"(...) as pessoas vão buscar certas referências ocultas. Mas não é necessário um profundo conhecimento sobre essas coisas. Precisa saber que, quando ele fala, você diz: 'parece que ele sabe do que está falando'. Por isso, incluí aquilo no gibi...
para parecer que sei do que estou falando."
Este é Mike Mignola, explicando um pouco de seu processo criativo, durante uma coletiva na Comic-Con de 2002. Apesar do comentário se referir ao universo de sua cria mais famosa, também decifra muito da mística de suas obras em geral e da maneira sempre insólita com que ele (re)vê certos padrões, por mais que estes tenham sido explorados ad nauseum. Jogar com a sugestionabilidade alheia é uma arte sutil. Dependendo da imaginação do observador, a coisa pode ir muito mais além do que o próprio autor conseguiria. Basta fornecer um ou dois pequenos trechos de informação e o céu é o limite. O único porém é saber quais informações e em qual contexto. Mignola e o diretor Guillermo del Toro falam sobre isto (entre outras coisas) no sensacional DVD de extras do filme Hellboy, que, por sinal, merece uma boa destrinchada qualquer hora dessas.
No caso do demônio de chifres serrados, as referências ao ocultismo e ao folclore de várias culturas pipocam em ritmo estroboscópico. Não que sejam meros factóides azeitados à moda da casa, longe disso. Termos como Selo de Salomão, Lamia, Mitologia Cthulhu, Dama Sangüinária do Cachtice, Iggdrasil, e obscuridadezinhas Lovecraftianas afins, têm seu lugar garantido como "objetos de estudo".
Neste sentido, é bem interessante o comentário de Mignola. Ao espalhar este lote de referências nos quadrinhos, elas acabam adquirindo traços do mesmo idioma pop em que foram inseridas. Nada melhor para instigar uma daquelas sessões de pesquisa que atravessam a madrugada movidas à cafeína.
É verdade que tal abordagem não é mérito exclusivo de Mignola. Mas até onde vejo, ele é o Tiger Woods do Oculto. Grande parte desta impressão vem da naturalidade e espontaneidade gritantes de seu texto. E, claro, daquele traço. É fácil perceber que o cara se divertiu horrores enquanto trabalhava nas histórias. The Amazing Screw-On Head eleva esta característica à zilionésima potência. É hilário. Mignola já fez graça antes, como na ótima mini do sumido Rocket Raccoon e na adaptação do conto sword & sorcery Fafhrd And The Gray Mouser. Mesmo em Hellboy, ele sempre teve utilizou ganchos cômicos nos argumentos, mas nunca desta forma. Mignola revela ser dono de um timing absurdo pra comédia. Encarna uma Alice Liddell gótica e passeia pelo maravilhoso mundo do humor negro. Com uma simplicidade quase singela, ele abraça o bizarro com a mesma familiaridade de Tim Burton dirigindo Johnny Depp.
O resultado faz de TASOH, além de um puta exercício de estilo, escapismo em estado bruto. Este texto aqui soa mais pesado que o desenho.
O episódio piloto foi exibido pelo Sci-Fi Channel, no início do mês. Curiosamente, a animação foi adaptada de uma HQ one-shot, escrita e desenhada por Mignola em 2002, para a Dark Horse. Em quadrinhês, "one-shot" é o equivalente a um episódio piloto. Infelizmente, a revista ficou só nisto, o que indica que os próximos capítulos da série poderão ser criações exclusivas e inéditas do autor. E vou te contar uma coisa. Não vejo uma releitura tão agregada ao material de origem desde o cânhamo animado The Maxx, do genial Sam Kieth. Não é pra menos, pois Mike Mignola comparece nos créditos como diretor de arte. Então, nada mais natural que os profissionais envolvidos fossem submetidos à um cursinho de "Jack Kirby encontra o Expressionismo Alemão", como bem classificou Alan Moore.
Quem curte o traço peculiar do cara, vai querer gravar em DivX e exibir o desenho num telão em praça pública.
Screw-On Head é um agente top-secret do governo norte-americano na época da Guerra Civil. Basicamente, é uma cabeça mecânica parafusável. Com a dedicação de um Jack Bauer, ele é uma espécie de "última linha de defesa" da administração Lincoln (sim... o bom e velho Abraham) contra as inúmeras intempéries do Mal que ameaçam os cidadãos americanos. Em especial, aquelas provocadas pelo tétrico Imperador Zombie (hehe) e seus temíveis lacaios: duas velhinhas e um macaco (na revista, eram três velhinhas - a "criminosa lunática" ficou de fora). O vilanesco Zombie invade o Museu de Livros e Documentos Perigosos, seqüestra o Professor Fruen e rouba um artefato conhecido como "Fragmento Kalakistão". Segundo a lenda, o tal fragmento, se traduzido, indica o local onde está escondida a "Fabulosa Jóia do Tamanho de um Melão". Este nabo, digo jóia, foi a fonte do poder sobrenatural de Gung, O Magnífico, um tirano que dominou o mundo em 9.632 a.C. Para cumprir sua missão, nosso herói contará com o valioso auxílio do Sr. Groin e de seu fiel cachorro... o Sr. Dog.
Muito pouco é revelado sobre o passado do parafuso ambulante. A única seqüência mais reveladora rende um ótimo momento, quando o mesmo troca juras de amor com seu antigo interesse romântico. Na HQ, Mignola chega a brincar ironicamente com a questão da origem ultra-secreta do herói (provavelmente, porque ele nem se deu ao trabalho de pensar em alguma). Paul Giamatti está perfeito na voz do inabalável Screw-On Head, trafegando em tons de inocência, idealismo e uma certa melancolia. Já Corey Burton fez um belo serviço dublando o Sr. Groin e o Presidente Lincoln. Veterano, ele já trabalhou na série clássica dos Transformers e do G.I. Joe, além de ser a voz cavernosa do Brainiac, em Superman: The Animated Series e Justice League Unlimited.
Mas o maior destaque é mesmo o trampo irretocável de David Hyde Pierce como Imperador Zombie. O personagem - trapaceiro, arrogante e com um senso de humor corrosivo - encontra um perfeito feedback na voz cínica de Pierce (que dublou o Abe Sapien no longa do Hellboy). O nobre zumbi lembra uma cruza bastarda de Jack Sparrow com Dr. Phibes. Um grande vilão, daqueles em que o Gary Oldman cairia como uma luva numa versão para o cinema.
O desenho é praticamente um slide-show da revista, mas algumas modificações se fazem presentes e acabam tornando as duas versões deliciosamente únicas. Alguns personagens, soluções visuais e piadas infames são diferentes. A conclusão também é diferente. Os dois são imperdíveis.
Agora é ficar de olho na programação do Sci-Fi e cruzar os dedos para que The Amazing Screw-On Head finalmente deixe sua condição de piloto multimídia.
Na trilha: PJ Harvey, Is This Desire?. Eu quero esta mulher assim mesmo.
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