Normal que todo mundo tenha um pouco de bagagem bizarra da infância escondida nos recôntidos mais obscuros da mente. E que muitos desses baús sinistros e empoeirados tenham sido finalmente destrancados e desmistificados conforme o avanço da internet. Eu mesmo tenho vários fantasmas pop que me acompanham desde a pré-adolescência. Uns viraram sonho de consumo, outros foram esclarecidos ou exorcizados. E claro, ainda há um naipe variado e numeroso de mistérios a serem desvendados em seu devido tempo. Um deles finalmente chegou ao fim, após décadas de perguntas sem resposta.
Primeiro, historinha de fundo pra criar clima.
Meados dos anos 80, lá estava eu, um pequeno zumbizinho, assistindo "He-Man e os Defensores do Universo", o último desenho antes da escola. Nada demais, até que num desses dias o desenho (um fenômeno na época) trouxe algumas surpresas. Era um raro episódio duplo, com uma atípica trama de horror. O vilão da vez não era o Esqueleto e nem seus lacaios, mas uma bruxa vampiresca de nome Shokoti. Que, por sinal, quase me fazia mijar nas calças. Hoje a acho até bem gostosa, no estilo undead byatch de Lady Death/Vampirella. Eu ia ali tranquilo, mas isso não vem ao caso agora.
O lance é que na 2ª parte do episódio a trilha sonora estava diferente, incorporando elementos de música eletrônica, ambient e muito experimentalismo. Como eu era um analfabeto musical, não sabia precisar o que estava fora do lugar, apenas que a história, já bem macabra para aquele guri impressionável, ficou seiscentas e sessenta e seis vezes mais aterrorizante!
Nos episódios seguintes a trilha retornou ao seu motif heróico habitual. Mas não em todos. Alguns poucos ainda voltavam àquela trilha de fundo misteriosa e estranhamente evocativa. Curiosamente, era sempre nas histórias onde He-Man enfrentava adversários diferentes de seu arqui-inimigo Esqueleto. Não raro, estreantes em sua galeria de vilões, como Mestre do Jogo, Semente do Mal e o Conde Marzo, além da citada Shokoti (ou "Chucrute", segundo o Aríete). Todos esses fatores juntos conferiam uma sensação de perigo num nível até então inédito, como se o campeão de Etérnia finalmente enfrentasse uma ameaça de fato mortal.
Conspirando contra essa coincidência - à primeira vista (e ouvida) planejada - a nova trilha era nitidamente invasiva, às vezes se sobrepondo à trilha original e tomando seu lugar em fade in. Em vários momentos, as duas trilhas eram executadas simultaneamente, criando uma cacofonia melódica difícil de descrever - era mais ou menos como uma versão sonora do efeito Pokémon. Também era perceptível o sumiço do áudio da ação em certas cenas, deixando apenas a dublagem em português e a trilha freak cobrindo os espaços vazios.
Era muita loucura. E uma verdadeira tortura para um moleque sem Google ou Wikipédia e com professores estressados que não assistiam He-Man.
Décadas passaram (e rápido!). Com a internet, eu ocasionalmente garimpava por infos sobre isso, sem direção e sem sucesso. Achava mesmo que nunca chegaria a descobrir nada a respeito. As buscas, que eram mensais, viraram semestrais, depois anuais, depois... Até que um dia, no lugar mais improvável - numa reprise de Laranja Mecânica - se fez a Luz! Inacreditavelmente, uma das "músicas do He-Man" tocava no filme. Munido com novos parâmetros de busca, voltei à lida e pronto: os primeiros resultados positivos deram as caras. Finalmente.
São três músicas no total. Duas são do grupo Azul y Negro, precursores do tecnopop espanhol (!!). São as instrumentais "Fantasia de Piratas" e "Fu-Man-Chu", ambas do álbum La Noche, lançado em 1982.
Seguem:
Fiz uma pequena busca reversa pra identificar as fontes originais dessa informação. Aparentemente, elas foram destrinchadas primeiro numa comunidade do Orkut especializada em rock progressivo. Os créditos arqueológicos são dos usuários Geraldo Júnior e Rivaldo Lima.
A terceira música, bem mais dark, é uma piração electro/industrial/ambient do compositor norte-americano Walter Carlos. É aí que a coisa fica bizarra meeesmo.
Segue:
"Timesteps" foi composta para a trilha sonora do filme de Kubrick. No álbum oficial da trilha, lançado em 1972, a faixa foi compilada numa versão "excerpt", com pouco mais de quatro minutos. Em sua versão completa, "Timesteps" tem quase 14 minutos, com trechos diferentes que também rolavam no desenho. Sendo assim, essa foi a versão inserida na animação. O detalhe é que essa versão integral só foi lançada no álbum solo de Walter Carlos, lançado também em 72.
Bônus-track sensacionalista: naquele mesmo ano, Walter Carlos mudou de sexo e virou Wendy Carlos!
Alguns episódios com a trilha from hell: "A Semente do Mal", "A Busca pelo O.V.A.F", "A Casa de Shokoti (Parte 2)", "A Busca de He-Man", "O Primeiro e Futuro Duque", "Patas do Mestre do Jogo", "Discos Dourados da Sabedoria" e "Coração de um Gigante". Todos da 1º temporada. Esses eu identifiquei entre downloads e plays no YT. Certamente existem outros.
O consenso (e o bom senso) é que essa trilha - que alterava de maneira sensacional a percepção do desenho - foi inserida apenas na versão brasileira mesmo, pela própria Herbert Richers. Corrobora para isso o fato de que os mesmos episódios na versão original norte-americana (disponíveis no YT) têm a velha e clássica trilha sonora inalterada. Há uma teoria corrente, não confirmada, de que o estúdio brazuca recebeu cópias do desenho com falhas no áudio, então eles tiveram que improvisar durante os processos de dublagem e engenharia de som.
Mas são só especulações que ainda aguardam (muitas) elucidações. Enquanto isso não acontece, vamos imaginando quem era o funcionário maluquinho da Herbert Richers na época que era chegado num tecnopop espanhol e no disco solo experimentalzão do Walter... ou melhor, da Wendy Carlos - e que ainda teve uma malandragem Boss level para incluir esses sons na trilha de um inocente desenho infantil.
Em tempo: entre os fãs, se convencionou chamar os desenhos que tinham essa trilha de episódios psicodélicos do He-Man. O que é até subestimar um pouco o quadro geral. Mesmo sem a trilha "psicodélica", o desenho já era bem doidão e lisérgico por si só...