quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Vida, o Grande Momento da Morte


As Muitas Mortes de Laila Starr traz uma premissa simplista: a imortalidade está prestes a ser descoberta e, no panteão divino hindu, a Morte é dispensada de suas atribuições. Pior ainda, é remanejada para a Terra, onde viverá como mortal no corpo de Laila Starr, uma jovem suicida. Inconformada, ela parte para uma caçada ao futuro criador da imortalidade, então ainda um bebê de nome Darius. A empreitada, cheia de contratempos, literalmente apresenta à Morte o sentido da vida. E da humanidade.

Lançada aqui em abril pela Devir, a mini em 6 partes foi publicada originalmente em fevereiro de 2022 pela BOOM! Studios. É uma das obras mais ou menos indie da sensação Ramnarayan Venkatesan, o Ram V. Atualmente, o roteirista indiano tem exclusividade com a DC, mas também escreveu para a Marvel até há pouco tempo. Não deixa de ser irônico ele criar uma obra tão existencialista e reflexiva enquanto trabalhava nas revistas solo do Venom e do Carnificina. Isso que é trafegar entre o luxo e o lixo.

O homem é um craque. Com um insuspeito bom humor, confere leveza e fluidez às camadas e transições – além de facilitar a compreensão da complicadinha hierarquia bramânica para os neófitos. A ex-Morte Laila Starr é uma protagonista improvável e irresistível, assim como a sua jornada de crescimento e adequação. Sua trajetória é um contraponto à de Darius e as duas se completam numa espécie de arco coming of age. Isso é novidade.

Por vezes, lembra a estrutura de Castelo de Areia, de Pierre Oscar Lévy e Frederik Peeters (e que virou filme do Shyamalan), mas a pegada é menos visceral e mais espiritualista. Neste colorido metafísico da condição humana, Neil Gaiman é sempre uma referência, mas talvez Hayao Miyazaki tenha tido uma maior ressonância aqui. Particularmente A Viagem de Chihiro, com o divino e o abstrato personificados por animais (Kah, o corvo funerário) e até objetos e lugares (o templo chinês do Sr. Wei). Filosofia da lisergia.



O traço do desenhista alfacinha Filipe Andrade tem uma discreta exuberância. Com linhas soltas, mas efetivas, as composições passeiam da simplicidade à complexidade. Por vezes, lembra algo entre uma estilização pop à Stuart Immonen/Jamie Hewlett e uma abordagem mais artsy e barroca, mais Ziraldo, mais Tarsila do Amaral. Exagero? Provavelmente. Mas a linda e tocante sequência protagonizada pelo caseiro Bardhan não merecia menos. É a minha predileta, por sinal.

E juro que ainda vi detalhismos à Sergio Toppi no decorrer da leitura. Que, aliás, é tão rápida quando envolvente. Ou talvez por isso mesmo.

São 120 e poucas páginas, mais as belas capas por artistas diversos, que passam voando. Impressiona, portanto, a imersão em temas inesgotáveis como o embate Eternidade X Finitude e a gradual mudança de perspectiva da Morte/Laila Starr, bem como suas novíssimas experiências humanas. Neste último, senti falta de mais background. Um exemplo é a cena em que ela está ficando com uma garota numa festa, no segmento "Virando fumaça", narrado do ponto de vista de um cigarro (!). Óbvio que gostaria de saber como ela chegou até ali, seus erros, acertos e tudo o mais.

O mesmo se aplica às divertidas interações com a deusa Agni, aqui vertida a uma secretária celestial, com Prana, o bon vivant deus da vida, e com Munmun, uma fantasminha simpática (e camarada). O texto de Ram V é delicioso e elas podiam ter durado bem mais. Isso me leva à única reserva que faço à HQ.

É compreensível o mistério sobre a imortalidade e suas consequências, afinal, não é esse o ponto central. Porém, a demissão precoce da Morte gera uma inconsistência cronológica: até a imortalidade ser desvelada, seus serviços seguiriam absolutamente necessários no mundo – e foram em várias ocasiões, só naquele microcosmo.

Mas dá pra arrumar jogando na conta da elipse. De outro modo, isso inviabilizaria a história e essa é daquelas que vão me acompanhar por um bom tempo...

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Durante a leitura, uma lembrança recorrente veio à tona com força total: A Desintegração da Morte, do imortal paulistano Orígenes Lessa. Publicado em 1948, o romance é curto e direto, com pouco mais de 100 páginas. Li pela 1ª vez na adolescência.

Fiquei impressionado com a distopia assustadora gerada pela imortalidade e suas consequências. É um take pessimista e paradoxalmente apocalíptico, na linha "cuidado com o que você deseja".


Recomendo demais.

3 comentários:

Scant disse...

bem legal

abs!

Sandro Cavallote disse...

Mano, vc puxou um Orígenes Lessa do nada. Esse eu não conhecia e foi pra lista. Graças aos sebos, ei de encontrar.

Aproveitarei pra procurar uns Coleção Vagalume que ando inconscientemente pensando nos últimos tempos. Provavelmente Spharion será o primeirão.

E fiquei bem curioso sobre a Laila. Colocarei na lista também.

doggma disse...

Valem a pena (HQ & livro).

Também quero revisitar alguns Vaga-Lume. Só preparando para o choque nostálgico...

Abração!