quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A verdade está aqui dentro


No One Will Save You é sob medida para aficcionados por UFOs – ou UAPs, na terminologia recente – e causos de abdução extraterrestre. Mas a verdade é que mira em voos muito mais altos. Ou mais intimistas, para ser exato. A entrega é garantida: o filme faz uma construção que remete aos relatos mais bizarros e absurdistas já registrados, como o infame Caso Kelly-Hopkinsville, que, aliás, parece ter sido o molde para várias coisas aqui. Sem dúvida, o roteirista, produtor e diretor Brian Duffield mergulhou de bico no assunto.

Muito disso foi antecipado no trailer, que era instigante, mas deliberadamente superficial. O homem tinha outros planos.

Duffield roteirizou o razoável A Babá, de 2017, e o ótimo Amor e Monstros, de 2020. Debutou na direção com o fofo, gore e esquisito Espontânea, também em 2020. Todos conciliando, ou tentando conciliar, comédia, romance e terror, trinca que parece ser o grande barato do cineasta. Em No One Will Save You, porém, ele tenta passar de fase, abandonando a comédia e o romance e investindo no drama e no terror. É um thriller de abdução que não é bem sobre abdução, mas explora o assunto quase ao esgotamento para que Duffield conte a sua história.

Um dia ele pagará por seus crimes, mas, como atenuante, No One Will Save You subverte espetacularmente o gênero. Ao mesmo tempo em que o revitaliza, diga-se.

A protagonista é Brynn, uma jovem costureira que ainda mora na mesma casa onde cresceu, numa bucólica cidadezinha do interior. Isolada e persona non grata na comunidade por motivos nebulosos, Brynn ainda lida com o luto da perda recente da mãe. Para enfrentar a solidão, ela passa os dias escrevendo para sua amiga Maude e construindo uma miniatura idílica da cidade em sua sala de estar. Uma noite, ela acorda e percebe que há um intruso na casa. E que, apesar de humanoide, a estranha figura não é nada humana.

A partir daí, o filme vira uma montanha-russa infernal do espaço sideral.


Em termos de estrutura, é patente a inspiração em "The Invaders", episódio clássico de Além da Imaginação. Os aliens também seguem o perfil padrão dos chamados Greys: olhos imensos, riscos no lugar da boca e nariz, comunicação através de grunhidos. Nesta versão, eles também têm movimentos curtos e abruptos, algo mecânicos, e são dotados de uma telecinese muito forte. O que faz muito sentido, dada a compleição física, por assim dizer, slim ao extremo. Outro arrojo foi estabelecer uma inédita diversidade da espécie. Temos pelo menos 3 tipos de Grey bem diferentes aqui.

As referências, involuntárias ou não, vão mais além. Em certo momento, é impossível não lembrar da Clemência Negra, do quadrinho Para o Homem que Tem Tudo, do Barba. As naves, no formato discoide habitual, lembram uma versão tecnológica do Jean Jacket, de Não! Não Olhe! (Nope, 2022), já bem assustador por si só. Felizmente, Duffield não se limita a simples convenções (ainda que eficientes) e lá pela marca dos 20 minutos, opera um "contato imediato" do tipo que nunca vi antes. É quando as coisas ficam realmente imprevisíveis, com direito a uma atordoante e muito bem tramada reviravolta na reta final.

Nada disso teria um milésimo do impacto sem a performance excepcional de Kaitlyn Dever. Sendo filme-de-uma-personagem-só, por 90 minutos ela tem apenas uma linha no script. E funcionou como uma autêntica libertação dos diálogos (quem precisa deles?). Sem a obrigação de mastigar nada para o espectador, a expressividade e a imersão da atriz explodem na tela, além de deixar tudo mais dinâmico, orgânico e intrigante. No fim, a sensação é de ter assistido a um magnífico dueto entre Dever e Duffield.

Discussões sobre projeção de falsa moralidade, ausência de empatia, ansiedade social e saúde mental cabem. São muito necessárias, até. No One Will Save You é esperto e nunca toma partido. Mas o tempo todo deixa a porteira escancarada para quem se aventurar em julgamentos preconcebidos.


SPOILERS
E que final. O mundo varrido pela invasão alienígena, sem chance de salvação. Apesar de protagonista, Brynn nunca foi a salvadora da pátria. Nem dela mesma. Desde o início, estava profundamente perturbada pelo seu trauma e pela rejeição, à beira da desconexão com a realidade. Ficou mais barato para os aliens dar a ela o que ela sempre quis: aceitação e socialização. E nem precisaram de um novo implante de controle mental. Brynn nunca iria querer sair de seu paraíso particular – afinal, ela não deve mais nada ao mundo. Em outra leitura, os aliens, após acessarem suas memórias e pensamentos, testemunharam a intransigência dos habitantes da cidade em relação a Brynn. Então foi um ato de pura justiça poética enquanto uniram o útil ao agradável. Uma inesperada conclusão feliz apocalíptica com danças e musicais ensolarados contrastando furiosamente com a sinistra trilha dos créditos finais. É um final que não vai agradar a todos e se agradasse, não teria cumprido seu objetivo. Filmão que só vai ficando melhor.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Demolidor Depois de Horas


Aproveitando o aniversário do genial David Mazzucchelli, nada como relembrar um dos melhores pesadelos recorrentes que alguém já me deu nesta vida. Lembro vividamente de quando li a última história de Superaventuras Marvel #49. A história "A Noite Mais Longa de Minha Vida" foi coescrita pelo prolífico Harlan Ellison e por Arthur Byron Cover, ambos figurões da literatura de ficção científica. A trama mostrava nosso querido e sofrido Demolidor indo ajudar uma inocente menininha e sendo mastigado por uma mansão lotada de armadilhas mortais.

O lugar era de botar o Jigsaw e o Arcade chorando abraçados em posição fetal. Em conchinha, portanto. Dava quase para ver o brilho sádico nos olhos de Ellison e Cover ao escreverem o roteiro.

Lógico que foram Mazzucchelli, no topo da forma Marvel style, e o saudoso arte-finalista filipino Danny Bulanadi que me arrastaram para dentro daquele cenário de suspense, terror e do mais puro "putaqueuspa, agora fudeu!!". Era julho de 1986 e ainda ficava petrificado de medo com as reprises de Geração Proteus, O Enigma de Andrômeda e Westworld, de temáticas similares. Ou seja, era uma presa fácil. Tanto quanto o pobre Matt Murdock.


Quando terminei, a sensação era ter sido atropelado por uma frota de caminhões. Não foi à toa que colocaram essa história para fechar a revista.

Hoje, milhões de releituras depois, acho divertida demais. Uma aula de construção e plot twist. Mas o finalzinho perturbador, à Rod Serling, ainda é de arrepiar. Brrr.

Feliz níver, Mazzucca!

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Uma câmera na mão


Os aspectos que mais me surpreenderam em Talk to Me têm a mais a ver com o zeitgeist das redes sociais do que propriamente com o filme. O longa australiano foi co-escrito e dirigido pelos gêmeos Danny & Michael Philippou, youtubers cujo canal RackaRacka contabiliza quase 7 milhões de inscritos. A experiência da dupla com cinema é zero – no máximo, fizeram uns vlogs e pequenas gags com visualizações hiperestouradas. No entanto, Talk to Me passa longe de amadorismos ou incursões trash. O produto final é bem acabado e tecnicamente acima da média, provando, mais uma vez, que o streaming é uma grande escola.

Isso se estende aos vários segmentos deste business: maquiagem, iluminação, figurinos, filmagem, edição, F/X, atuação, comédia e dá-lhe etc. Uma geração de autodidatas do audiovisual está se formando via Internet. É o Do It Yourself 3.0, com resultados práticos e financeiros quase imediatos. E sem sair de casa.

O filme nasceu semi-indie, mas riscou os céus do mainstream em Mach 5. De um orçamento de US$ 4,5 milhões, voltou para casa com quase US$ 70 milhões de bilheteria. Sem dúvida, a molecada se identificou. E comprou. Tudo sob as bênçãos (e o logo) do badalado estúdio A24, que distribuiu o filme nas Américas. A sequência já está engatilhada e irá se chamar, claro, Talk 2 Me.

Outro ponto é ligado ao plot: um grupo de adolescentes faz pequenas reuniões para brincar com uma misteriosa mão decepada e embalsamada que permite a comunicação com os espíritos. A mecânica é simples. Basta apertar a mão, dizer "fale comigo" e algum morto aparece. Daí, é só dizer "eu deixo você entrar" e ser possuído pelo tal espírito. Após as incorporações, que não podem exceder 90 segundos, o possuído parece ter voltado de algum barato estupidamente viciante. Aí, é espírito na veia.

Claro que qualquer um com um mínimo de maturidade e bagagem de vida iria aproveitar a conexão com o além e tirar todas as dúvidas existenciais possíveis. O que não acontece no filme por uma boa razão: nenhum adulto jamais chega a tomar conhecimento do artefato e a galerinha só pensa em usá-lo para curtir e postar as fotos nas redes. Em tempos de virais e desafios online que, não raro, causam vítimas graves ou fatais, esse contexto não poderia ser mais atual e realista.

Jovens são estúpidos. Ponto. Abre parênteses. E, antes da Internet, o que se fazia em Vegas, ficava em Vegas. Fecha parênteses com emoji de piscadinha.

Isto posto, a sequência do sarau de possessões é surpreendentemente divertida e bem montada. A dinâmica da mão passada de mão em mão (ops) chega a ser até animada demais para um filme de terror. E perturbadora. Ao mesmo tempo em que parece que eles estão dividindo um bong fumegante, a impressão é de que a coisa está mais para uma roleta russa. A merda é iminente – e quando chega, não decepciona.

As meninas e meninos estão ótimos. A atuação certamente teve um molho de improviso, o que beneficiou muito as caracterizações. Em especial do trio principal formado por Alexandra Jensen (Jade), Joe Bird (Riley) e a ótima Sophie Wilde (Mia). Só assim para nivelar com a presença gigante de Miranda Otto. Mesmo com uma participação reduzida, a veterana rouba as cenas sem esforço e nem sequer intenção. Inclusive, protagoniza um momento impagável da mãe jogando quilos de verde nos filhos para descobrir uma possível festinha durante sua ausência.

Gatos um pouco mais escaldados, pós-Ghost (e até pós-O Sexto Sentido), irão telegrafar as reviravoltas da trama com bons minutos de antecedência. Mas ainda assim é um bom passatempo. E um bom hype.

sábado, 16 de setembro de 2023

A Guerra Contra-Ataca


Porra, bem melhor. Mesmo desmedidamente sombria. E levando 3 X 1 da original.

Como diria, ou deveria dizer, a Mantis: este ser é chato pra caraio.

No site da Conrad!²

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Nausicaääääääääää


1 ano. Esse foi o gap entre os dois primeiros volumes (de 7) de Nausicaä do Vale do Vento, pela JBC. O mercado editoral japonês é notoriamente minucioso, exigente e chato para um cacete com a republicação de suas propriedades. E a coisa piora muito quando se tem na conta um flop embaraçoso (alô, Conrad!). Especialmente daquele país lá, que não é sério.

Neste relançamento em particular, por si só miraculoso, a JBC vem ao menos tratando de colocar os pingos nos i's. Como se deve, aliás.

O probleminha – meu – é que há anos venho lutando contra aquele play maroto no longa animado de 1984, que nunca vi. Sempre prefiro conferir o material original antes da adaptação. Por isso não assisti The Boys até hoje. Só que, neste ritmo, a coisa deve encostar em Futurama.

Em contrapartida, o Nausicaä-filme também é uma obra do próprio mangaká. Então, o Honorável Sr. Hayao Miyazaki que me desculpe, mas estou pensando seriamente em trai-lo. Com ele mesmo.

Será que vou estragar/spoilerar muito a leitura?

Ps: só passando pra confirmar que esse é o típico post "só passando pra..."

domingo, 10 de setembro de 2023

A verdade podia continuar lá fora

Escrito e dirigido por Brian Duffield, No One Will Save You audaciosamente vai onde nenhum terror ufológico jamais esteve.


Dá pra perceber que a atriz Kaitlyn Dever honrou cada cent de seu cachê nas filmagens. Já o plot, é tão minimalista quando o trailer:

"Brynn Adams (Dever) mora sozinha na casa onde cresceu e subitamente enfrenta uma invasão de visitantes sobrenaturais."

E é isso.

Há exatos dez anos, fui surpreendido por Os Escolhidos (Dark Skies), de Scott Stewart, que deu construção, atmosfera e seriedade a um subgênero bastante surrado. O resultado foi memorável. Pelo trailer, No One Will Save You parece enfim retomar o mesmo nível de tratamento.

A referência continua sendo a apavorante sequência de abdução de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de 1977. Steven Spielberg, inclusive, terá certa justiça tardia, já que a produção parece uma adaptação não oficial de Night Skies, seu lendário projeto de terror com ET's que nunca saiu do papel.

Um detalhe que chama a atenção, além da montagem milimétrica, é a ausência de diálogos na prévia. No IMDb, o idioma registrado é o inglês. No Wikipedia, consta apenas como "no dialogue". Isso já vinha sendo sugerido há algum tempo e, se confirmado, o resultado será bem fora da caixinha.

A estreia está prevista para o dia 22 no Hulu – e via Star+ nesta parte da América.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Ela esteve na banda


Publicado em dezembro de 2010, I'm in the Band: Backstage Notes from the Chick in White Zombie é uma janela para o que rolou de mais legal na cena alternativa do rock e do metal dos anos 1990. Escrito por Sean Yseult, baixista e co-fundadora do White Zombie, o título ganhou um tapa de seu generoso acervo de imagens e materiais inéditos. O resultado é um mix de álbum de fotos com livro de memórias, repleto de informações de bastidores e de suas impressões daquela cena do barulho.

Para aficcionados da banda e da geração: é obra atemporal, para consultas. E uma delícia.

Em relação à carreira de Yseult (pronuncia-se "Issó"), I'm in the Band começa do ano zero, com ela ainda gurizinha frequentando as aulas de balé. E segue pela sua paixão pela cultura underground até a formação do White Zombie em 1985 – então um grupo de noise/rock de garagem, incensado por gente como Kurt Cobain e o pessoal do Sonic Youth (!) – e envereda na descoberta do metal e no sucesso comercial.

Nesse ponto, salta aos olhos o contraste entre seus dias de porão, se apresentando em clubes como o CBGB, e as gigs-monstro, com apresentações consagradas no Monsters of Rock em Donington e num Hollywood Rock abarrotado no Brasil...

...onde, aliás, passaram dias de rockstar no "Rio de Janiero" e matando "capraihnas" em Copacabana, apesar do medo de terem as mãos decepadas por motoqueiros punguistas from hell com muita pressa. Achei graça. Mas não duvido.


A fuça dos jovens meliantes; flyers operação-de-guerra; o início da virada; a tensão pré-palco




Na alta roda: com Elvira, Danzig, Marilyn Manson, Cramps e Pantera



Confraternizando com Deuses do Rock and Roll



Zé do Caixão, o “Coffin Joe”, encarnando no cadáver da baixista e recebendo a devida homenagem do White Zombie

Além dos registros históricos, Yseult, hoje quase exclusivamente artista plástica, também aproveitou para oferecer sua perspectiva única de um meio majoritariamente masculino. Inclusive o subtítulo do livro, "The Chick in White Zombie" ("a mina do White Zombie"), é o apelido dado a ela por Beavis & Butthead sempre que eles assistiam algum videoclipe do grupo. Não foi fácil. Não é fácil.

A nota destoante vai para a parte física: o brochurão de quase 200 páginas em formato paisagem (wide) é um lutador peso pesado. É preciso preparar bem o terreno antes de começar a aventura e evitar algum acidente irreversível. Também é recomendável lavar as mãos antes do manuseio. As páginas são em couché de alta gramatura e praticamente todas têm fundo preto. Então, se não quiser deixar as digitais impressas ali para a posteridade...