Impressionante como o senso comum é capaz de te afastar de coisas que nunca imaginamos que gostaríamos. Por diversas vezes já deixei de fazer, comprar, participar, assistir, ir ou qualquer outro verbo que tenha embutido o sentido de participação só porque ouvi aqui e ali que tal ato seria um desperdício de tempo. O mais esquisito disto tudo é que não é a primeira vez que sinto isto, pois já houve várias vezes em que o "caramba... se eu soubesse que era assim" veio à mente e mais de uma vez incorri no mesmo erro.
Desta vez o arrependimento de não ter visto no cinema recai sobre O Operário (El Maquinista, 2004, Espanha – é... também não entendi o porquê disto). Não digo que ouvi falar realmente mal a respeito, mas quando os comentários se prendem muito mais ao quanto um ator emagreceu do que sobre o filme em si – cujo adjetivo direto mais recursivo nas opiniões alheias foi "arrastado" – boa coisa não espero do que pode vir. Arrisquei.
E percebi mais uma vez que sou um babaca³.
E que filme bacana! Prometo novamente, de novo e mais uma vez que ouvirei mais às minhas impressões do que ao senso comum. O filme trata de Trevor Reznik (Christian Bale), um operário que não dorme há um ano por motivos que só serão elucidados com o tempo. Sua vida resume-se a ir ao trabalho, passar em uma lanchonete de aeroporto na saída e encontros casuais com uma prostituta "de fé", permeando esta estimulante rotina com o desenvolvimento de um físico cada vez mais raquítico. Em dado momento da vida o cara começa a conversar com um colega de trabalho que, não bastando o fato de transformar sua vida num inferno, faz parecer que o tempo que Reznik ficou acordado dissolveu alguns miolos responsáveis pela percepção de realidade x fantasia.
O desenrolar do filme vai soltando símbolos claros e descarados de que há algo de errado no ar, dando a impressão de que a qualquer momento aparecerá um apresentador no canto da tela dizendo "Olha... isto é uma pista!". Claro, no final tudo é bem e vagarosamente amarrado e, ao invés de se prender na tentativa de construir um final surpreendente, prefere conferir mérito às "provas" pregressas, mostrando como tudo aquilo contribui para o perfil de Reznik, à sua amargura e à opção de viver em meio a losers e atividades que resguardam sua auto-comiseração. Há questões que gostaria de comentar, mas são claramente spoilers, já sabe o esquema de selecionar abaixo, né?
A criação de uma outra personalidade que confira redenção dos pecados não é novidade nenhuma. Este não é o "Big Deal" da coisa... a dupla personalidade, pedra fundamental de uma série de obras que brincam com isto, é minimizada aqui. O filme não nos trata como idiotas a ponto de fingir que não dá para perceber que Ivan e Trevor são a mesma pessoa, muito pelo contrário, deixa que percebamos de forma sutil e respeita nossa inteligência. O negócio é ver como ele faz este julgamento interno. As personalidades convivem, sendo que uma traz consigo a idéia de transgressão sem culpa, tirando da outra o ato hediondo. A outra, que deveria ter conseguido a tal redenção, sucumbe em culpa, tentando limpar a alma literalmente com alvejante toda vez que vai ao banheiro. As personas acusam-se mutuamente e ele percebe que a paz só viria com justiça. Assim ele mata a personalidade transgressora e se liberta numa atitude de redescobrimento e renascimento, mas nem por isto redentora. A paz que tanto buscou só chega quando ele sente que a justiça foi feita. Vemos este tipo de coisa em vários filmes que mostram a necessidade de justiça, mas não estou acostumado a ver esta batalha toda dentro de um homem apenas, mesmo que fragmentado.
Há de convir que não é um roteiro batido – questão que sozinha já merece uma Skol gelada, como diria o chefe. Os elementos que usa até podem ser tão antigos quanto a profissão da sua namoradinha – aquela... a "de fé", mas a forma como são arrumados o torna bem atraente, mas é que nem piada, tem que saber contar. Eu, por exemplo, sou péssimo. Conto e pronto... fico ali olhando a reação do pessoal. Só tenho sucesso quando a piada por si só se basta, mas um amigo meu consegue interpretar a mais idiota delas tão bem, com tantos maneirismos, que se você tiver ouvido 15 vezes a mesma coisa, vai rir mais ainda na décima sexta. Ou seja, para ele não basta ter uma boa história, tem que saber contá-la. E Brad Anderson – diretor de certa forma inexpressivo – sabe contar seu filme. A execução é muito bem acompanhada por diversos aspectos tão bem casados que me pego pensando como é raro ver isto: todos os elementos técnicos normalmente imperceptíveis e passivos têm contribuição ativa para a obra. Da fotografia ao ritmo, passando pelos enquadramentos quebrados e paradas propositais. Não sei se há algum parâmetro técnico que meça ritmo cinematográfico – edição talvez – mas, ao contrário da maioria, onde o ritmo é predefinido e reboca a personagem, aqui a sensação é de que a personagem estabelece o ritmo do filme, como se dissesse pro diretor: "Hey, com'on! Slow down, dude...". A câmera parece a reprodução da vida segundo os olhos de Reznik - a fotografia verde aqui e azul acolá nos coloca dentro de seu mundo insone e turvo. Entramos na estória e dá para imaginar nossa reação a um ano sem dormir e seus efeitos. De uma hora para outra a fisionomia esquálida de Bale parece a coisa mais natural do mundo.
E, já que falei dele, deixe-me cair no lugar comum. Ele simplesmente perdeu 28,5 Kg para compor esta personagem; um rascunho de si mesmo após passar um bom tempo vivendo de uma lata de atum e uma maçã por dia. É uma mudança no ritmo de vida tão brusco que é perceptível no final do filme, quando aparece com o corpo normal e nos faz pensar em quanto tempo teve para emagrecer e ficar daquele jeito, sendo que 4 meses depois teve que ganhar todo o peso de volta e mais 8,5 Kg para o papel de Bruce Wayne. Não bastando, sua atuação é convincente, cansada, perturbada e, sim, arrastada como devia ser. A preocupação que manifesta pela sua decadência física, aliada a algum tipo de resignação - como se seu estado fosse inexorável, insolúvel – é trabalhada de forma cuidadosamente medida, sem parecer forçado ou caricato em nenhum momento. Surpreende. Depois de achar que ele já havia se estereotipado em personagens como os de Psicopata Americano, Equilibrium e SHAFT, voltando ao padrão em Batman Begins, o cara dá uma guinada violenta de projeto, mesmo mantendo o perfil perturbado. Recentemente, só lembro de mudanças tão radicais quando Tom Hanks e Jim Carrey deixaram as comédias para fazerem Filadélfia e Show de Truman, respectivamente, mostrando que tinham talento para papéis mais densos do que os que vinham interpretando até então.
Curiosidade: Trevor Reznik é uma homenagem do roteirista a Trent Reznor, vocalista do Nine Inch Nails. Ele queria colocar músicas do NIN na trilha, mas Anderson achou que quebraria o clima do filme, optou por outra linha, mas deixou o nome.
Jennifer Jason Leigh, a "de fé", também está competente em seu papel, com aquela cara de paisagem de quem está esperando a vida passar para tentar de novo na próxima.
O Operário não é um filme maravilhoso nem tampouco inesquecível, mas é muito bom e destaca-se consideravelmente no cenário atual. E eu gostaria muito de ver Bale em outros papéis como este. O cara sabe fazer muito mais do que distribuir sopapos.
sem relação com o que pode acontecer consigo mesmo"
Margaret C. Graham