terça-feira, 26 de setembro de 2006

Operação Festival: BABEL


Compaixão. Segundo um dicionário online, trata-se de dor perante o mal alheio; pena; comiseração; lástima. Segundo Alejandro González Iñárritu, trata-se do elemento que falta à humanidade para convivência pacífica. Pelo menos foi o que disse no palco do Odeon antes da premiére de seu filme no Festival do Rio. Ainda segundo o diretor, o filme trata também de fronteiras; aquelas que todos conhecemos e aquelas que são guardadas em nossas cabeças, que afloram quando tomamos posturas em relação ao próximo.


Um moleque no meio do deserto do Marrocos dispara um tiro. Quatro famílias em três continentes têm suas vidas afetadas por este evento. Esta é a sinopse de Babel (idem, 2006). Tentar encaixar esta sinopse nas palavras do parágrafo anterior parece, à primeira olhada, tão fácil quanto esbarrar com a Scarlett Johansson na porta da minha casa. Uma família no Japão, outra no Marrocos, uma terceira no México e uma quarta dividida nestes lugares. Cinco línguas, dentre elas a dos surdos-mudos. Um tiro. Vamos combinar que o plot não é simples, mas Iñárritu (pronuncia-se Inarritú - aprendi ontem quando a mestre de cerimônias o apresentou) mostra competência para contar esta estória de forma convincente e tocante, sem em nenhum momento resvalar no piegas. É mais um daqueles filmes onde não há protagonistas, todos coadjuvam, ninguém tem destaque sobre ninguém, mesmo que no elenco tenhamos um Brad Pitt, uma Cate Blanchett e um Gael Garcia Bernal contracenando com Adriana Barraza (Quem?), Rinko Kikuchi (Hã?) e Said Tarchani, o garoto marroquino que nem creditado no IMDB está, mas é quem rouba a cena a cada vez que aparece.



Iñarritu é um diretor cuja carreira é interessante. Não há muito no seu background para ser comparado, mas, do que ele já fez, pode-se afirmar que tudo preza pelo equilíbrio e uniformidade. Dirigia algumas produções da Televisa até realizar Amores Brutos e receber nomeação ao Oscar por melhor filme estrangeiro. Descoberto pela indústria dos EUA, realizou, sempre em parceria com o roteirista Guillermo Arriaga, 21 Gramas , que ganhou nomeações para melhor ator coadjuvante e atriz. E agora Babel. 3 filmes. Só. No entanto, percebo que ele, mesmo com filmografia tão discreta, já consegue aquilo que muita gente persegue e não alcança: fazer cinema autoral. Ver seus filmes dá a sensação de que a cada quadro temos uma assinatura no cantinho inferior mostrando quem está por trás da obra. Não à toa, seus dois trabalhos na grande indústria já lhe renderam a possibilidade de escalação de atores reconhecidamente seletivos quanto à qualidade do que estrelam. Indo além, ele não só consegue fazer cinema autoral na grande indústria com apenas três filmes, como também os classifica como uma trilogia, tipo de indulgência só possível para gente já conceituada (ou obra adaptada, vide SdA). O primeiro tinha um acidente de carro e um cachorro que interconectava 3 estórias. O segundo também tinha um acidente de carro que perpassava os dramas de núcleos distintos. Agora o acidente mudou, mas mudou também a força do tapa na cara. Antes os eventos eram focais. Ali no bairro, acontece com qualquer um. Página 8 do jornal. Até aí, muitos outros diretores já se arvoraram na mesma seara, com mais ou menos competência, sendo que antes esta competência era mais destacável pela segregação de culturas. Com as relações globais de hoje, mostrar o mesmo drama existencial exige outro tato e, de uma forma geral, este “tato” opta pelos mecanismos dos sistemas e corporações (vide Syriana), em detrimento dos mecanismos da alma. Em Babel, mesmo com as proporções intercontinentais, o filme não perde a característica de retratar o drama também das coisas pequenas, só que mostrando como estas individualidades são reflexos puros das tais fronteiras internas influenciadas por nossa imersão cultural, como falei no começo do texto.



Nesta linha, Babel também não perde a oportunidade de cutucar os EUA, assim como 15 entre 10 produções sérias vêm fazendo ultimamente, mas ao menos não se prende ao maniqueísmo dos “americanos maus” vs “resto do mundo bons”. Sim, em diversos momentos nos mostra como o americano é capaz de ser cruel com seus vizinhos, seja na relação pessoa x pessoa ou na relação governo x pessoa, mas mostra também que eles são cruéis até mesmo com seus próprios cidadãos, como no embate entre Pitt e os outros turistas do ônibus, ou quando o governo, no afã de arranjar uma justificativa para rotular o acidente idiota como terrorismo, impede o envio de uma ambulância para atender uma cidadã. Mas vemos também que o mundo tem bem mais tons de cinza do que os jornais costumam mostrar. Quando vemos a postura da polícia marroquina no tratamento de suspeitos, fica bem claro que a intolerância não é trademark yankee – e não estamos falando aqui de grupos radicais, mas de uma força policial integrante de um sistema de um país soberano. Em contraponto, temos também o drama da japonesa surda-muda; a retratação de seu mundinho silencioso que contrasta com as impressões visuais mais “ensurdecedoras” que conseguem ser, a juventude e os hormônios tentando arrombar a porta da sua sexualidade e esbarrando na angústia desesperada para ser aceita como mulher completa; as humilhações às quais se sujeita e o encontro da compaixão no ombro de um policial japonês, escolha esta interessante para polarizar as posturas policiais de um local e de outro, mas ambos orientais, mostrando que toda generalização é idiota. Esta sub-trama do filme é a que, numa tacada só, tem a menor e a maior ligação com o evento central da trama. É também o núcleo que me passou os sentimentos mais essencialmente humanos, em contraposição às questões mecanizadas que orientavam os outros 3 cenários. Em outra polarização, agora ocidental, Iñárritu coloca duas crianças americanas by the book no meio de um casamento mexicano. Por serem crianças, suas “fronteiras” ainda não estão construídas. Aquele ambiente seria visto como uma taverna de bárbaros se já estivessem institucionalizadas, mas transforma-se rapidamente num playground sem diferenças à medida que os preconceitos culturais são demolidos.



Iñárritu é muito competente. Dirigiu atores em cinco línguas diferentes e com todos desempenhando bem seu papel (deve ter algum significado isto, mesmo que japonês, para mim, seja um mero agrupamento de fonemas desconexos). E humilde. Não sei se foi apenas devido ao fato de ser uma premiére e pela presença do diretor no cinema, mas as palmas efusivas que seguiram os créditos mostraram que um pouco mais de compaixão contribuiria muito para um mundo mais agradável de se viver.

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Observações adicionais: Nunca fui numa premiére antes. Não uma destas. Sabia que o diretor do filme estaria presente, mas não imaginava que teria toda aquela pompa. Tapete vermelho, cinema lotado, gente sentada nas escadas nos dois andares do Odeon (aliás, lindíssimo... há tempos não colocava os pés lá). Dá um clima interessante ao evento, diferente de quando vamos ao cinema normalmente. Vem um sentimento de que tem alguém ali apresentando o trabalho dele para você, diretamente, submetendo-se à sua avaliação. Humildade. Muito interessante. Em sua apresentação, o diretor falou no espanhol mais português que ele conseguiu, de modo que todos entenderam tudo, além de ter passado pelos lugares comuns que todos passam quando aqui vêm: “A cidade mais bela do mundo”, “torço pelo Brasil na copa (depois do México sair na primeira fase)”, “tenho grande amigos brasileños” etc, até falar do que se tratava realmente o que estávamos por assistir. O que é bom, pois o cara está ali dizendo para você, momentos antes do filme, o que passou pela cabeça dele quando resolveu realizar aquilo. Simpatia pura.

Ah... teve os peitos da Danielle Winnits tb, mesmo cobertos, mas estes eu já tinha visto numa sessão especial de Homem Aranha no UCI.

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