Quando o assunto é "filme sobre bandas", uma penca de produções marcantes me vêm à mente: o anárquico Isto É Spinal Tap (This Is the Spinal Tap, Rob Reiner, 1984), o indie Pé na Estrada (Bandwagon, John Schultz, 1996), o nostálgico Quase Famosos (Almost Famous, Cameron Crowe, 2000), o memorável Escola de Rock (School of Rock, Richard Linklater, 2003), o divertido telefilme A Era do Rock (Pop Rocks, Ron Lagomarsino, 2004) e até o besteirol Os Cabeças-de-Vento (Airheads, Michael Lehmann, 1994), entre alguns outros. Todos, sem exceção, sobre grupos fictícios.
Nessa área, provavelmente o mais honesto band movie já feito seja The Commitments - Loucos pela Fama (1991), de Alan Parker, sobre uma banda que, além de nunca ter existido, quebrou o pau e terminou antes mesmo de almejar qualquer coisa. Justo.
Daí fica fácil ver o grande problema de uma biopic sobre uma banda real: condensar em duas horas a natureza caótica, instável e quase sempre contraditória desse bicho muito doido. Pior, formatar isso numa narrativa cinematográfica palatável para zilhões de espectadores sem distorcer (muito) a realidade. Quem chegou mais perto foi o doidivanas Oliver Stone, no controverso The Doors (1991) encaçapando em catarses e montagens a porralouquice lisérgica das portas da percepção - ainda lembro de sair do cinema trocando as pernas - mas não sem quebrar alguns ovos no processo.
Com essa perspectiva, o que Bohemian Rhapsody (2018) faz com a história factual do Queen é um festival internacional do omelete.
Não é à toa que críticos mais austeros e jornalistas musicais se enfureceram com a produção. É realmente uma das cinebiografias menos acuradas da paróquia. Acontece de tudo: histórias radicalmente alteradas ou simplesmente inventadas, personagem-chave que nunca existiu, distorções cronológicas inacreditáveis, omissões graves e por aí vai. Uma parte dá pra entender e perdoar. Outra parte dá só pra entender. E outra parte não dá pra perdoar.
A bagunça veio do berço. A produção já estava bastante problemática com a escalação de Sacha Baron Cohen em 2010, que saiu três anos depois - e até hoje ainda fala um monte. Em seguida, a demissão do diretor Bryan Singer no final de 2017, após completados 2 terços do longa, e a contratação às pressas de Dexter Fletcher, do vindouro Rocketman, a cinebio de Elton John. E como se não bastasse, a marcação cerrada (e errada) das rainhas remanescentes Brian May e Roger Taylor nos rumos do filme.
Com tudo isso, o resultado final de Bohemian Rhapsody chega a ser surpreendente. Motivo: o próprio Queen. Seu "tipo de mágica", sua essência, está lá, impregnando cada frame do longa.
As deliciosas cenas de experimentações/criações musicais emulando zeitgeits e gêneros diversos com intros visuais em toda a sua glória retrô (uma bonita sacada da pós). As personificações fidelíssimas de Gwilym Lee, verdadeiro clone do May, de Ben Hardy como Taylor (e que também daria um perfeito Lars Ulrich saído de uma auditoria contra o Napster) e de Joe Mazzello como o reservado baixista John Deacon.
Além, claro, do indefectível Rami Malek como Farrokh Bulsara, o inesquecível Freddie Mercury - a razão disso tudo aí e a voz de trovão que pôs de joelhos todas as gerações de meados da década de 1970 até há poucos anos... antes de smartphones e redes sociais se tornarem pandemia e saírem emburrecendo geral - mas pela reação efusiva do público jovem presente na sala, esta guerra não está perdida. Ainda.
Da parte das distorcidas que "dá pra entender e perdoar", fico com o cameo de Mike Myers como o pragmático executivo da EMI Ray Foster - o tal personagem-chave que nunca existiu. Seu papel é simbólico, óbvio e absolutamente necessário para a fluidez do filme.
Não é preciso ser um gênio pra presumir que a insistência da banda em fazer de "Bohemian Rhapsody" sua música de trabalho certamente tirou o sono dos executivos da gravadora à época. Ao invés de jogar dezenas de yuppies engravatados em cena, o filme espertamente se concentra numa só entidade. Boa estratégia que cobre os efeitos dramáticos ao mesmo tempo em que sintetiza a velha treta "Rock and Roll vs. Establishment" de tempos mais românticos.
Mais do que isso, faz justiça com Myers e sua inestimável contribuição pessoal na trajetória do hit - que voltou às paradas americanas em 1992 graças a uma sensacional cena sua em Quanto Mais Idiota Melhor (Wayne's World, Penelope Spheeris). Para tanto, o ator enfrentou circunstâncias muito similares às da própria banda no lançamento do clássico. Pode se dizer que ali foi fechado um ciclo.
O famoso milagre de Hollywood, quem diria, às vezes acontece.
Sobre apenas "entender", leia-se: o-caos-cronólogico-provocado-pela-escolha-do-clímax - a histórica apresentação do Queen no Live Aid em 1985. Por razões dramáticas, o filme não só descontextualiza os bastidores do show, como faz uma ponte descabida com a hora mais sombria da vida de Freddie.
E o mais grave: evitando negligenciar a apoteótica passagem do Queen pelo Rock in Rio naquele mesmo ano, o filme credita à Cidade Maravilhosa o show da banda no estádio do Morumbi (SP) quatro anos antes, em março de 1981 - que também foi importante por ter sido o maior público registrado até então em show de uma única banda, mas que ainda está longe do impacto que o evento dos Medina teve na cultura pop mundial.
Essa parte foi imperdoável.
Mas funcionando como uma estranha constante, em Bohemian Rhapsody os fins quase sempre justificam os meios. São tocantes a cena em que Freddie é reconhecido por uma paciente na saída de uma clínica e o momento em que ele se abre para os companheiros de banda. A reconstituição milimétrica da apresentação no Live Aid em quase a sua totalidade é de tirar o fôlego na tela grande. Mereceu mesmo a honra de encerrar esta grande noite na ópera (-rock).
Após o filme, é inevitável um Queen fever, por dias a fio. E vindo de alguém que cultiva essa febrezinha há uns bons 33 anos...
Antes da sessão fiz um pré-aquecimento para saudar a Rainha como se deve.
Primeiro, com a imensa comoção no show do grupo na São Paulo de 1981... Não dá pra deixar de destacar a arrepiante cumplicidade do público em "Love of My Life", homenageada e (bem) elaborada no filme, ainda que dentro de uma bizarra digressão de tempo e espaço.
Depois, nada melhor que uma viajada em Queen Rock Montreal, em show registrado no fim de 1981. Mercury, May, Taylor e Deacon em seu auge técnico e lírico, numa de suas últimas apresentações sem uso de efeitos e músicos de apoio. Só o básico em direção à genialidade.
Simplesmente magnífico.
Claro que não podia deixar de faltar o icônico show do Rock in Rio. Era janeiro de 1985 e testemunhávamos o 1º mega-evento pop de um Brasil ainda provinciano e afundado nas trevas do atraso. Aquele novo e excitante mundo, já bem conhecido lá fora, estava começando a chegar aqui em alto e bom som - ou quase.
Não é exagero afirmar que Freddie Mercury e o Queen foram os garotos-propaganda daquele nosso iniciozinho de era.
Pra finalizar, o antológico show do Queen no Live Aid. Evento beneficente gigantesco e polêmico por si só, merecia um longa-metragem temático à parte. Melhor ainda: uma série padrão HBO e juridicamente blindada.
Recém-saída do Rock in Rio e exaurida pela extensa turnê mundial do álbum The Works, a banda subiu ao palco e lutou a boa luta por uma causa justa. Mesmo em condições físicas adversas e num contexto bem diferente do que estava acostumada, com 20 minutos disponíveis, prensada entre Dire Straits e David Bowie e enfileirando hits como se fossem os Ramones.
Mas, como uma perfeita reviravolta cinematográfica, o Queen veio, viu e venceu, visceral.
Não é só senso comum achar que o Queen roubou o show: sua apresentação foi realmente votada como a melhor performance rock de todos os tempos por insiders da indústria. Eu, que já a reassisti mais vezes do que o sensorial recomenda, não ouso discordar.
God