segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Quinta série forever


The Boys é apelativo, exagerado e de mau gosto. Foi a impressão que tive na época do lançamento e confirmada no TPB-BR O Nome do Jogo. Mas com a continuidade e todo o contexto necessário, fica nítida a estratégia sagaz de Garth Ennis, que encontrou no desenhista Darick Robertson a ferramenta perfeita para atirar mais um tijolo na vidraça do establishment. O irlandês doido também não economizou nas referências e nas autorreferências.

Muitas autorreferências.

Tanto o visual quanto a malandragem do protagonista Billy "Carniceiro" remetem ao bom e velho Tommy Monaghan, o Hitman. A própria line-up d'Os Rapazes lembra os clientes assíduos do Noonan's. Baron "Leite Materno" Wallis, o Francês, a Fêmea e o aspira Hugh Mijão parecem cuspidos da Section Eight. Só que o objetivo do bando é bem mais quixotesco: derrubar a rede de superequipes que assumiu o papel de polícia do mundo. Todas elas encabeçadas pela poderosa Liga da Just... Equipe dos Sete com o aval de parte do governo americano.

A hipocrisia, a corrupção e as taras super-heroísticas são uma evolução dos absurdos impublicáveis, pero publicados, de A Pro. – quem lembrar do Veloz fazendo justiça ao fundo levante a mão (peluda) primeiro. Nessa pegada, as fontes de informação que os Boys utilizam em suas investigações não poderiam ser de uma ironia maior: as revistas em quadrinhos baseadas naqueles super-heróis. Meio como o MIB pesquisando nos tabloides vagabundos da imprensa marrom.

A série é uma carta de amor de Ennis ao seu ódio pelos super-heróis, que vez ou outra ele precisa escrever porque "só está atrás de emprego...". Esse niilismo por vezes chega a lembrar o Marshal Law, o "Matador de Super-Heróis" de Pat Mills e Kevin O'Neill, só que menos anárquico e mais putanhesco. Ennis quer dinamitar por dentro.

Após um breve interlúdio baixa-pilha/faxina-coleção (só 1 ano), fui conferir o encadernado seguinte. Mandando Ver compila os números #7-14 originais, já pela Dynamite – as seis primeiras edições saíram pela WildStorm, que dropou a série... acho que a DC não se comoveu com toda aquela iconoclastia X-rated.


Sem a menor autocensura ou sutileza, ele demonstra um apreço pelo termo "viado" tão grande quanto Tarantino tem pelo termo "nigga" – tudo devidamente contextualizado, claro. Mas essa leva de edições é bem mais ambiciosa. Não apenas justifica toda a 5ª série presente até aqui, mas a desenvolve como uma escada para seu, digamos, manifesto. É aqui que Ennis começa a inserir vários daqueles elementos tão caros em seus projetos mais sérios: jogos políticos, conspirações, espionagem e russos.

Raposa véia de escrita, ele deixa umas migalhas de pão pelo caminho, com o WTC intacto e a Ponte do Brooklyn destruída (ora, ora, num mundo real, os super-heróis fazem mesmo a diferença, não?). Outros pontos passíveis de retcons são o ex-Boy Mallory, mencionado pela Diretora da CIA Susan Rayner quando afirmou, molhadinha, que o Carniceiro causou a morte das netas dele. E o Faroleiro, substituído às pressas pela novata Anne "Estelar" January.

Ah, Anne... Não vou negar que fiquei impactado pela chupeta divisora de águas na vida da heroína.

Se por um lado serviu para mostrar, sem vaselina, do que o Conglomerado e seu poster boy Patriota são capazes, por outro, abrir essa porteira é pra lá de perigoso. O fetiche por sexo e por sexismo, tanto masculino quanto feminino, está implícito nos quadrinhos desde sempre. Destacar isso numa HQ regular é algo que achava problemático já na época de Crise de Identidade e a polêmica cena do Doutor Luz violentando a pobre Sue Dibny (Watchmen não vale: é transgressor por natureza), sob o risco mais do que certo do seu inocente gibizinho descambar para um Super-Big Brother XXX – favor confundir com Coelhinhas da Mansão XXX. Ennis, óbvio, sacou isso há muito tempo e mandou ver em seu autoralzinho.

Quebrando um pouco a tensão, é bacana o paralelo entre Hugh e Estelar na cena do parque que abre a última parte do arco "Adeus à Inocência". Um dos raros momentos amenos e sentimentais da HQ. E não ler os diálogos do Mijão com a voz do Simon Pegg na cabeça é simplesmente impossível.

Reiterando, o traço do Darick Robertson (de Transmetropolitan) é sob medida: sujão e, por vezes, grotesco, como num bom gibi underground. Mas também sabe lidar com sequências grandiosas, como na bizarra redenção do Tecnoman ao interceptar o asteroideceta que ameaçava a Terra.

No geral, Robertson só exagera no gore das porradas, fazendo as cabeças literalmente explodindo de sangue. Fica sempre parecendo que a pessoa morreu.

Outro vacilo foi na cena da pizza de rosto no início do arco "O Glorioso Plano de Cinco Anos" – a mesma ficou na página ímpar (!), estragando a surpresa. Mas aí não sei foi culpa da composição do desenhista ou da encadernação da Devir.


Aliás, esse arco, que fecha o 2º TPB, é o melhor da série até aqui. Sempre que Ennis coloca ruskies na parada, o inferno é o limite. Personagens como Vasili Vorishikin, o Salsicha do Amor (será que o David Harbour toparia fazer outro ex-super-herói soviético decadente?), e a vilã Nina Namenko são memoráveis. E ainda a deixa para o misterioso e promissor insider do Conglomerado, um engomadinho que lembra o irritante Henry Gyrich, a pedra que o governo sempre colocava nos sapatos dos Vingadores.

No final das contas, The Boys é mesmo apelativo, exagerado e de mau gosto². Em suma, uma diversão só.

Vai ser difícil voltar à ordem do dia com os comics tradicionais.


Haja mindset.

2 comentários:

Luwig Sá disse...

Tô de alma lavada com o seu texto. Como é que se chama isso? Representatividade?

Digo, parece que você é a escória da humanidade se admitir por aí que curte The Boys raiz. E eu acho que a esmagadora maioria dos "leitores" flopa exatamente nesses dois encadernados, até antes, no primeiro mesmo. Em tempos de adaptação live-action, me dói os bagos ler por aí quando alguém diz que a série Prime* é superior ao gibi...

São pessoas que não sabem brincar e, portanto, nem descem pro play. Eu desço e desço com um tacape com prego e arame farpado.

A propósito, boa jornada. Deu vontade de reembarcar e ler tudo de novo.

Abração.
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(*) Todas as honras e glórias para o Carl Urban, mas o Billy dele não arranha nem a superfície do original. Aliás, tá mais p/ coroinha que carniceiro.

doggma disse...

"Eu desço e desço com um tacape com prego e arame farpado"

Praticamente um Luwigan.

É o que achei também. O payoff de gente grande começa a vir mesmo a partir da metade do 2º TP. Deixa o leitor completamente na pilha. Logo, logo, começarei o "Bom para a Alma".

Você é o primeiro a comentar aqui que a HQ é superior à série. Congratulações.

Abraços anti-heróicos!