Publicada em
Tex Platinum #4 (outubro/2016), a história
"Em Território Selvagem" já é uma velha conhecida dos brasileiros. Saiu lá fora originalmente em
Maxi Tex #5 (
outubro/2001), foi editada pela
Mythos em
Tex Anual #4 (dezembro/2002), depois na
Platinum e ainda pela
Salvat, no volume 45 da coleção
Tex Gold (março/2020). Nada mal. E merecido. Em pouco mais de 300 páginas, o roteiro de
Mauro Boselli decupa a bem sucedida fórmula do ranger da
Bonelli e experimenta perspectivas fora de seu contexto habitual.
Tudo começa com a descoberta de um cadáver portando uma enigmática mensagem para o
Coronel Jim Brandon, da Polícia Montada Canadense. Para investigar o caso, o jaqueta vermelha vai até o extremo noroeste selvagem, onde desaparece sem deixar vestígios. Logicamente, seus velhos camaradas
Tex Willer e
Kit Carson partem em seu encalço numa jornada até os distantes territórios gelados, com ajuda do boa-praça
Gros-Jean e da guia indígena
Kathy Dawn.
Com essa premissa básica à
Josey Wales, Boselli agrega vários elementos clássicos dos
Texones a algumas inovações muito bem-vindas. Uma delas é a própria Dawn.
Damn, Dawn...
Devo admitir que a personagem balançou alguns sinos da minha memória juvenil. Durante toda a leitura visualizei a jovem Sydney Penny no papel. Certamente pela sua presença marcante em
O Cavaleiro Solitário (
Pale Rider, 1985), clássico Eastwoodiano da Sessão das Dez, como a contestadora guria
Megan Wheele — por sinal, a minha 1ª
"crush" de filmes (
ass.: dogg, the millennial fake). Assim, a bela, carismática e invocada Dawn, envolvida em uma situação mortalmente ambígua, conquista um protagonismo poucas vezes visto em novatos(as) nos enredos dos
pards.
O mesmo se aplica a Jim Brandon, cuja inspiração cinematográfica é destrinchada no
ótimo prefácio de Júlio Schneider. Tipo de extra bacanudo que a Mythos sempre fez muito bem, que conste nos autos. Há sequências generosas dedicadas à odisseia solo do bravo Coronel (incluindo
trips alucinógenas-Blueberryescas de dar gosto) que evidenciam todo o carinho de Boselli pelo cast de coadjuvantes. Difícil sair da leitura sem desejar um título solo do oficial canadense.
E claro que os
vilões também mordem uma gorda fatia da trama. Os violentos indígenas
Jericho,
Ghost e
Nathanael são retratados de forma rústica, mas tridimensional, enfrentando seus próprios desafios logísticos e de pessoal — como a inesperada elaboração do personagem
Sombra-que-Foge, capanga nível Z que precisa se virar sozinho atrás das linhas "inimigas".
Isso também inclui o misterioso chefão
Golden Eye, com um perfil Bondístico que vai além do pseudônimo. Opa,
spoiler?
O genial
Alfonso Font brilha nos desenhos como sempre, mas aqui, parece em estado de graça. Seus
landscapes cobrindo os biomas congelados das montanhas, vales e florestas do Canadá e do Alasca são de tirar o fôlego. É a oportunidade perfeita para o espanhol voar baixo pelo chiaroscuro (repare o contraste entre as cenas noturnas e diurnas e testemunhe a explosão cerebral de Mike Mignola). Também é certeiro nas linhas duras
pero flexíveis e expressivas dos personagens. Tex, em particular, está com um rosto tão sulcado e austero que parece ter saído de um épico de Sergio Leone.
Sem dúvida, artistas mais jovens, como Goran Parlov e Jacen Burrows, beberam muito nesta... Font.
(trocadilho infame na conta do efeito mescalina da arte maioral do Alfonso!)
Um aspecto sempre presente nos gibis do Tex é o dia a dia árduo e sofrido dos heróis retratado da forma mais realista e crua possível. Quanto mais difícil e extenuante, melhor e faz a expressão
"o que vale é a jornada" ganhar contornos bem mais intimistas e imersivos. Aqui não é diferente — aliás, qualquer capa que tenha o Tex com neve até o joelho são um convite irresistível pra mim, pois já sei que os perrengues serão imensos e as reclamações do friento Carson maiores ainda...
Essa abordagem mais orgânica geralmente é limada dos
comics de super-heróis, mas rende horrores em ambientações de época ou pós-apocalípticas. Funciona nas viagens do Conan pela Hiperbórea, funcionava nas tortuosas
road trips de
The Walking Dead (quem não lembra dos protagonistas matando a fome com ração canina e se apertando num trailer fedido a suor e mijo?) e funciona muito nas cavalgadas de Tex pelo Velho Oeste, onde a engenhosidade e as técnicas de sobrevivência são lei. Aqui ele chega ao despojamento de ter as
roupas secando num varal enquanto faz uma pausa para lamber as feridas.
E que pausas. E que feridas.
Um equívoco comum é achar que Tex é um mocinho à moda antiga, daqueles que só atiram na arma ou no ombro dos inimigos. A fama de bom moço realmente o precede. E não descarto motivos como seu inabalável código de honra ou seu compromisso irrestrito com a lei, mas acho que a camisa amarela reluzente tem mais culpa nesse cartório. A verdade é que Tex Willer é um dos
maiores carniceiros que já pisaram numa página de história em quadrinhos.
Em 1997, no livro
Non Son Degno di Tex, o genovês
Claudio Paglieri esmiuçou o
body count do ranger, que passava da casa dos
milhares. Em 2008, o autor fez uma recontagem atualizada e aterradora: até aquele momento, Willer havia levado
78 tiros (sendo
23 na cabeça!!) e despachado nada menos que
2.783 almas para o inferno.
Yippee-ki-yay, motherfucker!
Ao longo de
"Em Território Selvagem", além das baixas em combate direto, o ranger manda vários
evil-nativos para o além numa só tacada (ou, no caso, explosão) com uma frieza e profissionalismo de dar inveja a meninos como Frank Castle e Adrian Chase.
Será que um dia sai um
"Old Man Tex", com o ranger amargando uma velhice à William Munny, de
Os Imperdoáveis? Esse merecia...
TecaLibri: Non Son Degno di Tex