The Devil's Hour chegou pra mim do jeito como tudo tem chegado ultimamente: através de um corte que os algoritmos julgaram que seria do meu agrado. O corte em si é bacana, mas não vende a série direito. As classificações "thriller, drama, sobrenatural" são um pouco mais específicas. E a sinopse é cuidadosamente superficial.
“Lucy Chambers é uma assistente social com uma família e um relacionamento problemáticos. Ela acorda todas as noites exatamente às 3:33 da manhã, depois de ter visões aterrorizantes durante a chamada hora do diabo. Seu filho de oito anos é retraído e não expressa emoções. Sua mãe fala com cadeiras vazias. Sua casa é assombrada pelos ecos de uma vida que não é a dela. O nome de Lucy está inexplicavelmente conectado a uma série de assassinatos brutais na área, e ela é atraída para a caça de um serial killer.”
O fator descoberta é a peça-chave no slow burn que o showrunner Tom Moran montou para a série (no Brasil, literalmente, A Hora do Diabo). Isso se reflete nas duas temporadas até aqui, com enxutos 6 episódios na primeira e 5 na segunda – não exatamente o padrão da Prime. O que torna um desafio tecer maiores comentários sem chafurdar em spoilers e estragar a experiência alheia. Mas os mais calejados, especialmente leitores de histórias em quadrinhos, têm uma boa chance de triangular a premissa básica logo no primeiro episódio.
Já volto aí.
A série britânica é uma cocriação de Moran e do produtor executivo Steven Moffat, de Doctor Who, e realizada através de sua companhia, a Hartswood Films. Ênfase em "série britânica". Destacar o nível de um elenco da terra do Rei Charles III é até redundância, mas vamos lá.
Jessica Raine foi um achado no papel da cativante, corajosa e sofridíssima Lucy Chambers, Peter Capaldi é a singularidade dramática de sempre, com seu Gideon Shepherd imerso em mistério e inteligência-flertando-com-a-insanidade. A química entre eles, remetendo ao clássico duo Clarice Starling-Hannibal Lecter, é qualquer coisa de espetacular.
Nikesh Patel como o obstinado detetive Ravi Dhillon experimenta uma interessante curva ascendente de dimensão no decorrer da série. O promissor Benjamin Chivers traz uma performance memorável, algo assustadora, como Isaac, o estranho filho de Lucy. Phil Dunster (o Jamie Tartt, de Ted Lasso) surpreende como Mike Stevens, o cruel pai de Isaac. E Meera Syal entrega um misto de racionalismo e ambiguidade como a psicóloga Ruby Bennett.
A narrativa tem sido chamada por aí de "monótona" e "maçante". Não achei, não acho e, tenho certeza, não acharei na vindoura (e última?) 3ª temporada. Mas certamente exige do espectador. Não porque é física quântica, embora tenha tudo a ver. É que ela se utiliza de recursos um tanto incomuns.
A trama requer (olha o palavrão, Gen Z-ers) atenção e muita paciência, porém jamais perde o foco e se desenvolve sem tergiversadas Lostianas. Os enigmas são desvendados lenta e metodicamente, não raro, abrindo novas questões pelo caminho. Todas bem difíceis de antever, mesmo que as respostas estejam em nossa cara o tempo todo. É tudo muito bem encoberto.
E, como dizem, o segredo é a alma do negócio.
The Devil's Hour in 33 seconds“I wake up, I open my eyes, I look at the time and it is 03:33am.” 📺 The Devils Hour (28th October) 🎭 Jessica Raine, Peter Capaldi, Nikesh Patel
Publicado por Amazon Prime Video em Sábado, 22 de outubro de 2022
Até os teasers ficavam na defensiva.
Para maiores e, acho, melhores comentários, só com spoilers mesmo. Fiz uma seleçãozinha organizada por grau de risco.
⚠️ ⚠️ ⚠️ SPOILER CONSERVADOR ⚠️ ⚠️ ⚠️
Visão geral da premissa sem detalhes da trama
Visão geral da premissa sem detalhes da trama
O título do post é revelador, admito. Não consegui resistir. Ao mesmo tempo em que é uma homenagem a uma HQ que gosto muito, tem tudo a ver com o conceito de vida, morte e renascimento de The Devil's Hour. E o precedente dos quadrinhos não para por aí.
É impossível não relacionar a jornada metafísica de Lucy à de Moira MacTaggert em House of X e Powers of X, de Jonathan Hickman. É o mesmo mecanismo de repetição da mesma vida ad eternum retendo as memórias das encarnações anteriores com todas as vantagens/desvantagens que isso traz.
Como notinha de rodapé, Hickman tampouco foi original. A ideia de alguém vivenciando um loop à Feitiço do Tempo de uma vida inteira surgiu primeiro no livro The First Fifteen Lives of Harry August, que a escritora inglesa Claire North publicou em 2014. Livro este que Hickman, em entrevista anterior a HOXPOX, disse que leu e achou "fantástico".
Logicamente que a North ficou, digamos, desnorteada com as coincidências. Minhas simpatias a ela.
☢️ ☢️ ☢️ SPOILER MODERADO ☢️ ☢️ ☢️
Visão geral do conceito sem detalhes da trama
Visão geral do conceito sem detalhes da trama
"O tempo é simultâneo". O mundo (da cultura pop) nunca mais foi o mesmo desde que o Dr. Manhattan declamou essas palavras. Não deu pra conter o sorriso de satisfação quando Gideon usa um simples cadarço para explicar esse conceito para uma atônita Lucy.
Triângulo do Medo (Triangle, 2009) e Coerência (Coherence, 2013) são bons exemplos de abordagem deste conceito multiversal. Não porque são filmes mais do que divertidos, mas porque foram mais ousados do que a média.
Neste sentido, The Devil's Hour consegue ir ainda mais longe nas possibilidades. Praticamente um Fringe 2.0.
☠️ ☠️ ☠️ SPOILER ARROJADO ☠️ ☠️ ☠️
Detalhes da trama
Detalhes da trama
Os "fantasmas" que assombram Lucy e outros personagens são ecos dessas linhas temporais simultâneas — ruídos de passados, presentes e futuros acontecendo naquele momento em realidades paralelas, coisa de louco. Esses ecos acontecem sempre que uma alteração anômala é feita na linha natural dos eventos. Quando Gideon, que se lembra dos fatos de suas vidas anteriores, passa a corrigir algo que julga errado, as pessoas diretamente afetadas por essas alterações acabam com os sentidos sensoriais amplificados. Daí elas captando ecos de outras vidas num primeiro momento (e possivelmente uma internação por esquizofrenia) e, com a orientação adequada, preservando sua memória de uma encarnação para a seguinte.
Isaac não consegue apenas ver os ecos em 8K, mas se teleportar para qualquer uma daquelas realidades simultâneas possíveis, em qualquer local ou ponto cronológico. Isso porque ele foi o mais afetado pelas ações de Gideon: Isaac não deveria nem existir. É 100% anomalia.
Uma excelente — e certamente incompreendida — sacada do roteiro foi a ordem dos fatores. A Lucy detetive e a Lucy assistente social se confundem o tempo todo. Mas ao contrário do que a montagem sugere, a Lucy assistente social é a sua 2ª encarnação. A Lucy detetive é a verdadeira Lucy "original", a primeira, a que perdeu a mãe quando criança. Mas só vamos ser apresentados a ela na 2ª temporada.
Gideon consegue alterar quase tudo, exceto algumas constantes. A principal delas é que, de um jeito ou de outro, ele sempre será capturado por Lucy. Sendo assim, a Lucy assistente social que vemos no início já é a Lucy alterada por Gideon para recrutamento futuro. Para tanto, ele salva a vida da mãe dela, mas altera mais coisas do que deveria no processo. Efeito Borboleta versão Mothra. Enquanto isso, o verdadeiro assassino continua à solta. Brincar de Deus não é mole.
Tudo isso é explicado por Gideon à Lucy assistente social e ao Ravi no interrogatório, no início da série. Mas naquele momento não temos a menor ideia do que ele está falando. Acredite, rever a série pelo menos mais uma vez é altamente recomendável. É outra história.
Na temporada 2, senti falta de mais Nick, o parceiro de Ravi. O simpático e bonachão Alex Ferns é um ladrão de cenas. Mas até entendo: a realidade em que Nick está morto é a única em que o assassino está perto de ser detido.
Assassino, aliás, que parece antecipar tudo, até mesmo à frente de Gideon, veterano de milhares de vidas. Minhas fichas no Isaac.
🟢 🟢 🟢 RESGATE DO POST 🟢 🟢 🟢
Fim dos spoilers
Fim dos spoilers
Não tinha a menor intenção de escrever sobre The Devil's Hour. A recepção foi positiva nos agregadores de críticas e rendeu um divertido fandom no Reddit, mas como é "lenta e chata" para alguns, preferi me resguardar de futuros processos por propaganda enganosa e elogios indevidos. O problema é que a série cresceu em minha mente como se fosse um fungo de The Last of Us. Quando bateu em analogias aos quadrinhos, decidi botar uma imagem e rabiscar duas ou três linhas. Mas a empolgação com as possibilidades continuou fervilhando e terminei arrancando o cabo USB do teclado.
O próprio post parece ter sofrido misteriosas alterações do tipo que se vê na série. Isso pega. Então, que venha mais Lucy Chambers, Gideon Shepherd e cia. O "futuro" promete.
Acho que dá tempo para uma 3ª assistida antes da 3ª temporada...