segunda-feira, 9 de novembro de 2020
Os Velhos Mutantes
Nas HQs, os Novos Mutantes enfrentaram sagas espetaculares e monumentais, mas nenhuma comparada à saga de sua 1ª adaptação para o cinema. Os Novos Mutantes é sério candidato ao hall (hell?) dos filmes com bastidores turbulentos – um seleto clube onde se encontram preservados em carbonita O Portal do Paraíso (1980), Street Fighter (1994), A Ilha do Dr. Moreau (1996), Os Chefões (1996) e Quarteto Fantástico (2015), entre outros diamantes do ego humano. Porém, ao contrário destes, a culpa não é do diretor Josh Boone, mas é das estrelas (ah, essa foi boa, vai): a produção, que teve início oficial em julho de 2017, sofreu mudanças de direcionamento após o sucesso de It, ganhou refilmagens para reforçar os aspectos de terror, foi parar na geladeira após a aquisição da Fox pela Disney, teve vários cortes do estúdio até o derradeiro, em que o cineasta o deixou mais próximo de como foi idealizado originalmente, e sua data de estreia foi adiada só Deus sabe quantas vezes.
Ah, e teve a pandemia.
Amém.
Com esse perrengue todo, surpreende que o filme consiga entregar uma boa horinha e meia de distração – nada que corresponda à expectativa gerada por aquele longínquo 1º trailer, porém. No geral, forma e conteúdo remetem a um típico piloto de série nos padrões atuais.
Um pouco disso é pelo timing há muito perdido para a invasão dos super-heróis pelo streaming nos últimos anos. Outro pouco pelos flutuantes valores de produção sambando pra deixar tudo mais ou menos nivelado. E outro pouquinho pelo roteiro um tanto fugaz, escrito pelo próprio Boone e por Knate Lee, esticando a trama adaptada da clássica Saga do Urso Místico, de Chris Claremont e Bill Sienkiewicz, enquanto atira umas migalhas ao incerto futuro da franquia.
O primeiro terço da história é conduzido por Danielle Moonstar (Blu Hunt), uma jovem nativa Cheyenne que perdeu o pai e todos de sua reserva em um terrível desastre. Acolhida por um abrigo dirigido pela Dra. Cecilia Reyes (Alice Braga), Danielle descobre que tem o gene mutante e está no, por assim dizer, "desabrochar" de sua mutação (existem metáforas mais sutis). Ela também descobre que não é a única nessa situação: estão lá os internos Rahne Sinclair (Maise Williams), Illyana Rasputin (Anya Taylor-Joy), Sam Guthrie (Charlie Heaton) e o brasileiro¹ Roberto da Costa (o brasileiro² Henrique Chagas Moniz de Aragão Gonzaga... ou simplesmente, Henry Zaga). Isso sem contar o mal que começa a rondar poltergeisticamente pelas instalações.
Como se vê, qualquer peso-galo em terror e ficção-científica já consegue matar todas as charadas do filme só de ler esse plot. Nesses termos, quem esperava um êxtase roteirístico vai fechar o app com sensação de punheta/siririca mal batida. Mas Boone consegue temperar bem esse arroz-com-feijão (putz, perdi a fome) e – aí vai a principal qualidade de Os Novos Mutantes – ainda é bastante ajudado pelo competente elenco, mesmo com todas as constrições e a limitadíssima dinâmica do roteiro.
O brit Charlie Heaton (de Stranger Things) faz uma interessante composição de Sam Guthrie/"Míssil", com um sotaque carregadíssimo do Kentucky. A sempre carismática Taylor-Joy se diverte como a arredia Illyana/"Magia", mesmo com a ingrata missão de ressignificar o dragãozinho Lockheed para o filme. Faltou algum sotaque para a russinha, mas aí já é pedir demais. A estreante californiana Blu Hunt foi uma bela surpresa, juntamente com a excelente Maise Williams (Arya!). A química entre "Miragem" e "Lupina" é, fácil, a melhor coisa do filme, junto com as culpinhas católicas da última.
Já Alice Braga, completamente engessada pelo enredo, exercita uma canastrice nunca antes vista na filmografia da atriz nem aqui, nem em Roliúdi. Faz parte. O que me leva ao brasiliense Henrique Ch... digo, Henry Zaga. Mezzo toy-boy, mezzo alívio cômico, o rapaz esteve em meio a uma controvérsia relacionando o seu Roberto/"Mancha Solar" à prática de whitewashing, o que não poderia estar mais longe da verdade.
De fato, seu casting pode ser o início da quebra de um antigo paradigma que retrata brasileiros invariavelmente como afrodescendentes. Ora, sempre fomos a Pangeia II, a Krakoa adormecida. Além de afrodescendentes, somos nativos indígenas, asiáticos, italianos, alemães, árabes, israelitas, acreanos e por aí vai. Aceitamos até argentinos. Lado a lado ou misturados. E vice-versa.
Nitidamente, faltou ao filme uns trinta minutos a mais para desenvolver melhor o cenário. Afinal, esse núcleo tem alguns dos personagens mais ferrados que vejo em muito tempo. Todas as bagagens pessoais ali são pesadaças e tinham um potencial de assalto psicológico nível Trilogia-Corpo-Fechado-encontra-Penny-Dreadful-e-tomam-um-porre-no-Bar-Zeitgeist-2020.
Mesmo o verniz de terror prometido nas promos é tênue, talvez para não assustar a PG-13zaiada. No fim, acaba lembrando uma versão ainda mais diluída de Aterrorizada, aquele John Carpenter light de 2010.
Spoiler devagar, spoiler bem devagarinho
Incomoda ver a Dra. Reyes dando conta sozinha do complexo, de todo o perímetro e de cinco mutantes. Mesmo com seu poder, impraticável. Ainda mais depois que é revelado que o projeto é bancado pelo Nathaniel E$$ex.
Aliás, exterminar uma possível mutante Ômega por representar extremo perigo? Ora, Sr. Sinistro do filme, tire essas fitas pretas que você não merece...
Fim do spoiler devagar, spoiler bem devagarinho
Em que pese a empolgação dos garotos nas cenas de ação e o escopo gigantesco do último ato, a coisa acaba esbarrando no teto baixo do orçamento. Então, tirando por menos a montagem enche-linguiça e a falta de traquejo do diretor com a pancadaria super-heróica, posso dormir tranquilo após afirmar que o quebra final é satisfatório.
E que o Urso Demônio é quase aquilo que sonhei em adoráveis pesadelos sienkiewiczianos...
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11 comentários:
Juro que tava preparado p/ ler um texto de descarrego, mas olha... Me surpreendi mais porque acho que a gente pensa parecido. Não vi esse filme ruim que a torcida do Flamengo e do Corinthians andam despejando chorume. Até tirei as teias de aranha entre os dedos e redigi umas linhas sobre isso:
http://osescapistaspodcast.com.br/?portfolio=faixa-bonus-3-o-gambito-da-magia
Como complemento da caracterização dos personagens, poderiam ter usado daquele recurso do gibi quando, em uma página isolada, víamos as notas de Xavier sobre cada um. Pegava o Bill Sienkievitz que tava pinto no lixo c/ esse filme, pedia p/ ele fazer umas artes, tocava uma animação desanimada e uma narração em off da Dra. Reyes... e vamo ser feliz. Provavelmente, nem seria algo caro.
Abraço.
Whoa, que postulado... Como nos velhos tempos! Ficou show de bola. E me atualizou sobre várias paradas. Vou correr atrás de tudo issaê.
Não achei a parte dos comentários, então vou responder aqui mesmo.
Sobre os Mutuninhas, meu queixo caiu com efeito bullet-time... Muitos pontos em comum em nossas visões e até nas palavras escolhidas. Dividimos uma consciência coletiva e nem tava sabendo!
Ah, estão despejando chorume no filme? Esperavam um Novos Mutantes Ultimato, só pode. E hoje em dia, é oito ou oitenta pra tudo, impressionante. Visão monocromática perde.
Muito bacana essa proposta narrativa usando o 5&20. E ele fez inúmeros brainstorms com o Boone durante a produção. Vai saber o que ficou pelo chão da sala de edição entre todas aquelas idas e vindas.
Cotoveladas!
Você reclamando do Blogger... Não queira cair nas garras do Wordpress. Para conseguir modular o tamanho da fonte do texto, tive que pesquisar e instalar um aplicativo para acionar essa função no editor. Uma caixa de comentários deve vir quando conseguir um PHD em física quântica.
[Bom, nem tanto... É que o espaço adequado seria a seção blog, mas já uso para o podcast, onde já tem uma caixa de comentários. O lance é que não queria misturar as duas coisas, aí vi que tinha esse seguimento de portfólio e daria para publicar meus textos lá. Vou ver se consigo instalar... se bem que só dinossauros como a gente - e isso incluo seus leitores aqui - ainda se dão o trabalho disso.]
Sobre o Bill, pois é... Achei estranho. Imaginei que o filme beberia pesado da fonte, mas se quer mesmo saber, achei mais uma premissa com pedigree Bendis do que Claremont/Sienkiewicz. E isso nem é ruim, pensando bem. A Illayana mesmo parecia que tinha acabado de sair de umas aulas [no passado] com o Doutor Estranho¹.
¹ https://i.pinimg.com/originals/a4/5f/ea/a45fea3d7c8fbf1aa5966135df419459.jpg
Fui. Abração.
Daqui mais um tempo, só com canudo de computação quântica.
Há alguns anos fiz um teste no Wordpress. Saí correndo de lá sem nem apagar a luz. Só o que quero é um lugar para escrever, mas tá ficando difícil. Impressionante como essas plataformas conseguem ferrar tudo...
É adaptação, né. Processaram o gibi original para funcionar para o público jovem... de 2017. Esse tipo de adversidade extrafilme me faz valorizar ainda mais o resultado final.
Legal esse trecho! Daonde é isso?
Salve Dogma! Pretensão achar que vai ser igual aos quadrinhos mas depois de tanto perrengue na minha opinião n vi o filme tão ruim.
So quero ver se isso sera aproveitado futuramente....abraço!
É dos X-Men do Bendis. Não lembro exatamente qual edição. Illyana calça as sandálias da humildade e pede ao Dr. Estranho (do passado) umas lições sobre magia.
Achei, a Uncanny X-Men #15. Valeu!
Por sinal, uma das capas mais bacanas da x-série branquinha...
http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao/fabulosos-x-men-o-bom-o-mau-e-o-inumano/fa011119/130754
valeu pela resenha!
Disponha!
Esse filme não é ruim mas como o filme não do MCU/Marvel então dizem que é ruim. É estranho que todo filme que não é da Marvel de quadrinhos os críticos falam mal estranho...
Ah, isso acontece direto. Vez ou outra me divirto com algum filme que a crítica esculhambou (Motoca 2, Venom) provavelmente porque esperavam um novo Guerra Infinita/Ultimato. Besteira.
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