Ah, 2020... um ano tão lazarento que não merecia sequer um Zombie de Ouro.
Entre meus planos mais modestos e pueris estava a confecção de um ZdO a prazo, na carona dos Retrospecs mensais. Mas até isso foi pelo ralo, atropelado pelo grande esquemão se-vira-nos-30 que virou a ordem do dia no pós-Carnaval. Não foi brincadeira. Sou mais um a fazer parte dessa massa e termino o ano pior do que comecei, tanto social, quanto profissional, quanto financeiramente.
A incógnita de 2021 já esmurra a porta e é surreal pensar que entre todas as atrocidades do atual governo, o sucateamento da cultura brasileira (que entrou, literalmente, numas Frias) é o menor dos males. Se observar os Retrospecs em perspectiva, dá pra ver claramente minhas energias se esvaindo até a derradeira edição, de outubro.
Apesar dos pesares, confesso que foi viciante fazer essa série de posts. E ainda estou na fase de abstinência.
Mas fora as razões já comentadas, o próprio formato frequentemente se revelava um instrumento de tortura medieval geek/nerd ("comento essa notícia bombástica agora ou seguro até o final do mês, quando ninguém mais dá a mínima?", "revisão de fechamento do mês: apaga essa informação que foi desmentida, essa também, e aquela outra, etc"). Então, provavelmente devo tentar algo mais dinâmico e flexível, como um BZ News em pequenos drops ou algo assim. Afinal, em 2021 precisarei de todo o dinamismo e flexibilidade disponíveis se quiser seguir com essa brincadeira aqui.
Música, filmes, séries, quadrinhos, livros? Quem tem o menor resquício de empatia, solidariedade e instinto de sobrevivência consumiu o máximo que pôde. Consumimos muito. Isso graças aos abnegados artistas, técnicos e criadores, que, se estivéssemos numa realidade justa, estariam agora alçados à categoria de salvadores da humanidade.
Neste ano, não passei um dia sequer sem recorrer aos seus valiosos talentos. E agora vámonos, cabrón!
One – Two – Three – Four!
Discos que mais ouvi
Nas primeiras audições de Quadra, lá no início de 2020, pensei com meus patches do Overdose: "sem chance de alguém bater o Sepultura esse ano." E, de fato, Quadra é o grande álbum de metal de 2020. Não só é o auge de Derrick Green como vocalista, como Top 5 imediato na já extensa discografia do grupo. Um feito do incansável e brilhante músico Andreas Kisser com um providencial "tapinha" do prodígio Eloy Casagrande – simplesmente um dos melhores bateristas em atividade do mundo. Espetacular.
Nunca fui o maior entusiasta da música do Bob Mould pós-Hüsker Dü. Com algumas exceções, lirismo demais e porrada de menos. O que mudou bastante no balaço Blue Hearts, cuja velocidade, barulheira e contestação em vários momentos remete ao inesquecível power trio de Minnesota. Claro, também tem seus momentos mais Sugar, com uma ou outra balada punk, pra descansar as zoreia. Aí sim.
Impressionante como o Body Count segue tão urgente e necessário quanto quando surgiu, há 30 anos. Ainda mais em tempos como esses, com aberrações fascistóides, George Floyds e vítimas da pandemia brotando aos montes a cada esquina do planeta – cenário fértil para o ataque frontal de Ice-T, Ernie C & Cia. Body Count's still in the house...
Para usar um dos termos de 2020, achava que o Run the Jewels já havia atravessado seu platô artístico. Ledo engano. RTJ4 está pau a pau com o brilhante Run the Jewels 2 (2014), mesmo reeditando parte daquela fórmula em vários momentos (convocaram até o rage Zack de la Rocha novamente). Os beats são uma tijolada, os raps certeiros e os samples cuidadosamente selecionados – aquela guitarrinha da "Ether" (Gang of Four) em "The Ground Below" ainda soa inacreditável. Tudo está no seu lugar. Graças a Deus.
Inesperado jogo de volta do Mr. Bungle. Em The Raging Wrath of the Easter Bunny Demo, Mike Patton, Trevor Dunn e Trey Spruance recrutam os medalhões metálicos Scott Ian e Dave Lombardo para uma regravação de uma (dã) demo homônima de 1986. Então, nada daqueles grooves jazzy-Zappísticos do Sêu Bãngou: o negócio aqui é total crossover thrash veloz, furioso, estúpido e divertidíssimo. Partyporradaria do início ao fim!
Entendi lhufas quando as Savages entraram num hiato em 2017, mesmo com dois discos sensacionais e aclamação de crítica e público (cult, mas ainda público). Eis que finalmente chega o debut solo da frontwoman Jehnny Beth e as coisas ficam um pouco mais compreensíveis. O caleidoscópio sonoro de To Love Is to Live é maior que a vida: tem estilhaços pós-punk da antiga banda com ejeções de som industrial e eletrônica minimalista. Muito disso, talvez, devido à lista de notáveis na produção (de Flood ao Atticus Ross) e, claro, à inquietude conceitual da cantora-performer. Um impactante reinício.
Apesar das presepadas, o Grammy acertou em cheio ao indicar Have You Lost Your Mind Yet? como o "melhor álbum de blues contemporâneo". Poucos artistas conseguem transportar aquele feeling roots para o contexto pop atual com tanta classe, fluidez e naturalidade quanto Fantastic Negrito. Além desse discaço, esse ano ele também lançou um EPzinho matador (Black Roots Music), mostrando que nem talento, nem inspiração são problemas. Negrito já figurou no Zombie de Ouro com o excelente álbum anterior e deve seguir figurando sempre que lançar algo novo. Grammy quem?!
Com o Afghan Whigs na geladeira desde a passagem do guitarrista Dave Rosser em 2017, cacei a estreia solo de Greg Dulli com tanta fome que parecia até que o cara estava me devendo grana. E felizmente, não me decepcionei. Numa pegada mais intimista e atmosférica que o habitual, Random Desire demonstra a fluência do cantor/guitarrista em sotaques soul e r&b com melodias doces e evocativas. Como diria Athayde Patrese, "simplesmente um luxo!"
Não queria estar nos sapatos (ou segurando o violão) de Stephen Malkmus. O gênio por trás do ícone indie Pavement sempre será cobrado por um alto standard. Que, humildemente, acho que Traditional Techniques cumpre com louvor. Poucas vezes ouvi um folk moderno tão envolvente e imersivo. Barato garantido.
The Makarrata Project é o 1º álbum do Midnight Oil após um gap de 18 anos. Só por isso já merecia uma menção honrosa, mas o disco também calha de ser fantástico e traz tudo o que fez do Midnight uma banda tão especial. A gravação é cheia de participações de artistas aussies, sendo alguns de ascendência aborígene – o que está diretamente relacionado às questões sociopolíticas que permeiam todas as faixas. Mais atual, impossível. Um registro pungente e emocional.
Foi primeira vez que ouvi a música de Chris Stapleton e devo dizer que fiquei deveras impressionado (e ele deve estar ainda mais, já que faturou um Zombie de Ouro logo de cara!). Starting Over é o quarto registro do cantor e guitarrista do Kentucky e é, digamos asism, um discaço de country. Ou melhor, um blend bem servido de country, bluegrass, southern rock e classic rock. Se sua "xícara de chá" for Allman Brothers, Lynyrd, Glenn Hughes, os Book of Shadows do Zakk Wylde, etc, pode ir sem medo. E cá pra nós... que vozeiraço!
Voivodes me mordam se V não é o melhor álbum do Havok. O quarteto do Colorado já passou por tantas mudanças de formação que é um milagre a fórmula não ter diluído. E ainda foi melhorada. As pancadarias thrash são um arregaço, mas a banda brilha mesmo quando se entrega à sua notória influência de Voivod com todas as suas progressivices sci-fi dissonantes. Rrröööaaarrr!
Heaven to a Tortured Mind é um compêndio envolvendo música lo fi, trip-hop, neo-psicodelia, rock, funk e soul. Todos juntos, amalgamados e shallow now. A deliciosa bagunça é obra do cantor e multi-instrumentista Sean Bowie, nome civil de Yves Tumor. Não dá pra saber ao certo o que se passa na mente torturada do Tumor. Só sei que é qualquer coisa de genial.
Speed Kills, do quinteto britânico Chubby and the Gang é punk 77 pra quem precisa de punk 77. E com uns goles de pub rock (Dr. Feelgood é meu pastor e nenhum chope me faltará). Esporros ultravelozes de um minuto e meio é tudo que precisamos!
Menções honrosas:
Live Forever, do promissor Bartees Strange
Throes of Joy in the Jaws of Defeatism, do Napalm Death
DSM-5, do Blood from the Soul (projeto do Shane Embury)
Fantasize Your Ghost, do ousado duo feminimo OHMME
Outlaws, dos veteranos do hard-de-boteco Rose Tattoo
Strange Lights Over Garth Mountain, da irretocável violonista Gwenifer Raymond (chega a lembrar a saudosa violeira Helena Meirelles)
Forgotten Days, do Pallbearer (o doom mais bonito de 2020)
Visions of Bodies Being Burned, do rapper clipping. (falta isso aqui pro cara acertar a boa)
Weapons of Tomorrow, do Warbringer (o melhor disco de thrash metal puro do ano)
Cycle of Suffering, do grande Sylosis
Optimisme, do Songhoy Blues (sensacional desert blues made-in-Mali)
Cocaine and Other Good Stuff, do Warrior Soul (álbum de covers com uma seleção divertidíssima, mesmo com a produção home studio tosca e o vocal completamente detonado do Kory Clarke)
Sessão de cinema (em casa) do ano
O ano foi generoso. Druk (o Another Round, de Thomas Vinterberg), His House (de Remi Weekes), Last and First Men (de Jóhann Jóhannsson), The Devil All the Time (de Antonio Campos) e Relic (de Natalie Erika James) seriam presenças obrigatórias na minha lista a qualquer tempo. Mas em meio a esses e tantos outros, fico com uma pequena grande produção japonesa de 2017: o surpreendente Plano-Sequência dos Mortos. Ou, em inglês, One Cut of the Dead. Ou, no original カメラを止めるな! (Kamera o Tomeru na!, literalmente, "Não Pare a Câmera!"). Não dá pra comentar muito sem estragar a experiência, mas o filme escrito e dirigido por Shin'ichirô Ueda é bem mais que um filme-de-zumbi-com-câmera-na-mão. É uma genuína e comovente declaração de amor ao cinema como há muito não via. Memorável.
Ps: valeu pela dica, rock4you!
Momento(s) do ano
O final da 2ª temporada de The Mandalorian, óbvio. Só acrescentando que o combo Fatality Luke-capacete-R2-elevador tem barrinha de energia infinita. Verei em 2040 e meus olhos ainda vão marejar.
A temporada final de She-Ra e as Princesas do Poder foi apenas satisfatória, mas cumpriu o prometido e também o não prometido. Catra/Felina (numa bela dublagem da atriz AJ Michalka) é uma das personagens animadas mais complexas e fascinantes dos últimos tempos. E o trabalho da quadrinhista Noelle Stevenson (de Lumberjanes e Nimona) na recriação daquele universo foi absurdamente instigante, grandioso, sagaz e um gigantesco salto para a inclusão e a diversidade dentro da cultura pop. Tudo pontuado, claro, pelo antológico momento Catradora – algo que, confesso, nem sonhava antes do derradeiro episódio duplo, mas agora faço coro: "Catradora é ca-non! Catradora é ca-non! Catradora é ca-non...!"
Série animada subestimada do ano
Essa é fácil: Hilda, uma adorável e divertida adaptação das graphic novels do cartunista britânico Luke Pearson. Lembra um mix de Coraline, Peanuts, Calvin e Harry Potter. O estilo de animação parece um gibi em movimento, as histórias trazem alegorias belíssimas e um subtexto de psicologia infantil extremamente evocativo. A trilha é repleta de artistas indie – o chicletudo tema de abertura é assinado pela Grimes. Até agora saíram duas temporadas pela Netflix e um longa está sendo produzido para o ano que vem. E aí acho que acaba, visto que não terá mais material nas HQs pra adaptar... :´(
Quadrinho do ano
Sapiens: O Nascimento da Humanidade estava na boca do caixa, mas Berlim, de Jason Lutes, foi quem fechou a conta e passou a régua. É quase impossível ler essa obra e, ao fim da experiência, não se sentir mudado de alguma forma – além de assombrado pelas circunstâncias perturbadoramente familiares. Clássico quase instantâneo (começou a ser publicada em 1996). A edição nacional pela Veneta era uma aquisição prioritária, mas a estarrecedora falha de encadernação adiou meus planos. Por pouco tempo...
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Pós-créditos