Mais do que qualquer outro projeto da fase 1 da
Marvel Studios, a ideia de uma adaptação do
Thor era, de longe, a mais cabulosa. Difícil até de visualizar em minhas adaptaçõezinhas
live-action mentais cultivadas em lugares edificantes como filas de banco, ônibus lotados, salinhas de espera e concursos do Banco do Brasil. Tudo bem, um
inventor bilionário numa armadura voadora e um
supersoldado da 2ª Guerra com síndrome de Rip van Winkle foram belas amostras do nonsense que permeia toda essa campanha de adaptações da Marvel, mas ao menos esses tiveram suas conexões com a realidade cimentadas com resquícios empíricos à base de ciência, empreendedorismo e futurismo pra viagem. Já um antigo deus nórdico pagão...
Mesmo com o conceito já filtrado e ocidentalizado pela "versão Marvel" dos precursores
Stan Lee,
Jack Kirby e
Larry Lieber (Thor acabou virando a puta paga do domínio público: a DC
tem dois, a
Image também e até a ilustre
America's Best Comics deu uma bicada), a simples ideia de personagens mágicos surgindo em cena por si já perfaz uma ruptura do, arram, dogma tecnocrata vigente naquele universo cinematográfico. Se contextualmente era um backflip conceitual, comercialmente, porém, parecia o próximo passo lógico a ser dado. Afinal, se Voldemort e Sauron viraram
rockstars, porque não Surtur?
Primeira boa surpresa: a escolha de
Kenneth Branagh para a direção, puro futebol-arte. Quem mais qualificado para ilustrar poder, suntuosidade, loucura, tragédia, horror e dramaticidade épicas (ou divinas?) que o gênio que transmigrou
Hamlet inteiro para um filme de quatro embasbacantes horas que passam voando? O horizonte ficou ainda mais promissor com a descoberta de que Branagh, além de um
excelente vendedor de seus projetos, também era um
profundo conhecedor do terreno em que estava pisando. Pra mim, era razão suficiente para celebrar a vida tomando porres de hidromel nas tavernas mais vis do reino.
Bom,
Thor não teve Surtur, mas teve
Loki, o deus da trapaça e das traquinagens, o Saci-Pererê do folclore escandinavo. Que por pouco não dribla todo o contingente celestial de
Asgard e sai correndo com a taça de melhor personagem debaixo do braço. Toda divindade, mágica e mística foram jogadas na sacola da ciência do imponderável, entre planos interdimensionais e galáxias perdidas éter afora n'algum ponto indefinido das 11 supercordas. Resumindo, não eram deuses, eram astronautas. Enquanto isso, Branagh operava bem abaixo de suas capacidades, relegado quase a um timoneiro de luxo. Não de uma nau de guerra viking, mas de um caríssimo iate multiplex em meio a recifes e corais ameaçadores. Sem dúvida, a firma não quis arriscar e limitou os aguerridos movimentos wagnerianos do homem até o limite da completa descaracterização. Só isso explica porque o tom do filme saiu tão soft. Claro que eu não esperava por um
Valhalla Rising 2: Ragnarök Now, mas esperava menos ainda pelos açucarados cubinhos de comédia romântica que frequentemente se dissolviam na tela.
Mas pensando bem, salvo em reimaginações autorais, o perfil do
Deus do Trovão nos quadrinhos regulares da Marvel nunca foi o do viking primevo e animalesco empunhando um martelo do tamanho de um poste. E em seu universo havia ainda mais conflitinhos pessoais/amorosos do que no filme. Basta lembrar de seus alter-egos com vidas sociais bastante agitadas para um hospedeiro espiritual. O Thor do filme, além de cortar todo o papo furado de identidade secreta disfuncional para os dias atuais (paralelo ao Tony Stark na conclusão de
Homem de Ferro), num primeiro momento faz questão de se auto-afirmar como o
übermensch tanto no céu (Asgard/Jotunheim) quando na terra (Terra). Não o suficiente para configurá-lo como um
überasshole, mas necessário para que sua transformação de um deus para uma
pessoa melhor servisse como o rito de passagem que
Odin tramava para seu filho e sucessor.
Do ponto A (o Thor imaturo e impulsivo) até o ponto B (o Thor paciente e compassivo) poderia muito bem ter sido um combinado entre a graphic
Thor: A Era do Trovão, de Matt Fraction, com o Thor humanista/humanizado do universo Ultimate - especialmente no que tange à sua via crucis terrena.
E não faltam referências ao Cristianismo em
Thor.
Muitos fragmentos da narrativa cristã têm passe livre na história, não só nos subtextos do roteiro, como também no timing, na dimensão dos eventos, nas motivações e principalmente no enorme apelo estético de algumas cenas. Temos lá Odin enviando seu filho à Terra despido de toda sua glória e completamente mortal; temos os amigos recém-feitos que, como bons discípulos hebreus, o seguem e o auxiliam em sua jornada, mesmo reprimidos por forças governamentais; seus ensinamentos meio revolucionários meio transcendentais meio bicho-grilo-mermão a esses mesmos amigos-discípulos; Thor se sentindo abandonado por seu pai todo-poderoso e quase perguntando o porquê disso -
nem precisava -, reeditando uma
famosa cena de sua versão Ultimate; a salvação através do sacrifício; a redenção e a ascensão aos céus; e, claro, a queda do vilão chifrudo do firmamento direto para o buraco (de minhoca?). E com certeza teve mais, muito mais.
Costumo pagar certo pau pro
J.
Michael Straczynski, que co-escreveu a história, mas gosto de pensar nessas analogias mítico-religiosas como um código Morse transgressor que Branagh enviou subliminarmente aos seus admiradores bem debaixo dos narizes dos censores da Disney-Marvel (eu copiei, Branagh, eu copiei, câmbio!). Porque não devia ser do interesse do estúdio bancar um longa com qualquer outra objetivo que não o de acessório promocional para o blockbuster que foi
Os Vingadores. E de todos os filmes dessa primeira safra,
Thor foi o que mais teve cara de brinde.
Isso a despeito dos valores de produção, explodindo na telona com a força de mil megatons nos segmentos passados em Asgard (uma magnífica renderização tridimensional da arte de Walter Simonson - a versão 3D do filme, no entanto, foi uma belíssima porcaria). Nem em meus sonhos marvetes mais psicodélicos pude vislumbrar um reino tão grandioso e deslumbrante, ainda que Bifröst pareça dar direto no Studio 54 em plena efervescência
disco. Poderia até ter saído diferente, mas dificilmente melhorado - é uma ponte de arco-íris, queria o quê?
O mesmo alto padrão criativo se repete no CGI em torno dos Nove Mundos de Yggdrasil, onde o espaço mais parece um óleo sobre tela vivo retratando os efeitos especiais do filme
Contato. A tela verde ainda não é amigável à presença dos atores, mas o espetáculo visual é inegável. Meus olhos saíram de barriga cheia.
Chris Hemsworth provavelmente é o melhor Thor Odinson que o cinema atual poderia vender. Não é como se ele fosse protagonizar a cinebiografia do Laurence Olivier. O filho de Odin é meio como se fosse o Conan ou o Tarzan. Aqui conta mais a postura, o sangue nos óio e o físico do jagunço. Fora que o rapaz nem é ruim, ainda mais beneficiado pelo fato de que a canastrice do Thor dos quadrinhos responde por boa parte do seu charme. E só não blasfemo que
Anthony Hopkins nasceu para interpretar Odin porque esse posto já pertence a um certo psiquiatra glutão. Na época do casting, eu torcia por
Stellan Skarsgård,
por motivos óbvios, mas hoje vejo o quão sábia foi a escolha.
Rene Russo, tadinha e ainda linda, teve suas cenas jazendo no Hel da sala de edição. Entrou muda e saiu quase calada. Não muito diferente da
Frigga nos quadrinhos, por sinal. Já
Colm Feore (esse cara me assusta) também foi desperdiçado, ainda que em menor escala.
Ironicamente, o papel de
Loki era o mais traiçoeiro de compor. Facilmente poderia resvalar no histriônico, unidimensional e clichê. Uma verdadeira armadilha de urso que
Tom Hiddleston soube evitar com notável destreza (lembra dessa expressão, fiel seguidor?
'Nuff said!). Seu Loki é conflituoso por natureza e tem seu caráter questionável, mas também consegue demonstrar dor e amargura diante de sua trágica situação (um imbróglio familiar interplanetário bem à Novos Deuses). No clímax do filme, Hiddleston manda um olhar de "você morreu pra mim" que é de cortar o coração e pendurá-lo em praça pública.
Os
Três Guerreiros renderam a melhor piada do filme e, mesmo sendo esquisito ver um ex-Frank Castle pilotando a barriga do
Volstagg, estavam muito bem caracterizados. Assim como - e comeria feliz - a mulher maravilha
Jaimie Alexander recheando de curvas a armadura de
Lady Sif e segurando o fator
tomboy bem firme na coleira, afinal ela pode virar o interesse romântico do herói a qualquer momento, ou filme.
Idris Elba, ameaçador. Até hoje não sei porquê o auê em torno da cor da pele do homem. A cota foi descarada, sim, mas ele consegue ser sensacional mesmo naquele modelito de rei da bateria. Ah, contextualmente... o
Heimdall do filme não era germânico, nem caucasiano. Nem humano era. Reparou na
altura dele em relação aos outros? Isso posto...
Do núcleo "turma de Asgard", senti falta do Balder. Talvez no próximo. Ou melhor, no próximo
depois do próximo.
Skarsgård fez um melhor negócio ficando na pele do
dr. Selvig mesmo. Além de coadjuvar neste filme, também foi um quase-MacGuffin em
Os Vingadores e ainda pegou a continuação de
Thor. Confesso que é um pouco estranho vê-lo tanto em filmes-pipoca, mas não tanto quanto ver a
Kat Dennings como coadjuvante cômica meio sem ter nada pra fazer ali.
Natalie Portman, que provavelmente ainda será adorável quando tiver uns 105 anos, encabeça o trio improvável com uma
Jane Foster que não é enfermeira, mas uma astrofísica. Papel que ela interpreta com os pés nas costas e fazendo malabarismo com duas tochas, três gatinhos e quatro facas ginsu. Natalie é a Hit Girl da minha geração. E vem matando dragões há muitas eras antes de levar um Oscar pra casa. Foi bom vê-la ganhando uns milhões de doletas só pra se divertir, trocar umas ideias com o Branagh (a razão dela assinar o contrato) e dar uns amassos no galã musculoso. Ela merece.
O que faz
Thor tão coxo quanto o dr. Donald Blake é sua falta de ambição. A cinematografia não chega a ser do tipo TV-movie, como os longas do Quarteto Fantástico, mas também não é muito mais além. A maior parte da verba destinada aos efeitos deve ter ficado nas contas de Asgard, porque na Terra o esquema é muito mais modesto. Toda a destruição do
Destruidor (pleonasmo?) beira o inócuo, principalmente durante as investidas dos Três Guerreiros-mais-a-donzela, quando são simplesmente expelidos de um lado pro outros pelos raios do monstro. Thor conjurando o tornado mais fake do cinema e sua luta virtualmente inexistente com o Destruidor foi a cereja. Ou a framboesa.
Nos quadrinhos, odes eram escritas em torno desse confronto titânico, que durava páginas a fio e, não raro, terminava mal pro loirão. Anticlímax é isso aí.
Sendo um pouco mais chato, o roteiro também não fez muita questão de esconder seus buracos. No ato final, os Três Guerreiros-mais-a-donzela desaparecem sem grandes explicações. Do mesmo jeito, Heimdall, que seria o cara que resolveria a parada ali pro lado dos mocinhos, evapora. E Odin não precisaria fazer absolutamente nenhuma escolha naquele momento, já recuperado do Sono e com seus superpoderes de deus bombando em suas sagradas veias. A impressão é que eles tinham uma agenda nas mãos, uma deadline no pescoço e nenhuma ideia brilhante naquele momento.
Por tudo o que já foi cometido em nome do personagem,
Thor se sobressai com facilidade. Podia ter sido bem melhor? Vastamente. E tinha todas as condições pra isso. Essa permanece sendo minha maior frustração com o filme e que não influi no que ele realmente representa: uma super-produção no mínimo digna daquele Thor das HQs, que mesmo eu, com onze anos de idade, jamais acreditei que um dia sairia daquelas páginas para outro lugar que não fosse a minha imaginação fértil.
Sentimentos fortes no cinema aquele dia. Por um filme que se contentou em ser um mero passatempo.
Thor (EUA, 2011), 115 min.
Direção: Kenneth Branagh
Elenco: Chris Hemsworth, Natalie Portman, Tom Hiddleston, Anthony Hopkins, Stellan Skarsgård, Kat Dennings, Idris Elba, Jaimie Alexander, Ray Stevenson, Clark Gregg, Colm Feore