquinho pelo roteiro um tanto fugaz, escrito pelo próprio Boone e por
Knate Lee, esticando a trama adaptada da clássica
Saga do Urso Místico, de
Chris Claremont e
Bill Sienkiewicz, enquanto atira umas migalhas ao incerto futuro da franquia.
O primeiro terço da história é conduzido por
Danielle Moonstar (
Blu Hunt), uma jovem nativa Cheyenne que perdeu o pai e todos de sua reserva em um terrível desastre. Acolhida por um abrigo dirigido pela
Dra. Cecilia Reyes (
Alice Braga), Danielle descobre que tem o gene mutante e está no, por assim dizer, "desabrochar" de sua mutação (existem metáforas mais sutis). Ela também descobre que não é a única nessa situação: estão lá os internos
Rahne Sinclair (
Maise Williams),
Illyana Rasputin (
Anya Taylor-Joy),
Sam Guthrie (
Charlie Heaton) e o brasileiro¹
Roberto da Costa (o brasileiro²
Henrique Chagas Moniz de Aragão Gonzaga... ou simplesmente,
Henry Zaga). Isso sem contar o mal que começa a rondar poltergeisticamente pelas instalações.
Como se vê, qualquer peso-galo em terror e ficção-científica já consegue matar todas as charadas do filme só de ler esse plot. Nesses termos, quem esperava um êxtase roteirístico vai fechar o app com sensação de punheta/siririca mal batida. Mas Boone consegue temperar bem esse arroz-com-feijão (putz, perdi a fome) e – aí vai a principal qualidade de
Os Novos Mutantes – ainda é bastante ajudado pelo competente elenco, mesmo com todas as constrições e a limitadíssima dinâmica do roteiro.
O
brit Charlie Heaton (de
Stranger Things) faz uma interessante composição de Sam Guthrie/"
Míssil", com um sotaque carregadíssimo do Kentucky. A sempre carismática Taylor-Joy se diverte como a arredia Illyana/"
Magia", mesmo com a ingrata missão de ressignificar o dragãozinho
Lockheed para o filme. Faltou algum sotaque para a russinha, mas aí já é pedir demais. A estreante californiana Blu Hunt foi uma bela surpresa, juntamente com a excelente Maise Williams (
Arya!). A química entre "
Miragem" e "
Lupina" é, fácil, a melhor coisa do filme, junto com as culpinhas católicas da última.
Já Alice Braga, completamente engessada pelo enredo, exercita uma canastrice nunca antes vista na filmografia da atriz nem aqui, nem em Roliúdi. Faz parte. O que me leva ao brasiliense Henrique
Ch... digo, Henry Zaga.
Mezzo toy-boy,
mezzo alívio cômico, o rapaz esteve em meio a uma controvérsia relacionando o seu Roberto/"
Mancha Solar" à prática de
whitewashing, o que não poderia estar mais longe da verdade.
De fato, seu
casting pode ser o início da quebra de um antigo paradigma que retrata brasileiros invariavelmente como afrodescendentes. Ora, sempre fomos a Pangeia II, a Krakoa adormecida. Além de afrodescendentes, somos nativos indígenas, asiáticos, italianos, alemães, árabes, israelitas, acreanos e por aí vai. Aceitamos até argentinos. Lado a lado ou misturados. E vice-versa.
Nitidamente, faltou ao filme uns trinta minutos a mais para desenvolver melhor o cenário. Afinal, esse núcleo tem alguns dos personagens mais ferrados que vejo em muito tempo. Todas as bagagens pessoais ali são pesadaças e tinham um potencial de assalto psicológico nível
Trilogia-Corpo-Fechado-encontra-Penny-Dreadful-e-tomam-um-porre-no-Bar-Zeitgeist-2020.
Mesmo o verniz de terror prometido nas promos é tênue, talvez para não assustar a PG-13zaiada. No fim, acaba lembrando uma versão ainda mais diluída de
Aterrorizada, aquele John Carpenter light de 2010.
Spoiler devagar, spoiler bem devagarinho
Incomoda ver a Dra. Reyes dando conta sozinha do complexo, de todo o perímetro e de cinco mutantes. Mesmo com seu poder, impraticável. Ainda mais depois que é revelado que o projeto é bancado pelo Nathaniel E$$ex.
Aliás, exterminar uma possível mutante Ômega por representar extremo perigo? Ora, Sr. Sinistro do filme, tire essas fitas pretas que você não merece...
Fim do spoiler devagar, spoiler bem devagarinho
Em que pese a empolgação dos garotos nas cenas de ação e o escopo gigantesco do último ato, a coisa acaba esbarrando no teto baixo do orçamento. Então, tirando por menos a montagem enche-linguiça e a falta de traquejo do diretor com a pancadaria super-heróica, posso dormir tranquilo após afirmar que o quebra final é satisfatório.
E que o
Urso Demônio é quase aquilo que sonhei em adoráveis pesadelos sienkiewiczianos...