The Boys é apelativo, exagerado e de mau gosto. Foi a impressão que tive na época do lançamento e confirmada no TPB-BR
O Nome do Jogo. Mas com a continuidade e todo o contexto necessário, fica nítida a estratégia sagaz de
Garth Ennis, que encontrou no desenhista
Darick Robertson a ferramenta perfeita para atirar mais um tijolo na vidraça do
establishment. O irlandês doido também não economizou nas referências e nas autorreferências.
Muitas autorreferências.
Tanto o visual quanto a malandragem do protagonista
Billy "
Carniceiro" remetem ao bom e velho Tommy Monaghan, o Hitman. A própria line-up d'
Os Rapazes lembra os clientes assíduos do Noonan's. Baron "
Leite Materno" Wallis, o
Francês, a
Fêmea e o aspira
Hugh Mijão parecem cuspidos da
Section Eight. Só que o objetivo do bando é bem mais quixotesco: derrubar a rede de superequipes que assumiu o papel de polícia do mundo. Todas elas encabeçadas pela poderosa
Liga da Just... Equipe dos Sete com o aval de parte do governo americano.
A hipocrisia, a corrupção e as taras super-heroísticas são uma evolução dos absurdos impublicáveis,
pero publicados, de
A Pro. – quem lembrar do
Veloz fazendo justiça ao fundo levante a mão (peluda) primeiro. Nessa pegada, as fontes de informação que os Boys utilizam em suas investigações não poderiam ser de uma ironia maior: as revistas em quadrinhos baseadas naqueles super-heróis. Meio como o MIB pesquisando nos tabloides vagabundos da imprensa marrom.
A série é uma carta de amor de Ennis ao seu
ódio pelos super-heróis, que vez ou outra ele precisa escrever porque
"só está atrás de emprego...". Esse niilismo por vezes chega a lembrar o Marshal Law, o "Matador de Super-Heróis" de Pat Mills e Kevin O'Neill, só que menos anárquico e mais putanhesco. Ennis quer dinamitar por dentro.
Após um breve interlúdio baixa-pilha/faxina-coleção (só 1 ano), fui conferir o encadernado seguinte.
Mandando Ver compila os números #7-14 originais, já pela
Dynamite – as seis primeiras edições saíram pela
WildStorm, que dropou a série... acho que a
DC não se comoveu com toda aquela iconoclastia X-rated.
Sem a menor autocensura ou sutileza, ele demonstra um apreço pelo termo "viado" tão grande quanto Tarantino tem pelo termo "nigga" – tudo devidamente contextualizado, claro. Mas essa leva de edições é bem mais ambiciosa. Não apenas justifica toda a 5ª série presente até aqui, mas a desenvolve como uma escada para seu, digamos, manifesto. É aqui que Ennis começa a inserir vários daqueles elementos tão caros em seus projetos mais sérios: jogos políticos, conspirações, espionagem e
russos.
Raposa véia de escrita, ele deixa umas migalhas de pão pelo caminho, com o WTC intacto e a Ponte do Brooklyn destruída (ora, ora, num mundo real, os super-heróis fazem mesmo a diferença, não?). Outros pontos passíveis de retcons são o ex-Boy
Mallory, mencionado pela Diretora da CIA
Susan Rayner quando afirmou,
molhadinha, que o Carniceiro causou a morte das netas dele. E o
Faroleiro, substituído às pressas pela novata Anne "
Estelar" January.
Ah, Anne... Não vou negar que fiquei impactado pela chupeta divisora de águas na vida da heroína.
Se por um lado serviu para mostrar, sem vaselina, do que o
Conglomerado e seu
poster boy Patriota são capazes, por outro, abrir essa porteira é pra lá de perigoso. O fetiche por sexo e por sexismo, tanto masculino quanto feminino, está implícito nos quadrinhos desde sempre. Destacar isso numa HQ regular é algo que achava problemático já na época de
Crise de Identidade e a polêmica cena do Doutor Luz violentando a pobre Sue Dibny (
Watchmen não vale: é transgressor por natureza), sob o risco mais do que certo do seu inocente gibizinho descambar para um Super-Big Brother XXX – favor confundir com
Coelhinhas da Mansão XXX. Ennis, óbvio, sacou isso há muito tempo e mandou ver em seu autoralzinho.
Quebrando um pouco a tensão, é bacana o paralelo entre Hugh e Estelar na cena do parque que abre a última parte do arco
"Adeus à Inocência". Um dos raros momentos amenos e sentimentais da HQ. E não ler os diálogos do Mijão com a voz do
Simon Pegg na cabeça é simplesmente impossível.
Reiterando, o traço do Darick Robertson (de
Transmetropolitan) é sob medida: sujão e, por vezes, grotesco, como num bom gibi underground. Mas também sabe lidar com sequências grandiosas, como na bizarra redenção do
Tecnoman ao interceptar o asteroideceta que ameaçava a Terra.
No geral, Robertson só exagera no gore das porradas, fazendo as cabeças literalmente explodindo de sangue. Fica sempre parecendo que a pessoa morreu.
Outro vacilo foi na cena da pizza de rosto no início do arco
"O Glorioso Plano de Cinco Anos" – a mesma ficou na página ímpar (!), estragando a surpresa. Mas aí não sei foi culpa da composição do desenhista ou da encadernação da
Devir.
Aliás, esse arco, que fecha o 2º TPB, é o melhor da série até aqui. Sempre que Ennis coloca ruskies na parada, o inferno é o limite. Personagens como Vasili Vorishikin, o
Salsicha do Amor (será que o David Harbour toparia fazer
outro ex-super-herói soviético decadente?), e a vilã
Nina Namenko são memoráveis. E ainda a deixa para o misterioso e promissor insider do Conglomerado, um engomadinho que lembra o irritante Henry Gyrich, a pedra que o governo sempre colocava nos sapatos dos Vingadores.
No final das contas,
The Boys é mesmo apelativo, exagerado e de mau gosto². Em suma, uma diversão só.
Vai ser difícil voltar à ordem do dia com os
comics tradicionais.
Haja mindset.