terça-feira, 11 de outubro de 2011

Decifra-me ou devoro-te


Gil Grissom - Houve uma morte recentemente, em uma aldeia do outro lado do mundo. Cada homem da aldeia negou ter participação naquilo. A garganta da vítima foi cortada com uma pá. Um sujeito, que você poderia até chamar de nerd por ciência, mandou todos os homens irem com suas pás ao centro da aldeia e segurá-las com o cabo para baixo. E esperou. Eventualmente, moscas começaram a aparecer numa pá específica, atrás de vestígios microscópicos de sangue e carne.

Sara Sidle - As primeiras testemunhas de um crime.

Grissom - O investigador pegou o assassino...

Sidle - ...e a ciência forense nasceu. Sung T'su, 1235 DC. Você chama 800 anos atrás de "recentemente"?

Grissom - Para um astrônomo, sim.



Um dos aspectos mais marcantes de O Enigma de Outro Mundo - fora seu carnaval gore orgiástico, claro - é sua intrigante narrativa emulando um jogo de gato e rato. Sempre comparei o storytelling do filme à finura de Hitchcock sem o menor problema. Uma linha de eventos dispersos montando lentamente todo um cenário de crescente suspense e paranoia - e o que é melhor, sem nunca entregar a solução assim tão fácil. Pode reparar (considerando aqui o leitor que já assistiu ao clássico de John Carpenter - caso contrário, se desplugue dessa geringonça hi-tech e corra atrás agora!), mesmo quando um dos personagens se revela uma cópia alienígena, a questão pula de "será que ele é uma das criaturas?" para um inquietante "desde quando?".

Os ETs do filme pertencem a uma categoria hoje quase extinta no cinemão pop: a dos vilões inteligentes (Hans Gruber, Alain Charnier, Arthur Jensen e Gordon Gekko mandam lembranças). Quando os aliens copiões mostram que têm inteligência e malícia suficientes para dissimular e cobrir seus rastros, a situação, já tensa, ganha contornos de uma partida de xadrez. Com nada menos que doze personagens suspeitos em cena, fazer a engrenagem funcionar sem falhas foi um desafio formidável para o roteiro adaptado por Bill Lancaster.

É natural fazer vista grossa pra uma ou outra assimilação mais obscura, afinal, roteiro não tem que ser um dossiê - manter o interesse é a prioridade. Mas o puzzle completo realmente existe em O Enigma de Outro Mundo. E inclusive resolve seu maior enigma, no que outrora era considerado o perfeito final ambíguo: Childs estava infectado?

Para responder essa questão, é necessária nada menos que uma minuciosa análise forense, do tipo que nossos amigos Gil Grissom e Sara Sidle costumavam empreender em CSI: Investigação Criminal. A missão foi levada à ponta de faca pelo inglês Rob Ager, do site Collative Learning. Nos vídeos abaixo ele reconstitui, com uma visão sóbria e objetiva, todos os passos da "coisa", destrinchando seu M.O., a ordem das vítimas e até as metáforas escondidas na história. O resultado é estarrecedor.




Já assisti O Enigma de Outro Mundo vinte milhões, oitocentas mil, seiscentas e trinta e duas vezes desde os anos oitenta. Nunca percebi metade dos ganchos que o sr. Ager identificou aí (e que agora parecem tão absurdamente evidentes que só faltam me agarrar pelo pescoço). A honrosa exceção que me difere de um protozoário foi o link das chaves caindo das mãos de Windows com a sabotagem no estoque de sangue. Mas o take revelador no interior da base (culminando na porta aberta onde um certo personagem montava guarda) e a curiosíssima teoria das vestimentas me passaram batidos.

Isso sem contar a brilhante alusão ao jogo de xadrez que abre e fecha o filme. E que não deixa dúvidas. Agora aquele sorriso enigmático de MacReady no finalzinho ganha um significado inteiramente novo e faz todo o sentido do mundo.

Não é exagero dizer que parece até outro filme. O que é espetacular e me faz admirar ainda mais o trabalho de Carpenter, Lancaster e Kurt Russell. Mais ainda, me instigou a reassistir esse filmaço o quanto antes, agora munido com esse brinquedinho novo chamado conhecimento.

Ps I: mr. Ager tem a frustrante mania de vender dvd's com suas análises, dando a elas uma curta vida gratuita no YT. Então fica o aviso - os vídeos são altamente perecíveis.

Ps II: A Coisa, o prelúdio, estreia nessa sexta, lá fora. Por aqui, só no longínquo dia 2 de dezembro. Tomar no cu, hein Universal.

6 comentários:

Alexandre disse...

Para mim, um dos melhores filmes já feitos no gênero sci-fi/terror.
É incrível como ele envelheceu bem, continua sendo atual.
Saudade da época em que tínhamos clássicos como esses saindo nos cinemas.

Alcofa disse...

Falae Dogg!

cara, dia desse revi esse filme em pleno domingão com uma porrada de amigos de longa data e as respectivas esposas. Resultado: ficamos vendo o filme enquanto elas foram passear! kkk

O climão do filme é foda. Atemporal mesmo. Confesso que a única coisa de todas apontadas que eu percebi desta vez (eu não revia o filme há mais de 10 anos, fácil) foi o lance das chaves. Fora isso, boiei. O final é foda. Até hoje me pergunto: ele estava ou não?

Clássico absoluto!

Vamos ver se com esta nova roupagem (e uma das melhores mais lindas da atualidade) o climão volta!

Abração!

doggma disse...

Alexandre: falou e disse. Não mudaria um frame do filme, mesmo se tivesse cacife para tal!

E aê, Alcofa! Tenho que rever ainda, mas com todas as evidências e simbologias apontadas pelo britain aí, acho mesmo que Childs já tinha passado desta pra melhor!

Quanto ao prelúdio, valerá o programa de qualquer forma pela pipoca e mais ainda pela Ramona... mas tento manter a expectativa baixa.

Bernardo disse...

Maldita falta de fluência no inglês! Sem querer incomodar e já incomodando não dava pra expandir o post e fazer um resumão dos pontos levantados pelo gringo? Quanto ao filme, lembro de ter assistido com um amigo na época. Lá pelas tantas o cara disse que ia no banheiro e não voltou mais....rrss. Só a cena da amostra de sangue tem mais suspense que 90% dos filmes de terror inteiros atuais.

doggma disse...

Bernardo, tem que conhecer bem o filme pra associar o nome dos personagens à cada mistério pontual. Mas os highlights foram os seguintes:

- Em pânico, Windows derruba as chaves (a cena só mostra o ruído delas caindo!); Bennings é atacado na mesma sala; assimilado, ele pega as chaves e sabota o estoque de sangue.

- Um longo take simula os passos da "coisa", vindo do corredor, passando pela escada que leva à sala do gerador no porão e culminando na porta onde Childs fazia a vigilância. A porta estava aberta e Childs já não estava mais lá, o que indica que ele foi atacado naquele ponto. E que provavelmente foi ele quem sabotou a energia da base.

- Há evidências de que o alien não imitava roupas. Ele chegou a plantar um pedaço da jaqueta de MacReady perto de uma das vítimas para incriminá-lo. Com sucesso.

- Naquele mesmo take, nota-se a falta de um dos casacos pendurados próximo à porta. Um casaco bege. O mesmo casaco que Childs usava na cena final. Até então ele só usava um azul.

- Ao contrário do que se pensava (heh, do que EU pensava) o Blair que destruiu os equipamentos de radiocomunicação era uma imitação. O objetivo era impedir que os outros enviassem algum aviso para a civilização.

- Na primeira cena do filme, MacReady joga xadrez num computador, perde e vira o copo com whisky no CPU. Na última cena do filme é feita uma metáfora disso, com MacReady oferecendo uma dose de whisky e Childs vira a garrafa. O sorriso de MacReady sugere que ele sacou ali que Childs era o alien. Detalhe: ambos seguravam seus lança-chamas nas mãos. Que final.

Detalhe 2: para o alien, esperar o congelamento era a melhor estratégia (foi assim que foi resgatado da base norueguesa em primeiro lugar). Ou seja... MacReady tava ferrado.

Bernardo disse...

Valeu, cara! Correndo agora pra assistir mais umas vezes e destrinchar tudo sob outra ótica, confesso que não tinha sacado nem o lance da chave. Até animei a comprar o blu-ray, parece que a versão australiana tem legenda em português.