quarta-feira, 27 de novembro de 2024

As muitas mortes de Lucy Chambers


The Devil's Hour chegou pra mim do jeito como tudo tem chegado ultimamente: através de um corte que os algoritmos julgaram que seria do meu agrado. O corte em si é bacana, mas não vende a série direito. As classificações "thriller, drama, sobrenatural" são um pouco mais específicas. E a sinopse é cuidadosamente superficial.

“Lucy Chambers é uma assistente social com uma família e um relacionamento problemáticos. Ela acorda todas as noites exatamente às 3:33 da manhã, depois de ter visões aterrorizantes durante a chamada hora do diabo. Seu filho de oito anos é retraído e não expressa emoções. Sua mãe fala com cadeiras vazias. Sua casa é assombrada pelos ecos de uma vida que não é a dela. O nome de Lucy está inexplicavelmente conectado a uma série de assassinatos brutais na área, e ela é atraída para a caça de um serial killer.”

O fator descoberta é a peça-chave no slow burn que o showrunner Tom Moran montou para a série (no Brasil, literalmente, A Hora do Diabo). Isso se reflete nas duas temporadas até aqui, com enxutos 6 episódios na primeira e 5 na segunda – não exatamente o padrão da Prime. O que torna um desafio tecer maiores comentários sem chafurdar em spoilers e estragar a experiência alheia. Mas os mais calejados, especialmente leitores de histórias em quadrinhos, têm uma boa chance de triangular a premissa básica logo no primeiro episódio.

Já volto aí.

A série britânica é uma cocriação de Moran e do produtor executivo Steven Moffat, de Doctor Who, e realizada através de sua companhia, a Hartswood Films. Ênfase em "série britânica". Destacar o nível de um elenco da terra do Rei Charles III é até redundância, mas vamos lá.

Jessica Raine foi um achado no papel da cativante, corajosa e sofridíssima Lucy Chambers, Peter Capaldi é a singularidade dramática de sempre, com seu Gideon Shepherd imerso em mistério e inteligência-flertando-com-a-insanidade. A química entre eles, remetendo ao clássico duo Clarice Starling-Hannibal Lecter, é qualquer coisa de espetacular.

Nikesh Patel como o obstinado detetive Ravi Dhillon experimenta uma interessante curva ascendente de dimensão no decorrer da série. O promissor Benjamin Chivers traz uma performance memorável, algo assustadora, como Isaac, o estranho filho de Lucy. Phil Dunster (o Jamie Tartt, de Ted Lasso) surpreende como Mike Stevens, o cruel pai de Isaac. E Meera Syal entrega um misto de racionalismo e ambiguidade como a psicóloga Ruby Bennett.

A narrativa tem sido chamada por aí de "monótona" e "maçante". Não achei, não acho e, tenho certeza, não acharei na vindoura (e última?) 3ª temporada. Mas certamente exige do espectador. Não porque é física quântica, embora tenha tudo a ver. É que ela se utiliza de recursos um tanto incomuns.

A trama requer (olha o palavrão, Gen Z-ers) atenção e muita paciência, porém jamais perde o foco e se desenvolve sem tergiversadas Lostianas. Os enigmas são desvendados lenta e metodicamente, não raro, abrindo novas questões pelo caminho. Todas bem difíceis de antever, mesmo que as respostas estejam em nossa cara o tempo todo. É tudo muito bem encoberto.

E, como dizem, o segredo é a alma do negócio.

The Devil's Hour in 33 seconds

“I wake up, I open my eyes, I look at the time and it is 03:33am.” 📺 The Devils Hour (28th October) 🎭 Jessica Raine, Peter Capaldi, Nikesh Patel

Publicado por Amazon Prime Video em Sábado, 22 de outubro de 2022

Até os teasers ficavam na defensiva.

Para maiores e, acho, melhores comentários, só com spoilers mesmo. Fiz uma seleçãozinha organizada por grau de risco.


⚠️ ⚠️ ⚠️ SPOILER CONSERVADOR ⚠️ ⚠️ ⚠️
Visão geral da premissa sem detalhes da trama

O título do post é revelador, admito. Não consegui resistir. Ao mesmo tempo em que é uma homenagem a uma HQ que gosto muito, tem tudo a ver com o conceito de vida, morte e renascimento de The Devil's Hour. E o precedente dos quadrinhos não para por aí.

É impossível não relacionar a jornada metafísica de Lucy à de Moira MacTaggert em House of X e Powers of X, de Jonathan Hickman. É o mesmo mecanismo de repetição da mesma vida ad eternum retendo as memórias das encarnações anteriores com todas as vantagens/desvantagens que isso traz.

Como notinha de rodapé, Hickman tampouco foi original. A ideia de alguém vivenciando um loop à Feitiço do Tempo de uma vida inteira surgiu primeiro no livro The First Fifteen Lives of Harry August, que a escritora inglesa Claire North publicou em 2014. Livro este que Hickman, em entrevista anterior a HOXPOX, disse que leu e achou "fantástico".

Logicamente que a North ficou, digamos, desnorteada com as coincidências. Minhas simpatias a ela.



☢️ ☢️ ☢️ SPOILER MODERADO ☢️ ☢️ ☢️
Visão geral do conceito sem detalhes da trama

"O tempo é simultâneo". O mundo (da cultura pop) nunca mais foi o mesmo desde que o Dr. Manhattan declamou essas palavras. Não deu pra conter o sorriso de satisfação quando Gideon usa um simples cadarço para explicar esse conceito para uma atônita Lucy.

Triângulo do Medo (Triangle, 2009) e Coerência (Coherence, 2013) são bons exemplos de abordagem deste conceito multiversal. Não porque são filmes mais do que divertidos, mas porque foram mais ousados do que a média.

Neste sentido, The Devil's Hour consegue ir ainda mais longe nas possibilidades. Praticamente um Fringe 2.0.



☠️ ☠️ ☠️ SPOILER ARROJADO ☠️ ☠️ ☠️
Detalhes da trama

Os "fantasmas" que assombram Lucy e outros personagens são ecos dessas linhas temporais simultâneas — ruídos de passados, presentes e futuros acontecendo naquele momento em realidades paralelas, coisa de louco. Esses ecos acontecem sempre que uma alteração anômala é feita na linha natural dos eventos. Quando Gideon, que se lembra dos fatos de suas vidas anteriores, passa a corrigir algo que julga errado, as pessoas diretamente afetadas por essas alterações acabam com os sentidos sensoriais amplificados. Daí elas captando ecos de outras vidas num primeiro momento (e possivelmente uma internação por esquizofrenia) e, com a orientação adequada, preservando sua memória de uma encarnação para a seguinte.

Isaac não consegue apenas ver os ecos em 8K, mas se teleportar para qualquer uma daquelas realidades simultâneas possíveis, em qualquer local ou ponto cronológico. Isso porque ele foi o mais afetado pelas ações de Gideon: Isaac não deveria nem existir. É 100% anomalia.

Uma excelente — e certamente incompreendida — sacada do roteiro foi a ordem dos fatores. A Lucy detetive e a Lucy assistente social se confundem o tempo todo. Mas ao contrário do que a montagem sugere, a Lucy assistente social é a sua 2ª encarnação. A Lucy detetive é a verdadeira Lucy "original", a primeira, a que perdeu a mãe quando criança. Mas só vamos ser apresentados a ela na 2ª temporada.

Gideon consegue alterar quase tudo, exceto algumas constantes. A principal delas é que, de um jeito ou de outro, ele sempre será capturado por Lucy. Sendo assim, a Lucy assistente social que vemos no início já é a Lucy alterada por Gideon para recrutamento futuro. Para tanto, ele salva a vida da mãe dela, mas altera mais coisas do que deveria no processo. Efeito Borboleta versão Mothra. Enquanto isso, o verdadeiro assassino continua à solta. Brincar de Deus não é mole.

Tudo isso é explicado por Gideon à Lucy assistente social e ao Ravi no interrogatório, no início da série. Mas naquele momento não temos a menor ideia do que ele está falando. Acredite, rever a série pelo menos mais uma vez é altamente recomendável. É outra história.

Na temporada 2, senti falta de mais Nick, o parceiro de Ravi. O simpático e bonachão Alex Ferns é um ladrão de cenas. Mas até entendo: a realidade em que Nick está morto é a única em que o assassino está perto de ser detido.

Assassino, aliás, que parece antecipar tudo, até mesmo à frente de Gideon, veterano de milhares de vidas. Minhas fichas no Isaac.



🟢 🟢 🟢 RESGATE DO POST 🟢 🟢 🟢
Fim dos spoilers


Não tinha a menor intenção de escrever sobre The Devil's Hour. A recepção foi positiva nos agregadores de críticas e rendeu um divertido fandom no Reddit, mas como é "lenta e chata" para alguns, preferi me resguardar de futuros processos por propaganda enganosa e elogios indevidos. O problema é que a série cresceu em minha mente como se fosse um fungo de The Last of Us. Quando bateu em analogias aos quadrinhos, decidi botar uma imagem e rabiscar duas ou três linhas. Mas a empolgação com as possibilidades continuou fervilhando e terminei arrancando o cabo USB do teclado.

O próprio post parece ter sofrido misteriosas alterações do tipo que se vê na série. Isso pega. Então, que venha mais Lucy Chambers, Gideon Shepherd e cia. O "futuro" promete.

Acho que dá tempo para uma 3ª assistida antes da 3ª temporada...

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Tempestades perfeitas


É preciso reconhecer a resiliência. Em meio ao sempre tempestuoso (ops) mercado de quadrinhos nacionais, a Editora Tundra chega ao 5º volume da espetacular série Storm Integral. Por aqui, a obra do influente quadrinista britânico Don Lawrence amargava num limbo editorial desde que foi publicada de forma incompleta pra Abril, ainda nos anos 80. Precisou uma modesta, mas valente, operação a quatro mãos – dos irmãos e sócios Luis Panigassi e Julio Cesar Panigassi – para assumir essa missão.

Missão aparentemente impossível, visto que o perfil de Storm tirava da jogada tanto as pequenas que se especializaram em bangue-bangue, thrillers e sci fi Bonellianos quanto as médias como Pipoca & Nanquim e Comix Zone, que preferem não se arriscar em séries longas. Com profissionalismo, tino editoral afiado e campanhas muito bem sucedidas, a Tundra se tornou o elemento fora da curva necessário para fazer acontecer. E aconteceu.

Até aqui, um trabalho irretocável.

Ok... pra não estragar a criança, só precisam ser mais realistas ao estipular a previsão de entrega. Desse jeito, está tão acurado quanto uma pesquisa eleitoral.

Ps: todas as edições estão disponíveis na loja virtual da editora.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

A marcha do Pinguim


Numa das cenas mais absurdistas de Gotham, o Pinguim é trancado em um carro e enfiado numa prensa de sucata. Entre vidros estourando, metal se retorcendo e um fiapo de esperança, o malandro se salva usando apenas a lábia e o celular. A cena é impagável. Da mesma forma, o Pinguim-lixeiro de Danny DeVito em Batman: O Retorno também já exibia sua notável habilidade de improvisação e adaptação contra todas as probabilidades. Houve até quem o desconstruísse minuciosamente como uma boa tese sociológica.

Pinguim eleva as apostas e é de longe o maior produto artístico e comercial do personagem. Quadrinhos inclusos, desculpe. A HBO se esforçou. A minissérie em 8 partes vai até mais longe – não consigo pensar em nenhuma outra melhor neste ano. A criadora e showrunner Lauren LeFranc, que roteirizou vários episódios de Chuck e Agentes da S.H.I.E.L.D., estava acostumada com o suprassumo do enlatado esquemático e seguro para as crianças, mas a julgar pelo território sombrio e impiedoso de Pinguim, parece que ela saiu direto de um The Wire ou de um Sopranos.

O elenco é um primor. Colin Farrell desaparece dentro de toneladas de enchimento, maquiagem, ambição, carisma e sociopatia de seu Oswald "Oz" Cobb (gosto de pensar que seu papel igualmente grotesco em The North Water foi um protótipo bem sucedido). Que ator. Ele e a incrível Cristin Milioti, como Sofia Gigante, ex-Falcone, conduzem as danças de vida e morte da história. E ainda tem a veterana Deirdre O'Connell como Francis Cobb, a mãe do Oz, Clancy Brown como Sal Maroni, Shohreh Aghdashloo como a sua esposa, Nadia, e uma ponta de luxo de Mark Strong como Carmine Falcone, papel que pertencia a John Turturro em Batman, mas que ele declinou do repeteco.

Entre os nomes menos conhecidos, o destaque inevitável é do promissor Rhenzy Feliz como Victor Aguilar, um quase-Jason Todd do Pinguim. E Carmen Ejogo, que dá show (no bom sentido) como a prostituta Eve Karlo. Mas é visível que todos estavam numa sintonia finíssima ali, de Farrell até o estagiário que serve o cafezinho.


Havia um teto máximo a respeitar, afinal, a franquia DC é logo ali. Os roteiristas precisavam lidar com liberdade parcial e a inevitável barrigada. Não era surpresa nem para o gafanhoto mais bobinho que a coisa teria que terminar mais ou menos como começou. Um pouco atualizada, talvez, mas com o status quo intacto. Por mais que o Pinguim fosse ameaçado, espancado, baleado, apunhalado, eletrocutado, etc, ele não poderia morrer numa minissérie. Os demais, no entanto... E esta foi a deixa para brincadeiras cada vez mais nervosas. E algumas boas escadas também.

Só no episódio 6, "Gold Summit", existem dois momentos espetaculares, com Ejogo e Milioti brilhando no tenso diálogo entre Eve e Sofia, e Farrell subindo pelas tabelas de todas as premiações possíveis com um discurso para os chefes das Tríades de Gotham. A situação, com Oz propondo uma aliança em ambiente hostil, me lembrou do mesmo cenário adverso de Al Pacino e seu antológico discurso em City Hall – ressalto, "me lembrou", não que é igual, pelo amor do Bart. Pacino ali vociferou para os deuses. Mesmo com um personagem tão picareta e corrupto quanto o Oz.

Curiosamente, Pinguim é bem mais violento na sugestão e na atmosfera do que na violência explícita per se. Ok, é violento, é HBO, mas a exaustão sensorial após cada episódio não nega: é um genuíno assalto psicológico. Gatilhos são disparados por pessoas quebradas, gananciosas, ambíguas ou simplesmente perversas. É isso é ótimo.

Por mais que seja divertido acompanhar as aventuras de Oz e por mais empatia que algumas de suas convicções possam gerar, a minissérie reafirma seguidamente a sua natureza monstruosa. O arrepiante flashback dele com seus irmãos e a reveladora cena do dedo no cortador de charutos não deixam dúvidas.

E muito menos a soturna cena no final, à beira-mar. Lembrando que aquilo não foi o seu pièce de résistance...


SPOILER — ...afinal, sua mãe o fez jurar que a mataria caso ela ficasse irreversivelmente doente. Coisa que ele não faz e dá outra dimensão àquelas lágrimas. Mais do que Vic e Sofia, ela é, de longe, sua maior vítima.


Apesar da leve pisada no freio no último episódio, Pinguim manteve a alta octanagem até o fim. Excelente que o Batman não deu as caras. Uma das piores coisas dos quadrinhos é quando o mundo é tratado com se fosse um ovo de codorna, com todos se esbarrando e heróis oniscientes e onipresentes, prontos para estragar toda e qualquer negociata suspeita de esquina. Oito milhões de pessoas vivem em New York. São Paulo tem 11 milhões e meio. Faça as contas. Além do mais, o Batsinal fica ainda mais brilhante no céu quando o desafio sobe de nível. E subiu. Muito.

Plano de carreira reestruturado, o Pinguim hoje goza o status de anti-vilão. Por essa nem Burgess Meredith esperava.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A última nota de Quincy Jones


Quincy Delight Jones Jr.
(1933 - 2024)

Se foi o Quincy Jones. Isso nem parece uma expressão de verdade. É quase como afirmar que "se foi a música" ou "se foi um instrumento". Lendário? Também é muito pouco.

Quincy não foi apenas o produtor, compositor e arranjador que moldou a cara dos anos 1980 com os estelares Off the Wall (1979), Thriller (1982) e Bad (1987), de Michael Jackson. E nem apenas o produtor e condutor de "We Are the World", um dos singles mais vendidos de todos os tempos. Do alto de seus 28 Grammys (e desculpe, mas, sim, isso vale muita coisa), a história de Quincy se confunde com a história da música pop contemporânea e da própria história da comunidade negra da América no século 20.

Neto de uma ex-escrava, a vida não facilitou para Quincy. Desde criança, quando vivia de pequenos roubos, até sua estreia na banda do jazzista Lionel Hampton e suas colaborações com nomes como Frank Sinatra, Ray Charles, Dinah Washington, Louis Armstrong, entre outros gênios, e ainda sentindo na alma toda a violência da segregação racial dos Estados Unidos, pode se dizer que Quincy fez e viveu o seu próprio milagre. Que vida. Que história.

Neste momento, é impossível não recomendar Quincy, documentário da Netflix co-dirigido por sua filha Rashida Jones (também uma ótima atriz) e por Alan Hicks. Se ainda não assistiu, recomendo demais. É excelente e imperdível.


Ninguém é eterno, lógico. Mas algumas vezes, vivenciar um momento histórico traz uma sensação de fim de festa absurdo e que daqui pra frente a ladeira abaixo será ainda mais íngreme. Essa é uma dessas ocasiões.

Rest in Power, Quincy Jones.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Velha Abril Jovem


Vou te dizer... os cortes e alterações dos gibis da Abril ainda me dão nos nervos, mas a diagramação, o letreiramento e os retoques – em condições 100% artesanais – eram incrivelmente agradáveis aos olhos. Especialmente aos olhos de um moleque com o conforto de um prático formatinho.

Os caras sabiam fazer.