Sempre tive a sensação de que Kevin Smith seria o escritor perfeito para o Homem-Aranha. Achava que os dois nasceram um pro outro, mesmo antes de Smith se aventurar pelas HQs. Lá pelos idos de Barrados no Shopping/Procura-se Amy, mais ou menos. Enquanto no primeiro filme ele teve a manha de escalar ninguém menos que Stan Lee, em carne e mito (e lhe fazer perguntas como "o pau do Coisa também é de rocha laranja?"), no segundo ele chafurdou geral e botou um trio de quadrinhistas para protagonizar. Mas a ligação com o Teioso vai mais além. Kevin Smith é mestre em destrinchar a vidinha de pessoas comuns (nós!) e situações cotidianas, muitas vezes até dando picas pra continuidade da ação. O que é o genial O Balconista, senão um bando de gente jogando conversa fora durante uma hora e meia? Este aspecto mais informal e despretensioso seria o lado "Peter Parker" de Smith. E a visão peculiar do diretor quando se trata do campo minado que é um relacionamento de verdade? Parker + MJ, travado. Já o senso de humor malandro do aracnídeo corresponderia às típicas observações de Smith sobre o establishment, o showbiz e a cultura pop, sempre carregado de deboche e ironia. Isso sem falar nas 978 referências que Smith metralha por segundo, seja em filmes, entrevistas ou nas HQs de Bluntman & Chronic.
Adicione aí uma dupla de artistas "da hora" (o casal Terry & Rachel Dodson), liberdade editorial suficiente pra fuçar no passado de alguns personagens e voilá. O projeto parecia reluzir no horizonte com a intensidade de uma supernova. Melhor que isso, só se fosse o PT Anderson se aventurando em um conto new yorker do Aranha. Ou então o Lou Reed (já pensou o velho Lou reescrevendo O Garoto que Colecionava Homem-Aranha?). Pelo menos foi essa a impressão que eu tive. Em 2002.
"The Evil That Men Do", o tal projeto, começou arrepiando, com vários previews instigantes sendo divulgados na rede. 99% deles traziam uma Gata Negra quase radioativa de tão gostosa - o que me levou, tempos depois, a dedicar um CdMTxXx inteirinho só pra ela. O casal Dodson estava inspirado e mostrou com quantas curvas se justifica um oba-oba. A mini (em seis partes) estreou em agosto de 2002, mais ou menos na época em que eu descobri que existia vida fora do Kazaa. O tom inicial era de entretenimento leve e descompromissado, com um clima sempre agradabilíssimo. O pacote pop perfeito. Smith estava irresistível nos textos. Normal, pois ele é fã também, e a primeira coisa que fez foi devolver à Gata Negra toda a sensualidade que há tempos lhe negavam (anos-luz da lenga-lenga chorosa envolvendo Wilson Fisk e o poder de "má-sorte"). Logo nas 3 primeiras páginas, Smith nos coloca a par dos pensamentos mais íntimos da gatinha Felicia Hardy, in the shower (onde mais).
A premissa era simples e mostrava o Aranha investigando a morte de um estudante da mesma escola onde seu Parker-ego leciona. Aparentemente, o jovem sofreu uma overdose de heroína, o que contraria seu perfil de bom rapaz. Pra piorar, a autópsia não revela qualquer traço de química ilegal em seu organismo. Nem um tapinha sequer. Correndo por fora, a Gata sai de seu exílio voluntário em Los Angeles para descobrir o paradeiro de sua amiga Tricia Lane, que simplesmente evaporou em New York. Como não poderia deixar de ser (ou poderia?), os dois casos estão conectados e fornecem o subterfúgio perfeito pra felina reencontrar seu ex-aracno-affair. Kevin Smith não economiza na pimenta e coloca os dois pra trocarem faíscas com os olhos. A narrativa é bem ágil, mesmo sendo bastante verborrágica. Com balões e recordatórios abarrotados de informação, ele registra praticamente todas as impressões dos personagens. Uma referência de estilo mais recente seria Brian Michael Bendis nos seus melhores dias (Alias, Daredevil), acrescido de um humor afiadíssimo. E que humor! A seqüência em que a dupla "tortura" a bandidona Scorpia pra extrair uma informação é de rachar o bico. Já o esperado reencontro dos personagens rende diálogos (e pensamentos!) memoráveis, até resolvendo antigos impasses na relação. Como pano de fundo, uma conspiração meio barra-pesada que pode ou não envolver um figurão de New York com francas aspirações políticas. Mas era só o pano de fundo. Definitivamente, o clima era de comédia romântica recheada de duplo sentido e temperada com uma boa dose de ação. Um Alta Tensão super-heróico.
E assim foi até a 3ª edição, publicada num já longínqüo outubro de 2002, quando Kevin Smith trancou a matrícula e foi cuidar de outros projetos (filmar Jersey Girl pra Miramax e cumprir a agenda de sua produtora View Askew). Saiu sem deixar bilhete ou recado com a vizinha, e só voltou a encostar no roteiro em meados de 2005 ("the impossible has happened") - fazendo com que a mini só voltasse a ser publicada em janeiro último e concluída em março... quase tropeçando em Civil War, portanto. Cabe dizer que o gordinho barbudo foi bastante criticado, sendo até acusado de anti-profissional.
O problema é que nestes meses de "seca", pensava-se que ele já tivesse recebido integralmente por um serviço que não havia concluído (configurando aí um cambalacho ao melhor estilão Tim Maia). Bobagem. Ficou-se sabendo depois que a Marvel Comics só paga por scripts completos e já entregues. Sendo assim, Smith só recebeu quando de fato terminou. Mas ainda havia uma outra questão, dessa vez menos passível de defesa. Um delay na vida de um cara desses significa muita coisa. Lotes de informações novas ou atualizadas e uma visão mais complexa do mundo. Isto se refletiu diretamente na atmosfera "National Lampoon" da HQ e o que veio a seguir começou a justificar o título sombrio da minissérie.
"The Evil That Men Do" é uma citação ao solilóquio de Marco Antônio na tragédia Júlio César, de Shakespeare. O trecho é "The evil that men do lives after them; But the good is oft interred with their bones." ("O mal que os homens fazem vive após eles; Mas o bem é enterrado com seus ossos"). Não, nunca li o velho William (no máximo, assisti o Hamlet do Brannagh). Só sei disso porque também é o título de uma ótima canção do Iron Maiden. Metal é cultura! De qualquer forma, caiu como uma luva. Ou como uma tempestade. Quem acompanhou os capítulos anteriores levou uma ripada na nuca com o quarto round - mesmo com a conclusão pra lá de arrepiante da 3ª edição. Sinceramente, fiquei tão confuso que até pensei que tivesse perdido alguma edição "3½" ou algo do tipo. Kevin Smith revirou tudo de ponta cabeça de tal forma que as novas informações literalmente te soterram desde a primeira página e você só pode balbuciar "não, isto não pode estar acontecendo... deve ser um pesadelo". O casal Dodson também retornou à prancheta e ambos tiveram de se readaptar. A arte-final de Rachel ficou mais claustrofóbica, as cores (agora de Lee Loughridge), antes suaves e ensolaradas, ficaram mais saturadas e os ângulos e feições de Terry adotaram um ar pesaroso e introspectivo.
Ok, isto faz de "TETMD" um trabalho irregular na mais perfeita acepção da palavra. O hiato quilométrico entre uma metade e outra foi crucial em todos os apectos. Mas embora muitos discordem, irregular não é, necessariamente, algo ruim. Tudo bem que uma certa pré-disposição ajuda na hora de assimilar informações (o que parece ser uma anomalia meio rara por aí). O fato é que Kevin Smith conseguiu conferir mais profundidade e dimensão no perfil psicológico dos personagens do que eles pouco ou jamais tiveram em suas longas bi(bli)ografias. Isto inclui desde os vilões até o próprio Aranha e, em maior grau, a Gata Negra.
Como disse o próprio Smith: "É uma história muito melhor agora do que se eu a tivesse completado em 2002". É vero. Senão, vejamos: o diálogo inicial entre Felicia e um certo advogado da Cozinha do Inferno chega a ser atordoante, tamanho o fluxo de novidades de cair o queixo; o momento em que Peter tenta convencer Matt Murdock de que precisa de sua ajuda, revezando entre o bom-humor (Peter lembra de uma história vexatória - fase pré-Miller - na qual Matt fingia que estava morto e que na verdade era o seu irmão gêmeo) até a mais pura, deslavada e emocionante amizade; Murdock (de novo) lembrando que é PhD no campo Mulher Com Problema (Mary Tyfoid, Viúva Negra, Heather Glenn, Karen Page, E. Natchios, Maya Lopez, etc, etc); a "instrutiva" participação do mutante Noturno; a bem sacada natureza dos misteriosos poderes dos vilões (cujo background envolve até um notório carrasco nazi); o clima pesadão à Sobre Meninos e Lobos em uma linha narrativa específica (simplesmente impossível não relacionar).
Mas talvez o maior mérito de Smith em "TETMD" tenha sido colocar Felicia Hardy frente-a-frente com os demônios de seu passado obscuro. Isso sem tropeçar em clichês e sem recorrer à soluções fáceis. O resultado é que eu gosto muito mais da Gata Negra agora do que antes, se é que isto é possível. Na conclusão, Smith ainda fornece um link para a revitalização de um dos inimigos mais esdrúxulos do Aranha. Do jeito que foi feito, os desdobramentos parecem promissores.
De fato, a segunda metade de "TETMD" é muito mais história que a primeira. Mais intrincada, crível e tridimensional. Praticamente uma humanização da proposta anterior. Ainda assim, não foi desta vez que vi meus ídolos se reunirem em perfeita harmonia. No entanto, após a catarse proporcionada pelas duas últimas edições, algo ficou bem claro pra mim: não foi Kevin Smith quem atrasou, foi "The Evil That Men Do" que chegou muito, muito cedo.
Só pra lembrar: a Panini Comics está publicando a minissérie por aqui, sob a alcunha "O Mal no Coração dos Homens" - razão pela qual abordei o espírito da HQ e não seus fatos e escolhas criativas. Já pensou, você comprando a revista religiosamente e levar com um spoiler bem na cara?
dogg, a pensar. E na trilha: o estonteante álbum de estréia do Black Stone Cherry.
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