sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

No centenário de Jack Kirby quem faz a festa é você... com os importados


Num mundo perfeito, 2017 seria comemorado pelo público e editoras nacionais de quadrinhos como se fosse o aniversário de alguma grande cidade ou de algum santo padroeiro. Como sabemos, esse foi o ano do centenário de Jacob Kurtzberg (1917-1994), também conhecido como Curt Davis, Jack Curtiss, Lance Kirby (esse é ótimo), Jack Kirby. Ou simplesmente o apelido mítico que ganhou de Stan Lee: "The King".

Do fim dos anos 1950 até o fim dos anos 1970, Kirby dominava. Atualizou a estética e a dinâmica das HQs com uma fúria reformista nunca vista antes - e raríssimas vezes depois. Fez a ponte entre complexidade e simplicidade, desenvolvendo um estilo próprio que o permitia produzir páginas e páginas em ritmo industrial sem oscilar na qualidade. Nunca ninguém produziu tanto em tão pouco tempo quanto Kirby. Era praticamente um Jimmy Page dos gibis. Seu legado para as artes e para a indústria é incomparável, exercendo reflexos vívidos até hoje.

Lá fora, a artilharia Kirbyana foi incessante - não apenas neste ano comemorativo, mas nas últimas décadas. Lançamentos a todo vapor, nada sai de catálogo e a variedade de opções é impressionante. Mesmo.

Apesar disso, não é bem um cenário de reconhecimento que se vê por estas bandas atualmente, a começar por uma boa parcela dos fanboys. Já li cada bobagem sobre a arte de Kirby e ignorância sobre o contexto da época que hoje desconfio que aquelas famosas ponderações de Umberto Eco eram sobre alguns leitores de HQs. Como bem resumiu o Daniel Lopes, do Pipoca & Nanquim: "tolos".

E não ficou muito melhor com o tributo magrinho que a Panini reservou para o ano do centenário com os dois volumes de Lendas do Universo DC: Super Powers, num equívoco seletivo de dar gosto. É material inédito por aqui, certo, mas nada representativo do que foi o Rei no auge. Isso era pra ser lançado bem depois de Quarto Mundo, Kamandi, OMAC e Etrigan, o Demônio, só pra ficar na jurisdição DC. Ou, no mínimo, pra anteceder metade dessas sagas ainda em 2017.

Vão-se os centenários, ficam os importados. Se descaso é mato nessa terra, sejamos os capinadores.



Machine Man - The Complete Collection foi irresistível. Curto demais a versão 1.0 do X-51/Aaron Stack/Homem-Máquina - e de menos o upgrade Inspector Gadget engraçadinho que ele recebeu nos anos recentes. Então foi uma rara oportunidade de fechar tudo que achei legal de um personagem numa tacada só. Ou melhor... em duas.

O calhamaço é graúdo: além das participações no título do Hulk e da Marvel Comics Presents, as 440 páginas também trazem todas as 19 edições da série original do Machine - ou "Mister Machine", como era chamado em sua estreia oficial na quadrinhização do Rei para o clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço, não compilada aqui por conta dos direitos que mofam ad eternum nos cofres da MGM.

E tudo bem que não se trata de um material 100% Kirby. Afinal, ele divide metade da série solo com outro criador peso-pesado - ninguém menos que o genial e genioso Steve Ditko. Excelsior!

Nada mal como uma (Almost) Complete Collection.



The Demon by Jack Kirby é uma que entrou no meu target desde o início da pré-venda. Isso foi lá pelo ano passado, mas pareceu uma eternidade.

Uma baixa terrível, literalmente, de última hora: a substituição da capa original da The Demon #1 (set/1972), clássica e espetaculosa, por uma arte em detalhe que mais parece um flash do Etrigan com enquadramento ruim. Que o autor dessa ideia cumpra uma pena exemplar nos círculos inferiores.

E já que toquei no assunto, a Amazon anda meio salafrária ultimamente. Alguém mais encomendou aquele Cavaleiro das Trevas anunciado com capa prateada e recebeu a versão anterior, com as silhuetas do Batman e do Super?

O TPzão coleta as dezesseis edições originais de The Demon, cuja publicação atropelou os planos ambiciosos do Rei para seu xodó, a megassaga Quarto Mundo - cancelada após o sucesso nas vendas do diabão amarelo. O que, imagino, deve ter deixado Seu Kirby muito enjuriado pela sua demoníaca criação.

Deve ser a maldição do gênio da raça. Fazer o quê, se até pra chupinhar beber em fontes alheias, o Rei dava um show de preciosismo nas referências?

Seja como for, o capeta rimão aportou direto no quadrante 666 da coleção.


Há que se fazer a menção honrosa aos divertidíssimos The Demon vol. 1: Hell's Hitman e The Demon vol. 2: The Longest Day, com a dobradinha Garth Ennis/John McCrea imersa em insanidade e anarquia, e para The Demon: From the Darkness, de Matt Wagner e Art Nichols - provavelmente a melhor história do Etrigan já escrita.

Em outras palavras, o Demônio do Rei Kirby está em excelentes más companhias.


E o Máquina também.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Bebendo com Nocenti


"Bebendo com o Demônio" é, de certo, um conto de Natal que passaria ao longe do know-how criativo do bom e velho titio Stan.

Publicada originalmente em Daredevil #266, num imperdoável maio de 1989, a história ganhou um melhor timing na edição nacional, em Superaventuras Marvel #115, da Abril. Era janeiro de 1992 e a ressaca natalina ainda batia forte. Assinada pela clássica dupla Ann Nocenti-John Romita Jr., "Bebendo com o Demônio" é uma desconstrução daquele clima de paz, amor e solidariedade despejado todo fim de ano em pacotes superficiais e efêmeros.

Com sua vida pessoal em frangalhos e recém-saído de um dos piores momentos - e surras - de sua trajetória de vigilante, o Demolidor estava sem rumo e imerso numa bad trip infernal naquele 24 de dezembro.

A premissa era minimalista: o defensor da Cozinha do Inferno atravessando a noite da maior festa cristã num pub em companhia dos figurantes, dos desajustados, dos caras pequenos, dos outsiders. De todos aqueles amigos da Geni.

Personagens mundanos como uma elegante senhora numa eterna espera romântica, um marido abusivo, um reacionário de meia-idade, dois irmãos que escondem profundas cicatrizes familiares. Todos, por um breve momento, sentindo o gostinho do protagonismo. Que pode ser bem amargo.

“Alguém mordeu a maçã! Ela apodreceu naquele dia!”

Aquele microcosmo impregnado de frustrações, mágoas, angústias e pequenas tragédias humanas foi praticamente um tapete estendido para os leões que rugem na escuridão. Um cenário sob medida para mais uma incursão do diabo-in-chief da Marvel. Na época, Matt Murdock andava às voltas com o insidioso Mefisto por conta do evento Inferno. Àquela altura, a megassaga já havia acabado, mas o rei das trevas não esqueceu.

Disposto a tudo para corrompê-lo psicológica e moralmente, Matt era o 2º grande troféu almejado por Mefisto (sendo o 1º Norrin Radd, o virtuoso Surfista Prateado). Até mesmo a forma assumida pela criatura foi uma pista do que Mefisto era capaz para alcançar seu objetivo - além de servir como alusão a um dos maiores pecados de Matt. Mesmo com a tensão subindo e ruindo tudo e todos ao redor, o vigilante seguia paralisado, inerte com a culpa católica vazando pelos poros.

Nocenti estava implacável com o Demônio.

“Eles se matarão continuamente... sem parar! Morderão as maçãs!
Irmão matará irmão! Continuamente... sem parar!”

É uma leitura marcante, no mínimo. Uma das minhas prediletas.

Sempre me pareceu que uma narrativa com aquele grau de intensidade só podia ser escrita por quem viveu aquilo tudo. Ao menos a versão realística de uma solitária noite de Natal rodeado de estranhos, mas em companhia apenas de seus fantasmas (ou demônios) particulares.

E foi realmente o que aconteceu.


Em 2014, Ann Nocenti contou ao site 13th Dimension como "Bebendo como o Demônio" foi inspirado em fatos reais - e bastante pessoais. Nas entrelinhas, um depoimento de como momentos potencialmente ruins podem se revelar experiências positivas, até mesmo rendendo bons frutos no futuro.

Não precisava disso pra ser uma releitura obrigatória de Natal. Mas que foi a assinatura que concluiu a obra, 25 anos depois, isso foi...


“Pra mim o mundo não tem mais jeito! A maçã está podre! 
Não tem mais volta!”

Feliz Natal e um ótimo 2018.

domingo, 3 de dezembro de 2017

delBoy

Fábula onírica dark é comigo mesmo. Entre a ótima recepção da crítica ao novo do Guillermo del Toro, este Tim Burton do milênio, e a premissa remontando ao clássico da Sessão da Tarde Splash - Uma Sereia em Minha Vida (alô, quarentões: tamo junto), certamente vale a pena ficar de olho nesta pérola.


Mas fica a dúvida: com todas as evidências, seria mesmo um prequel secreto do Abe Sapien - com o mesmo Doug Jones por baixo das escamas - ou Mike Mignola vai ficar ainda mais fulo com o del Toro? Seja como for, só por colocar Michael Shannon e Richard Jenkins na mesma película já ganhou minha atenção.

A Forma da Água tem previsão de estreia por aqui em 11 de janeiro.