Hoje, dia 12 de julho, o gibi do Pato Donald completa 65 anos de circulação ininterrupta no Brasil. Desnecessário mensurar o tamanho desse feito nesse país tropical com fortes tempestades econômicas.
Pra comemorar, nada melhor que a chegada de um bando de patos clássicos à coleção.
A Saga do Tio Patinhas e Os 80 Anos do Pato Donald fazem parte de uma série especial de capa dura da Disney publicada pela Editora Abril e que conta também com Dragon Lords: O Reino dos Dragões, O Mistério dos Signos e Era Uma Vez na América. Meu fraco pelos patos facilitou a priorização, mas nem foi tão difícil assim. Há muitos anos afastado dos gibis Disney e passando batido pela coleção O Melhor da Disney: As Obras Completas de Carl Barks, essa foi uma oportunidade de ouro pra ter acesso a uma antologia com material clássico dos personagens.
O HC A Saga do Tio Patinhas, com um belo e certeiro hot stamp dourado na capa, traz os 12 capítulos escritos pelo mestre Don Rosa, acrescidos das 6 histórias complementares lançadas posteriormente. Nos extras, galerias, textos explicativos com a cronologia detalhada, além de duas árvores genealógicas da família pato - uma delas baseada nos trabalhos do próprio Carl Barks e a única onde consta a antológica "foto" do pai de Huguinho, Zezinho e Luisinho.
Além da aventura emocionante, Don Rosa mostra porque é considerado um dos maiores desenhistas dos quadrinhos. Sua arte vibrante, apaixonada e cheia de detalhes justifica a alcunha extra-oficial - e merecidíssima - de "George Pérez dos Patos".
Ou seria o George Pérez o "Don Rosa dos super-heróis"?
Os 80 Anos do Pato Donald é edição histórica per se. 484 páginas, 26 histórias de 15 artistas, dentre eles Carl Barks, Don Rosa, Al Taliaferro e Marco Rota. Precisa mais?
Não costumo chamar quadrinhos de "livros", mas nesse caso a exceção se torna inevitável. É um material realmente de luxo com miolo em papel couché, acabamento com relevo, resistente e visualmente impecável, acima inclusive do padrão utilizado pela Panini nos volumes de Sandman.
Algumas dessas histórias já foram publicadas no Brasil ao longo dos anos (/décadas!), revelando claramente seu objetivo de alcançar os leitores veteranos (/acima dos 30 anos). Tão interessante quanto ver a Editora Abril investindo novamente no público adulto da Disney é ver esse mesmo público correspondendo à altura - público, aliás, carente de publicações desse naipe desde mil novecentos e antigamente.
A procura foi enorme e as edições literalmente evaporaram das bancas, lojas físicas e virtuais, sendo necessárias novas tiragens, que também foram sumindo rapidamente. A quem interessar possa, as últimas ainda estão por aí.
E aproveitando o resgate inesperado de uma das histórias de Os 80 Anos - "No País dos Vulcões" - não pude evitar de dar uma olhadela no ML em busca de um antigo encadernado que marcou a minha infância.
Pato Donald Especial foi lançada em 1975 pela Abril e trazia uma sensacional antologia de obras de Carl Barks. Há muito havia esquecido dela e do título, mas nunca esqueci de quando era guri e viajava para a casa de parentes no interior e um deles (minha irmã mais velha) tinha essa edição na estante. Lia e relia sempre lá na rede do varandão. Foi responsável direta pelo meu gosto pela leitura de quadrinhos.
Encontrei num ótimo preço e num ótimo estado e então foi isso. Déjà vu total, daqueles que só o reencontro com um bom gibi pode proporcionar. Quem curte HQ sabe como é.
Pra arrematar, no mesmo período, adquiri minha 1ª mensal da Disney em... o quê, uns 25 anos (puta merda!). Como consumidor, me senti um peixe pulando pra dentro do barco, mas foi uma barbada: revista Pato Donald nº 2.442 trazendo nada menos que o destino de Dumbela, irmã do Donald e mãe de Huguinho, Zezinho e Luisinho!
Destrinchei ambas num post do blog dos meus amigos d'Os Escapistas.
Agora já posso morrer sossegado. Bem mais pobre (se virem, herdeiros), mas sossegado. Quack!!
Com toda justiça tardia, Miss Marvel finalmente seria a estrela de uma nova edição do Coelhinhas. Essa prometia. Porém, esses planos terrenos foram adiados após uma revisitada incidental numa boa parte da sua cronologia.
Em tempos de feminismos demagógicos e contraditórios, em que os Manos Warner suam a camisa pra encaixar uma diretora no filme da Mulher-Maravilha e onde vemos manifestações dúbias como a Marcha das Vadias e bobagens como o Femen e o Teste Bechdel, a linha do tempo da Miss Marvel pode servir como um exemplo do quão pode dar errado uma personagem feminina sendo escrita por homens. Olhando em perspectiva tudo o que a heroína atravessou num período de três décadas, não tive dúvidas de que se trata de algo que não pode ser ignorado. Pelo contrário... é objeto de estudo.
"Play it, Sam".
Miss Marvel, Binária, Warbird, Capitã Marvel... Carol Danvers é a personagem mais trágica da Marvel. Não tem pra Jean Grey, Elektra Natchios, Wanda Maximoff ou Natasha Romanova. A trajetória de Carol é triste e dramática. Deprimente mesmo. E um exemplo surreal de tenacidade tanto para uma editora negligente quanto para seus leitores, inertes sob a eterna sombra mod de outra loira assombrada das HQs.
Muitos dizem que a Miss Marvel foi uma tentativa da Marvel de criar sua própria Mulher-Maravilha. Em termos de estética e apelo, a lógica parece irrefutável, mas em termos de planejamento editorial, a teoria vai pro espaço em velocidade warp.
Criada em 1968, Carol Danvers era pouco mais que uma damsel in distress para o Capitão Marvel. Descontinuada abruptamente no ano seguinte, ela foi mais uma que conheceu de perto o significado da expressão "depósito das ideias". Reapareceu apenas em 1977, mas com um belíssimo plano de carreira: agora ela seria uma super-heróina com título próprio e também a garota-propaganda da Marvel no apoio à luta pelos direitos das mulheres - e ver o J. Jonah Jameson assumindo o papel do machão chauvinista aindahojeé impagável.
Com a carreira em franca ascensão, Chris Claremont assume o título na 3ª edição, levando o run até seu final, na 23ª - um cancelamento precoce e aparentemente de última hora, com a seção de cartas enfileirando promessas para a "próxima edição" que nunca veio. As ambições da Marvel-Maravilha ficaram suspensas até o século seguinte para que ela engrossasse as fileiras de uma das estrelas da casa: os Vingadores.
Dali em diante, a heroína passaria por uma vida de torturas indizíveis nas mãos de editores e roteiristas sádicos.
Durante toda sua fictícia existência, Carol enfrentou grandes perrengues pessoais, profissionais, espaciais e dimensionais, mas o período 1980-2000 leva o prêmio. Não sei o quanto daquilo foram tentativas de repaginá-la, o quanto foram deficiências de continuidade ou o quanto foi simplesmente um exercício de sexismo. O fato é que Carol passou por coisas que nem um personagem de The Walking Dead passaria.
E o episódio escabroso com Marcus, escrito por David Michelinie, pode ser considerado o round 1.
Marcus era filho do vilão Immortus (resumindo muito, o Kang de um futuro alternativo) e nasceu num limbo entre as dimensões. Para chegar à dimensão da Terra 616, o sujeito simplesmente impregnou a Miss Marvel para nascer nesse mundo. Resultado: Carol, recém-integrada aos Vingadores, sofreu uma gravidez de nove meses comprimida em três dias para dar a luz ao bebê Marcus. Este, após o nascimento, amadureceu igualmente em velocidade acelerada. No fim, ele acabou retornando ao limbo, mas levando consigo uma perdidamente apaixonada Miss Marvel!
Entra em cena mais uma vez Chris Claremont, que ficou bastante insatisfeito com os rumos da personagem. Talvez tentando remediar aquela bizarra situação enquanto justifica a atitude incoerente de sua ex-paladina liberal-feminista, o escritor deu uma inestimável contribuição à máxima "a emenda ficou pior que o soneto". Na solução apresentada por seu roteiro, Carol estava o tempo todo hipnotizada por Marcus - e não no sentido figurado.
Não tinha como ficar pior.
Em suma, Miss Marvel teve seu corpo brutalizado para ser barriga de aluguel e dar a luz a um sujeito que mais tarde a estupraria à revelia num limbo (!). Perto desse, o Doutor Luz fica parecendo um monge capuchinho.
E vamos ao round 2...
Carol eventualmente volta à Terra (seis meses depois), sem lenço, sem documento, sem Vingadores e sem maiores explicações. A recepção de boas-vindas fica por conta de Vampira, então uma vilã estreante das mais ameaçadoras, que comete contra ela um dos maiores crimes impunes da Marvel em todos os tempos.
Nesse ponto cabe algumas breves considerações sobre os efeitos desse acontecimento nos anos que se seguiriam:
1.0 - É sintomático que um dos momentos mais marcantes e icônicos da personagem, que reverberou tanto em outras mídias quanto em saudáveis atividades esportivas, não tenha sido mostrado na época. Originalmente, o ataque foi apenas mencionado no texto de Claremont - fato muito mal remendado 11 anos depois, com os cacos de um roteiro não-finalizado em uma história terrível. Pobre Carol, maltratada até pra sofrer.
1.1 - Irônico observar hoje o quanto isso alavancou a popularidade da então baranguíssima Vampira - promovida a heroína e até a sex symbol - e o quanto serviu pra enterrar ainda mais a carreira da outrora promissora Miss Marvel.
Após uma temporada em coma, sem memória e sem poderes, Carol recebe alguma reabilitação de Charles Xavier, mas fica com profundas sequelas, como a perda da ligação emocional com sua família e seus amigos. Incorporada aos X-Men, Carol teve pouco tempo pra curtir a mansão X: foi capturada pelos aliens da Ninhada e submetida a um violento procedimento de reestruturação genética. Iniciava ali a sua fase como a poderosa Binária. Mas poder ampliado é vendaval e ela logo se viu rebaixada ao nível da Cristal.
Na lona mais uma vez, inexplicavelmente, nossa super-heroína retorna aos Vingadores - os mesmos que davam tchauzinho enquanto ela ia embora com Marcus pro limbo. Velho uniforme, novo code: Warbird, em homenagem aos caças norte-americanos da 2ª Guerra (seus favoritos). Na troca de mansões, Carol leva de brinde um lindo bar com uma farta adega - o que é no mínimo arriscado, visto que um dos frequentadores do lugar é um feliz entusiasta de tais apetrechos.
Após tanta pancada no céu, na terra e até no limbo, não é surpresa a natureza do próximo round:
Alcooooolismoooo!
Carol mergulha de cabeça numa interminável espiral etílica, dando início a uma de suas fases mais sombrias. Apesar das várias tentativas de ajuda de Tony Stark (num retrato angustiante, mas bem realista do estado de sobriedade), a negação mostra que é mesmo a maior inimiga do autocontrole.
Esse foi o lead da minissaga Vingadores versus Krees, de Kurt Busiek e George Pérez. A sequência do confronto final entre os heróis e um grupo terrorista kree é de tirar o fôlego, como é de se esperar vindo da clássica dupla. Com a conhecida explosão de detalhes e a dinâmica frenética de um embate épico, essa foi uma das grandes batalhas dos Vingadores.
O que mais me marcou, contudo, foram as breves intervenções de Carol, inseridas em meio às heróicas cenas de ação. São alguns dos momentos mais cruéis e impiedosamente tocantes que já li num gibi.
Ao contrário de seus ex-colegas de equipe, lá estava uma Miss Marvel impotente, solitária e refém de si mesma, protagonizando uma das lutas mais perdidas das HQs.
Literalmente o fundo do poço - ou do beco - pra quem ficava zigue-zagueando galáxia afora em seus tempos de Binária. A incomum escolha para a condução da aventura também serviu sob medida para o seu desfecho.
Mas o que seria uma saída fácil para os problemas de Carol não se configura - felizmente, do ponto de vista narrativo. Afinal estamos falando de dependência alcoólica aqui. Não existem saídas fáceis, tampouco individuais. Portanto, ainda acompanhamos a Miss Marvel e seu probleminha crônico se esgueirando por mais algumas edições, dessa vez no título solo do Homem de Ferro - quem mais?
Às vezes a Marvel escreve errado por linhas tortas. O porquê disso tudo ter ocorrido com uma personagem com evidente potencial pop é, para mim, um mistério. Fico feliz em ver que não sou o único a se horrorizar com a caótica trajetória de Carol. E fico ainda mais feliz pelo seu rehab editorial. Claro, ela enfrentou alguns problemas sérios depois disso, mas nada desmerecedor de sua importância conceitual.
Atualmente, recém-saída de um bom run escrito por Kelly Sue DeConnick, a heroína trocou mais uma vez de codinome (Capitã Marvel, em homenagem ao saudoso Mar-Vell), cedendo seu antigo Ms. Marvel para a aclamada série da Kamala Khan e sendo enfim tratada como deveria.
Nada mais justo para uma personagem que sobreviveu tantos anos sob o fogo cerrado de seu maior e mais insidioso inimigo, tão bem metaforizado naquela profética edição #21 de sua primeira série solo.