quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Zombie de Ouro 2020


Ah, 2020... um ano tão lazarento que não merecia sequer um Zombie de Ouro.

Entre meus planos mais modestos e pueris estava a confecção de um ZdO a prazo, na carona dos Retrospecs mensais. Mas até isso foi pelo ralo, atropelado pelo grande esquemão se-vira-nos-30 que virou a ordem do dia no pós-Carnaval. Não foi brincadeira. Sou mais um a fazer parte dessa massa e termino o ano pior do que comecei, tanto social, quanto profissional, quanto financeiramente.

A incógnita de 2021 já esmurra a porta e é surreal pensar que entre todas as atrocidades do atual governo, o sucateamento da cultura brasileira (que entrou, literalmente, numas Frias) é o menor dos males. Se observar os Retrospecs em perspectiva, dá pra ver claramente minhas energias se esvaindo até a derradeira edição, de outubro.




Apesar dos pesares, confesso que foi viciante fazer essa série de posts. E ainda estou na fase de abstinência.

Mas fora as razões já comentadas, o próprio formato frequentemente se revelava um instrumento de tortura medieval geek/nerd ("comento essa notícia bombástica agora ou seguro até o final do mês, quando ninguém mais dá a mínima?", "revisão de fechamento do mês: apaga essa informação que foi desmentida, essa também, e aquela outra, etc"). Então, provavelmente devo tentar algo mais dinâmico e flexível, como um BZ News em pequenos drops ou algo assim. Afinal, em 2021 precisarei de todo o dinamismo e flexibilidade disponíveis se quiser seguir com essa brincadeira aqui.

Música, filmes, séries, quadrinhos, livros? Quem tem o menor resquício de empatia, solidariedade e instinto de sobrevivência consumiu o máximo que pôde. Consumimos muito. Isso graças aos abnegados artistas, técnicos e criadores, que, se estivéssemos numa realidade justa, estariam agora alçados à categoria de salvadores da humanidade.

Neste ano, não passei um dia sequer sem recorrer aos seus valiosos talentos. E agora vámonos, cabrón!

One – Two – Three – Four!



Discos que mais ouvi


Nas primeiras audições de Quadra, lá no início de 2020, pensei com meus patches do Overdose: "sem chance de alguém bater o Sepultura esse ano." E, de fato, Quadra é o grande álbum de metal de 2020. Não só é o auge de Derrick Green como vocalista, como Top 5 imediato na já extensa discografia do grupo. Um feito do incansável e brilhante músico Andreas Kisser com um providencial "tapinha" do prodígio Eloy Casagrande – simplesmente um dos melhores bateristas em atividade do mundo. Espetacular.





Nunca fui o maior entusiasta da música do Bob Mould pós-Hüsker Dü. Com algumas exceções, lirismo demais e porrada de menos. O que mudou bastante no balaço Blue Hearts, cuja velocidade, barulheira e contestação em vários momentos remete ao inesquecível power trio de Minnesota. Claro, também tem seus momentos mais Sugar, com uma ou outra balada punk, pra descansar as zoreia. Aí sim.





Impressionante como o Body Count segue tão urgente e necessário quanto quando surgiu, há 30 anos. Ainda mais em tempos como esses, com aberrações fascistóides, George Floyds e vítimas da pandemia brotando aos montes a cada esquina do planeta – cenário fértil para o ataque frontal de Ice-T, Ernie C & Cia. Body Count's still in the house...





Para usar um dos termos de 2020, achava que o Run the Jewels já havia atravessado seu platô artístico. Ledo engano. RTJ4 está pau a pau com o brilhante Run the Jewels 2 (2014), mesmo reeditando parte daquela fórmula em vários momentos (convocaram até o rage Zack de la Rocha novamente). Os beats são uma tijolada, os raps certeiros e os samples cuidadosamente selecionados – aquela guitarrinha da "Ether" (Gang of Four) em "The Ground Below" ainda soa inacreditável. Tudo está no seu lugar. Graças a Deus.





Inesperado jogo de volta do Mr. Bungle. Em The Raging Wrath of the Easter Bunny Demo, Mike Patton, Trevor Dunn e Trey Spruance recrutam os medalhões metálicos Scott Ian e Dave Lombardo para uma regravação de uma (dã) demo homônima de 1986. Então, nada daqueles grooves jazzy-Zappísticos do Sêu Bãngou: o negócio aqui é total crossover thrash veloz, furioso, estúpido e divertidíssimo. Partyporradaria do início ao fim!





Entendi lhufas quando as Savages entraram num hiato em 2017, mesmo com dois discos sensacionais e aclamação de crítica e público (cult, mas ainda público). Eis que finalmente chega o debut solo da frontwoman Jehnny Beth e as coisas ficam um pouco mais compreensíveis. O caleidoscópio sonoro de To Love Is to Live é maior que a vida: tem estilhaços pós-punk da antiga banda com ejeções de som industrial e eletrônica minimalista. Muito disso, talvez, devido à lista de notáveis na produção (de Flood ao Atticus Ross) e, claro, à inquietude conceitual da cantora-performer. Um impactante reinício.





Apesar das presepadas, o Grammy acertou em cheio ao indicar Have You Lost Your Mind Yet? como o "melhor álbum de blues contemporâneo". Poucos artistas conseguem transportar aquele feeling roots para o contexto pop atual com tanta classe, fluidez e naturalidade quanto Fantastic Negrito. Além desse discaço, esse ano ele também lançou um EPzinho matador (Black Roots Music), mostrando que nem talento, nem inspiração são problemas. Negrito já figurou no Zombie de Ouro com o excelente álbum anterior e deve seguir figurando sempre que lançar algo novo. Grammy quem?!





Com o Afghan Whigs na geladeira desde a passagem do guitarrista Dave Rosser em 2017, cacei a estreia solo de Greg Dulli com tanta fome que parecia até que o cara estava me devendo grana. E felizmente, não me decepcionei. Numa pegada mais intimista e atmosférica que o habitual, Random Desire demonstra a fluência do cantor/guitarrista em sotaques soul e r&b com melodias doces e evocativas. Como diria Athayde Patrese, "simplesmente um luxo!"





Não queria estar nos sapatos (ou segurando o violão) de Stephen Malkmus. O gênio por trás do ícone indie Pavement sempre será cobrado por um alto standard. Que, humildemente, acho que Traditional Techniques cumpre com louvor. Poucas vezes ouvi um folk moderno tão envolvente e imersivo. Barato garantido.





The Makarrata Project é o 1º álbum do Midnight Oil após um gap de 18 anos. Só por isso já merecia uma menção honrosa, mas o disco também calha de ser fantástico e traz tudo o que fez do Midnight uma banda tão especial. A gravação é cheia de participações de artistas aussies, sendo alguns de ascendência aborígene – o que está diretamente relacionado às questões sociopolíticas que permeiam todas as faixas. Mais atual, impossível. Um registro pungente e emocional.





Foi primeira vez que ouvi a música de Chris Stapleton e devo dizer que fiquei deveras impressionado (e ele deve estar ainda mais, já que faturou um Zombie de Ouro logo de cara!). Starting Over é o quarto registro do cantor e guitarrista do Kentucky e é, digamos asism, um discaço de country. Ou melhor, um blend bem servido de country, bluegrass, southern rock e classic rock. Se sua "xícara de chá" for Allman Brothers, Lynyrd, Glenn Hughes, os Book of Shadows do Zakk Wylde, etc, pode ir sem medo. E cá pra nós... que vozeiraço!





Voivodes me mordam se V não é o melhor álbum do Havok. O quarteto do Colorado já passou por tantas mudanças de formação que é um milagre a fórmula não ter diluído. E ainda foi melhorada. As pancadarias thrash são um arregaço, mas a banda brilha mesmo quando se entrega à sua notória influência de Voivod com todas as suas progressivices sci-fi dissonantes. Rrröööaaarrr!





Heaven to a Tortured Mind é um compêndio envolvendo música lo fi, trip-hop, neo-psicodelia, rock, funk e soul. Todos juntos, amalgamados e shallow now. A deliciosa bagunça é obra do cantor e multi-instrumentista Sean Bowie, nome civil de Yves Tumor. Não dá pra saber ao certo o que se passa na mente torturada do Tumor. Só sei que é qualquer coisa de genial.





Speed Kills, do quinteto britânico Chubby and the Gang é punk 77 pra quem precisa de punk 77. E com uns goles de pub rock (Dr. Feelgood é meu pastor e nenhum chope me faltará). Esporros ultravelozes de um minuto e meio é tudo que precisamos!



Menções honrosas:

Live Forever, do promissor Bartees Strange
Throes of Joy in the Jaws of Defeatism, do Napalm Death
DSM-5, do Blood from the Soul (projeto do Shane Embury)
Fantasize Your Ghost, do ousado duo feminimo OHMME
Outlaws, dos veteranos do hard-de-boteco Rose Tattoo
Strange Lights Over Garth Mountain, da irretocável violonista Gwenifer Raymond (chega a lembrar a saudosa violeira Helena Meirelles)
Forgotten Days, do Pallbearer (o doom mais bonito de 2020)
Visions of Bodies Being Burned, do rapper clipping. (falta isso aqui pro cara acertar a boa)
Weapons of Tomorrow, do Warbringer (o melhor disco de thrash metal puro do ano)
Cycle of Suffering, do grande Sylosis
Optimisme, do Songhoy Blues (sensacional desert blues made-in-Mali)
Cocaine and Other Good Stuff, do Warrior Soul (álbum de covers com uma seleção divertidíssima, mesmo com a produção home studio tosca e o vocal completamente detonado do Kory Clarke)



Sessão de cinema (em casa) do ano


O ano foi generoso. Druk (o Another Round, de Thomas Vinterberg), His House (de Remi Weekes), Last and First Men (de Jóhann Jóhannsson), The Devil All the Time (de Antonio Campos) e Relic (de Natalie Erika James) seriam presenças obrigatórias na minha lista a qualquer tempo. Mas em meio a esses e tantos outros, fico com uma pequena grande produção japonesa de 2017: o surpreendente Plano-Sequência dos Mortos. Ou, em inglês, One Cut of the Dead. Ou, no original カメラを止めるな! (Kamera o Tomeru na!, literalmente, "Não Pare a Câmera!"). Não dá pra comentar muito sem estragar a experiência, mas o filme escrito e dirigido por Shin'ichirô Ueda é bem mais que um filme-de-zumbi-com-câmera-na-mão. É uma genuína e comovente declaração de amor ao cinema como há muito não via. Memorável.

Ps: valeu pela dica, rock4you!



Momento(s) do ano


O final da 2ª temporada de The Mandalorian, óbvio. Só acrescentando que o combo Fatality Luke-capacete-R2-elevador tem barrinha de energia infinita. Verei em 2040 e meus olhos ainda vão marejar.



A temporada final de She-Ra e as Princesas do Poder foi apenas satisfatória, mas cumpriu o prometido e também o não prometido. Catra/Felina (numa bela dublagem da atriz AJ Michalka) é uma das personagens animadas mais complexas e fascinantes dos últimos tempos. E o trabalho da quadrinhista Noelle Stevenson (de Lumberjanes e Nimona) na recriação daquele universo foi absurdamente instigante, grandioso, sagaz e um gigantesco salto para a inclusão e a diversidade dentro da cultura pop. Tudo pontuado, claro, pelo antológico momento Catradora – algo que, confesso, nem sonhava antes do derradeiro episódio duplo, mas agora faço coro: "Catradora é ca-non! Catradora é ca-non! Catradora é ca-non...!"



Série animada subestimada do ano


Essa é fácil: Hilda, uma adorável e divertida adaptação das graphic novels do cartunista britânico Luke Pearson. Lembra um mix de Coraline, Peanuts, Calvin e Harry Potter. O estilo de animação parece um gibi em movimento, as histórias trazem alegorias belíssimas e um subtexto de psicologia infantil extremamente evocativo. A trilha é repleta de artistas indie – o chicletudo tema de abertura é assinado pela Grimes. Até agora saíram duas temporadas pela Netflix e um longa está sendo produzido para o ano que vem. E aí acho que acaba, visto que não terá mais material nas HQs pra adaptar... :´(



Quadrinho do ano


Sapiens: O Nascimento da Humanidade estava na boca do caixa, mas Berlim, de Jason Lutes, foi quem fechou a conta e passou a régua. É quase impossível ler essa obra e, ao fim da experiência, não se sentir mudado de alguma forma – além de assombrado pelas circunstâncias perturbadoramente familiares. Clássico quase instantâneo (começou a ser publicada em 1996). A edição nacional pela Veneta era uma aquisição prioritária, mas a estarrecedora falha de encadernação adiou meus planos. Por pouco tempo...


That's all folks!


Dicas, sugestões & discordâncias na caixa de dicas, sugestões & discordâncias. Agradecemos a preferência.



Pós-créditos

2020 foi um ano tão fidumarapariga que até meu Thanos com a Manopla do Infinito sucumbiu ante uma reles espanada cósmica.

Trágico.



Pelo menos agora o Vader vai ganhar a Guerra!


Adaptação é o que há. Que tal isso como macete pra 2021?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

...Natal!


Mais um dia no escritório Natal típico da guerra civil brasileira.

Cuidem-se.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O retorno dos reis

Peter Jackson liberou uma montagem/prévia de The Beatles: Get Back, com lançamento previsto para 27 de agosto de 2021, via Disney. O doc trará material extraído de 56 horas (!) de filmagens nunca exibidas, confirmando que o baú de inéditas Fab Four é, sim, um poço sem fundo.


Impressionante o nível de preservação do material. Parece que foi gravado semana passada. Acervo histórico, for sure. Imperdível para beatlemaníacos ou, simplesmente, para admiradores de boa, excepcional música.

Aliás, no início do ano, pela 1ª vez, fiz uma maratona cuidadosa pela discografia dos garotos e, pasmem terráqueos!, eles eram realmente impossíveis. A cada disco avançando a passos largos rumo à excelência técnica, lírica & melódica, ficava imaginando a cara do Brian Wilson quando os ouvia na época.

Só que, assim: ainda prefiro os Stones. Mas é porque sou um tosco que gosta de tomar uma ouvindo "Can't You Hear Me Knocking". Ic!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

"Você viu o nascer do sol esta manhã?"


Com essas palavras, levei minha primeira porrada com uma série de tevê. E, quem diria, foi num episódio de Magnum.

Pra situar: na primeira metade dos anos 1980, os seriados americanos – chamados carinhosamente de "enlatados" – eram uma alternativa salvadora ao bandejão de novelas e filmes das décadas de 1950/60/70 reprisados ad nauseum. Em sua maioria, elas tinham uma pegada bem-humorada, sem grafismos ou nada parecido, mas ao menos eram relativamente atuais. E estamos falando de um gap de 1 ano entre o lançamento nos EUA e aqui. O que era inacreditável para aquela época. E inacreditável para esta.

Então, tinhamos lá a nossa cota de Carro Comando, CHiPs, A Super Máquina, Esquadrão Classe A, Duro na Queda, etc... E Magnum. Em comum, todas protagonizadas por heróis no sentido mais clássico da palavra. O Magnum de Tom Selleck era o exemplar perfeito. Detetive particular, festeiro, malandro, mulherengo, um bon vivant com sua coleção de camisas havaianas estoura-retina e eventuais arranhadinhas na quarta parede. Mas também dono de uma extensa ficha militar com seus anos servindo nos Navy SEALs. O cara era durão, mas sem perder a ternura.

Em suma, um genuíno all-american hero, com um inabalável código ético e moral como só os marketeiros yankees sabiam vender. E eles sabiam. Ah, sabiam.

Apesar da linha de trabalho, Thomas Sullivan Magnum III era a quintessência do sujeito boa praça que não media esforços para ajudar um amigo. E que jamais, jamais, daria o primeiro tiro. Aliás, isso era o versículo 0 da Bíblia dos enlatados: leve a justiça, não a execute.

E assim, Magnum seguiu +/- familiar até o episódio duplo que abre a 3ª temporada, "Did You See the Sunrise?". Escrita por Donald P. Bellisario, produtor e co-criador da série, a história traz Magnum e seu velho amigo T.C. (Roger E. Mosley) às voltas com o ardiloso Ivan (o ótimo Bo Svenson), um coronel soviético que fez a dupla comer o pão que o diabo amassou durante a Guerra do Vietnã. Ao final de uma turbulenta trama ao melhor estilo The Manchurian Candidate, Magnum parecia pronto para conduzir Ivan até a mão firme da justiça.

Ou assim pensava aquele molequinho em frente à TV.


Uma cena excepcional até hoje.

Não que Ivan não merecesse – fora tudo o que aprontou, ele ainda foi o responsável pela morte brutal do simpático Mac (Jeff MacKay), que estava na série desde o início. Mas lembro vividamente como foi caótico processar isso que foi uma subversão de tudo que era feito no segmento até então. Era como o primeiro tiro de uma guerra.

E o famoso tema da série, quebrando a crueza da conclusão com seu clima upbeat ensolarado, dava o toque surreal...

Hoje, anos depois de Jack Bauer normatizar esse tipo de coisa umas 35 vezes/episódio, soa até trivial, a despeito do Selleck no modo sangue-nos-olhos. Mortes causadas por um herói a sangue frio-subzero simplesmente não existiam nesse formato. Não ainda. Miami Vice só estrearia dois anos depois. O Homem da Máfia, cinco. E nenhum destes tinha um good guy.

O episódio ganhou uma espécie de cult following ao longo dos anos. Bellisario ainda se diverte ao comentar o impacto da cena.

Magnum podia ser uma das séries mais assistidas, mas não das mais comentadas. Naquela semana, tudo mudou. Pra sempre.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Fogo Contra Fogo, 25 anos

Hoje é aniversário de Heat, não só o melhor filme do Michael Mann, mas um dos melhores filmes de todos os tempos.


O assalto ao carro-forte, a virada pra cima dos investigadores, O Grande Encontro, a mais espetacular sequência de tiroteio da história do cinema, o acerto de contas... Tudo bem orquestrado, orgânico, climático e com pretensões altas, mas pragmáticas. Uma aula de diálogo, narrativa e construção.

E, Mann de Deus, é uma daquelas oportunidades únicas para observar um elenco em estado de graça – e incluo aí até mesmo o Machete Danny Trejo. Isso pra não falar dos próprios Pacino e De Niro, "duas forças da natureza em rota de colisão" numa época em que essa possibilidade parecia virtualmente impossível.

Naqueles dias, nem imaginava que o longa era um remake de um telefilme que o próprio cineasta fez para a NBC seis anos antes. Só sei que saí do cinema completamente torto. Havia sido atropelado. E ninguém anotou a placa do clássico.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A Lenda fica – e o Homem também



Richard Corben
(1940 - 2020)

Se vai Richard Corben, um gigante da ficção científica, do terror e da fantasia. Confesso que preferi esperar um pouco até uma confirmação mais, digamos, oficial. E ela veio, implacável, pela declaração de sua esposa, Dona.

Não é à toa que a notícia só veio alguns dias depois. Com uma vida reservada e de poucas fotos (com aparições em vídeo ainda mais raras), Corben poderia facilmente ter sido o Terrence Malick dos quadrinhos, não fosse uma diferença básica: a carreira tão prolífica quanto longeva. Desenhista, pintor, colorista, roteirista, animador, escultor, um artista completo que tinha entre seus admiradores gente como Alan Moore, Moebius, Robert Crumb, Neal Adams, Druillet e Will Eisner.

É de Corben a 1ª história da 1ª edição da Heavy Metal. Histórico é pouco. Não tenho nenhuma dúvida da sorte de estar aqui no tempo de vida desse mestre. Bem como o fato de que obras memoráveis como Hellblazer: Inferno na Prisão, Banner e Luke Cage MAX não seriam as mesmas sem ele.

E, claro, é sempre bom ter um vislumbre de humanidade em um gênio assim. Sejam nos preciosos momentos em família, sejam nas mesmas dúvidas que todo mundo tem em certo ponto da vida.

Segue um trecho de uma ótima entrevista para a Heavy Metal do Corben quarentão em 1981:
"A maior tragédia da vida é que você não tem sua sabedoria e sua juventude ao mesmo tempo. Quando passei dos trinta, não me incomodou muito, mas passando dos quarenta, estou pensando mais sobre isso. Chegou a hora de fazer uma lista de todas as coisas que você quer fazer da sua vida e depois começar a fazer, porque do contrário será tarde demais. Coisas que eu não consegui alcançar antes, eu me esforço ainda mais. Estou disposto a arriscar mais porque é agora ou nunca!"

Duvido que aquele moleque lá do início teria se decepcionado.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

S. Toppi e as Aventuras de uma Criminóloga


Parece que foi ontem, mas a antológica J. Kendall - Aventuras de uma Criminóloga #11 foi publicada pela Mythos há longínquos 15 anos. Na história "Repouso Eterno", a irresistível bonequinha de luxo/especialista forense Júlia Kendall (bem vinda!) investiga um pavoroso assassinato em uma casa de repouso da fictícia Garden City.

Menos é mais, porém não resisto a comentar que são três subtramas em paralelo. Pessoalmente, não consegui antecipar aquele final nem com meus chutes mais mirabolantes.

"Repouso Eterno" ainda vai além do roteiro sempre inspirado de Giancarlo Berardi: a HQ é marcada pela arte do genial artista milanês Sergio Toppi. Foi uma daquelas ocasiões, por assim dizer, de rara beleza.

Apesar de já ter feito um Martin Mystère aqui e um Nick Raider acolá, Toppi aceitava essas empreitadas mais pela amizade que tinha com o Sergio Bonelli. 300 páginas de um Texone então, nem pensar.

O que é totalmente compreensível.

Como visto nos inebriantes volumes de Sharaz-De, Toppi e o formato limitado de uma publicação convencional – fumetti ainda – não poderiam soar mais dissonantes. Então, essa é uma experiência imperdível tanto por ser Toppi-desenhando-Júlia como pelo exercício de estilo fora de sua zona de conforto.

E um senhor objeto de estudo para qualquer um que se atreva a segurar um lápis com pretensõezinhas supostamente criativas.



Uma maravilha em dosagem (quase) controlada.

Ainda assim, é duro ver um maestro do calibre de Sergio Toppi criminosamente negligenciado no Brasil. Em que pesem os heroicos esforços da Figura Editora, sua bibliografia lançada até aqui ainda é anêmica. O pior é que material compilado em alta definição não falta: a editora francesa Mosquito vive publicando Toppi – piscou, lançou outro álbum. Então não vejo muita explicação que não seja aquele velho amadorismo endêmico que tanto nos queixávamos até... ontem.

Não é, Mythos?

J. Kendall - Aventuras de uma Criminóloga #11 está sendo republicada em formato italiano na série limitada Júlia - Aventuras de uma Criminóloga (já sartando das amarras autorais envolvendo o nome). Porém, num olé monstro que a Mythos aplica em si mesma, Toppi não é sequer mencionado na pré-venda da loja virtual, nem no blog e nem em suas redes sociais. Conferi agora e não tem nada, nadinha.

Júlia-gibi é um troço absurdo. Metanfetaminicamente viciante. Quase impossível largar antes de terminar. Pelo Toppi, então... Um negócio desses era para ser alardeado desde o início do ano. Ou da série. Mas nem tentaram. Estratégia de marketing do mínimo esforço possível.

Como problema pouco é bobagem, não é de hoje que a Mythos tem sérias questões com a qualidade da impressão de seus títulos. Isso era para ter sido sanado nos relançamentos em formato italiano (Júlia, Dylan Dog), que têm a vantagem do miolo em papel offset, mas não foi bem isso que vimos ultimamente.

Ainda assim, não deverá ser pior que a versão anterior, impressa em pisa-pobre numa HP achada no lixão e recondicionada.




Assassinaram sem dó o magnífico chiaroscuro do Toppi. Sad face aqui, por favor.

Aliás, nerd leitor teimoso que sou (já fui mais), fico martelando como seria tão melhor se essa história fosse publicada na Júlia Graphic Novel. Toppi equivale a exatos 10 gazilhões de Antonio Marinetti (titular do nanquim no 1º volume). E assim a qualidade editorial, de impressão e tudo o mais estariam assegurados na jurisdição Prime Edition – afinal, algo tem que justificar aquele infame hot stamp dourado/licença para matar o bolso alheio.

Mas desconfio que a redação da Mythos esteja mais empenhada em outros assuntos. Azar o meu.

Seja como for, sempre terei a Júlia. E as hilárias justas entre ela e o Webb.


Papo antigo...