Tiraram o Hulk do divã. Se em O Incrível Hulk (The Incredible Hulk, 2008) ainda havia algum resquício de drama psicológico, foi prontamente esmagado na edição final. Mais notadamente uma cena constante no trailer, em que Bruce Banner (Edward Norton) comenta com o Dr. Samson (Ty Burrell) sobre seu problemão complicado. Chega a ser simbólica a retirada da seqüência, entregando o tom que predomina no resto do filme. Menos é mais aqui. Nada de traumas familiares e muito pouco sobre a dualidade do personagem. Sai a tragédia grega e entra luta greco-romana. Porrada de monstro gigante em Nova York. Na contramão do que fez Ang Lee em sua versão do Hulk, o cineasta francês Louis Leterrier limou tudo que fosse mais complexo do que um direto de esquerda - o que corresponde, em essência, por coisa de 70% de tudo que o herói tem a oferecer unilateralmente. Difícil mesmo é saber quem é o pai da criança verde anti-Jungiana aqui presente.
Não é de hoje que a Marvel Studios *** regards for the 2nd full-lenght, motherfuckers *** brada aos sete quadrinhos que o filme seria uma chuva de uppercuts e que Sigmund Freud não passa de um moleque. Ou seja, é projeto comercialmente bem pensado em disputadas reuniões de marketagem, o que eu adoro imaginar como seriam. Afinal, o que é hit hoje em dia? Pra início de conversa, tem de ser compatível com PS3. O resto ainda está pra ser identificado.
O filme também ganhou as tradicionais intervenções do Incrível Norton. Dizem que o ator sabe tudo de Jack Kirby, Stan Lee, Hulk e Base Gama e que seu hobby diário era reescrever partes do script. Ele mesmo declarou que não haveria outra maneira disso acontecer¹, o que revela uma confiança no próprio taco poucas vezes percebida na indústria - mas não tão bem-sucedida, já que a enorme relação de cenas e referências (bacanas!) deletadas quase configuram um novo longa com pegada totalmente diferente. Muito disso se deve ao fato de que O Incrível Hulk, em toda sua simplicidade providencial, é produto de um diretor cujo currículo ostenta produções como Cão de Briga e Carga Explosiva. Nada me tira da cabeça que ele foi um operário que seguiu à risca os memorandos vindos do último andar em envelope azul timbrado.
E realmente impressiona como esta proposta que privilegia o básico rende tanto. Faz parecer que a Marvel ou a Universal tinham esse filme na manga o tempo todo, tamanha a, por assim dizer, 'facilidade' da fórmula. Apesar de estabelecer uma seqüência situacional exata para o filme de 2003, O Incrível Hulk não é uma continuação no sentido usual. As relações aqui estão muito mais estreitas com a telessérie dos anos 70 - incluindo a leve alteração em sua origem, que ficou idêntica - e convergindo com a memorável fase de Bruce Jones nos quadrinhos, por sua vez influenciada pelo seriado. Em que pese também a dispensada geral do (excelente) elenco anterior. Além de Norton e Burrell, a nova escalação muda o discurso e o tom de voz e, mesmo não parecendo tão impressionante, mantém o alto nível.
Liv Tyler confere um espírito docemente emocional a Betty Ross, evitando as arapucas de pieguice espalhadas sorrateiramente pelo roteiro. Qualquer atriz menos atenta cairia fácil ali. E ainda se utilizando do inusitado bom humor de determinadas cenas, Liv constrói uma persona simpática e humana, diferente da introspecção deprê da deusa Jennifer Connelly (que tal um filme alegre, Jen?). Já William Hurt, na minha opinião, ficou com a tarefa mais árdua, que é abordar um personagem há pouco imortalizado por Sam Elliott. Mas no fim das contas, o General Thaddeus E. "Thunderbolt" Ross acabou ficando menos paternalista e muito mais análogo ao perfil do personagem nos quadrinhos. Raposa velha do Exército, o General aqui é um milico escaldado, cínico, com objetivos simples a cumprir e quase nenhum escrúpulo para atingí-los.
Senão vejamos: consegue em pouquíssimo tempo autorização diplomática ou simplesmente invade uma nação soberana - arram - para capturar um fugitivo, monta uma operação militar em larga escala numa área civil e ainda transforma o Harlem num imenso queijo suíço. Provavelmente ele se justificaria na corte marcial dizendo "A verdade...? Você não suportaria a verdade, filho..."
Em uma palavra: espetacular.
Um dos méritos de Louis Leterrier foi defender, com bravura de um terrier, a contratação de Tim Roth, que não constava nos planos originais nem da Marvel, nem de Norton (!). O sujeito é de escola clássica britânica. Trabalha fora da alçada minimalista na qual funciona o cinemão mainstream. É o que salva Emil Blonsky de afundar em sua própria unidimensionalidade. Ele é o retrato de um psicopata em formação, obcecado por auto-superação no campo de batalha. E vê no Hulk mais um reflexo do que ele quer ser do que qualquer outra coisa.
Aliás, o Abominável - que não é "O Abominável", mas apenas Emil Blonsky - rouba a cena. E não me refiro só aos efeitos.
No filme, o vilão não é calcado no design reptiliano dos quadrinhos e suas motivações originais foram pra vala junto com a Guerra Fria. Também se mostra mais forte que o Hulk e, após a transformação, mantém sua personalidade humana quase intacta - ainda que embriagada pelo poder recém-adquirido. O visual é uma aberração genética estranha e interessante (uma batida de frente entre o Louco e o digníssimo D'Compose, dos Inumanóides).
Mas a coisa engrena mesmo quando o monstro chama todo mundo pra porrada com seu vozeirão gutural. Contextualmente é quadrinhos puro. Não é que funciona legal na telona?
E o Hulk. Por mais uma vez, Edward Norton...
...vomita seu monstro interior e busca redenção em experiências de catarse fim-da-linha com sérias implicações físicas. Pela ficha filmográfica do ator, que se especializou em personagens com dupla personalidade (conscientemente ou não), o Hulk seria quase uma instituição suprema. O papel de sua carreira, artisticamente falando. Bom, seja lá como teria sido a química ator/personagem, ficou barrada na edição, já que o filme segue impávido em seu direcionamento simplista. Portanto, sem maiores conflitos psicológicos/evolutivos/existenciais aqui. No máximo, uma amargurazinha pela saudade da vida de cientista bem remunerado e de pegar a filha do cantor do Aerosmith. Banner consegue administrar a existência do Hulk quase numa boa, com ações práticas e um justificado auto-policiamento paranóico.
O primeiro ato do filme é particularmente divertido para nós, gigantes adormecidos. Com pouca estilização, considerando a dinâmica gringa in Brazil, atores locais feiosos e ruins - excetuando a fabulosa Débora Nascimento - e uma dublagem tosquíssima, a comunidade da Tavares Bastos se saiu bem interpretando a Favela da Rocinha. Deu a impressão de que a qualquer momento Bruce Banner toparia com o Capitão Nascimento ali (não topou, mas em compensação levou tapa na cara de Rickson Gracie!). E os rasantes nos morros ficaram sensacionais, principalmente nas cenas de ação. Impressionante até pra nós que estamos acostumados. Imagina então para platéias da Holanda, da Suécia...
Quanto à alardeada pancadaria final de 30 minutos, apesar de fantástica mesmo, não foi tão longa assim. Achei até rápida demais. Hulk partindo um carro ao meio e usando como soco inglês foi ácido puro, cara. Blonsky sentando a bicuda no Verdão e o fazendo varar um edifício também bateu forte na cachola. A treta toda quase sai dos trilhos de tão legal. Quase. Sem pensar muito, dá pra considerar como a melhor luta de uma adaptação cinematográfica de quadrinhos - justamente porque os concorrentes foram, quando muito, apenas corretos neste sentido. Aliás, cabe dizer que muita gente inocente morre ali, fora as não contabilizadas em cena e os pobres soldados que estão aí pra isso mesmo.
Um detalhe interessante é que a certa altura, o iracundo Hulk entra de sola num Emil Blonsky ainda não totalmente modificado (letalmente, portanto), ao melhor estilo "This - is - Espartaaaa!!!!". Coincidência ou não, Peter Mensah, o homem que entrou pra História como o mensageiro persa vitimado pela fúria de Leônidas, está no filme. Essa passou perto, hein Mensah.
O roteiro ainda deixa um cliffhanger esperto para uma continuação com, talvez, o maior inimigo do herói. A citação à mitologia do Capitão América, apesar de exageradamente superficial, foi bem inserida - assim como as pontas bem sacadas do velhinho Stan e do ex-Hulk Lou Ferrigno. E uma cena especialíssima - que eu temia que fosse pós-créditos, mas ainda bem que não - marca a virada definitiva nas incursões dos quadrinhos pelo cinema. Sim, está acontecendo mesmo. Finalmente. "Eles" vêm aí.
O Incrível Hulk é ótimo. É exatamente aquilo se pretendia ser. Anos-luz melhor que Homem-Aranha 3 e os dois Quarteto Fantástico, menos divertido que Homem de Ferro e, em regra, nem de longe tão perfeito quanto será The Dark Knight.
E tenho dito!
Na trilha: compilaçãozinha matadora do Social Distortion. E a certeza de que Liv Tyler é linda, mas Débora Nascimento...