segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

PÁGINAS DA VIDA


Como transformar uma causa nobre em filme de Hollywood? Perguntem a Edward Zwick. Ele sabe. E não estou depreciando esta “sabedoria” ao afirmar isto. De certa forma, o cara pode até ser conscientemente sábio. Afinal, não tenho dúvidas que Diamante de Sangue (Blood Diamond, 2006, EUA) vai ter muito mais audiência do que um Hotel Ruanda da vida jamais sonhou ter. Resta saber se a massa vai pegar o impacto das questões do pano de fundo ou só vai lembrar que Jennifer Connelly é gostosa até mal vestida. Estaria sendo tendencioso ao tomar só este filme como parâmetro, mas uma olhadela no IMDB deixa ver que, além deste, Ed dirigiu O Último Samurai, Coragem Sob Fogo e Nova York Sitiada, entre outros. Sou sincero ao dizer que realmente não lembro bem dos dois últimos, a não ser por NYS ter sido rotulado como filme-Mãe-Dinah ao prever o 9/11. Já n’O Último Samurai, fez a festa com liberdades criativo-poéticas na sua visão da sociedade japonesa do século passado, com direito a Tom Cruise pegando viúva de samurai e o escambau. Se isto não é Hollywood’s Delivery, então eu não sei o que é.

Mas péra lá... o filme é ruim? Claro que não. O Último Samurai também não era, mas meu lado meio purista (nestes casos) deu lá suas reclamadas ao entender que a oportunidade panfletária é boa demais para o maniqueísmo e a fórmula padrão blockbuster. A impressão que dá é a de que um roteirista refugiado de Serra Leoa ofereceu seu script num McDonald’s de Los Angeles e o atendente gritou: “Zwick, pede ao Charles (roteirista do filme) para fazer um McScript nº4 neste aqui.” Tsc...deixa eu parar de reclamar, já que me diverti pacas assistindo.


Diamante de Sangue acontece no fim da década de 90, quando os conflitos na África moldaram esta idéia que a gente tem de “África” como a definição completa de um local, ao invés de um conjunto de países independentes. Não bastando as diferenças tribais, tem ainda a exploração que o “mundo civilizado” faz dos recursos locais. No passado já foi a borracha, petróleo etc. No momento apresentado, eram os diamantes. A Guerra Civil come solta e os dois lados, governo e rebeldes, são bancados pelos comerciantes das jóias. No meio deste ambiente conturbado temos Solomon Vandy (Djimon Hounsou) sendo afastado de sua família e escravizado nas minas de diamantes, quando os rebeldes tomam conta do lugar. Na mina, ele encontra um diamante do tamanho de uma amêndoa, 100 kilates, mas um conflito se inicia e ele o esconde. Entra em cena Danny Archer (Leonardo DiCaprio), um mercenário do Zimbábue¹ descrente da utilidade de conceitos morais que ouve falar do diamante e passa a caçá-lo para conseguir sua paz fora daquele continente. No meio do conflito, surge a jornalista Maddy Bowen (Jennifer Connelly), candidata a catalisadora da provável redenção moral de um e do reencontro com a família de outro.

A despeito da narração inicial, que destaca a ausência de mocinhos em guerras civis como esta, o resto do filme coloca a pecha de vilão nas costas dos infanto-rebeldes-que-ouvem-hip-hop, enquanto o governo posa de mantenedor da ordem. O terceiro elemento é o interesse estrangeiro e a carga moral que move a trama, ou seja, a dondoca que compra a jóia sem se preocupar com a origem da mesma e o executivo que só visa o lucro e banca o conflito. Há de convir que um plot destes é álcool o suficiente criar um roteiro de pegar fogo e dar tapa na cara de espectador, mas a coisa é diluída em litros e litros de ação rambesca e transforma alquilo que tinha potencial para ser uma bagaceira de arrancar tripa em uma Smirnoff Ice. Curioso como, em dado momento, temos uma espécie de metalinguagem, quando Maddy diz que não sente muito futuro no que faz, já que as notícias que consegue ali, longe de ter o impacto que deveriam, vão passar no jornal da noite entre a parte de esportes e o escândalo da última celebridade. Realmente a sociedade não leva o assunto a sério, assim como o filme, mas Joaquin Phoenix conseguiu melhor impacto com frase parecida em Hotel Ruanda.


Às vezes o roteiro se lembra que o background em tela é pesado e volta a tratar o assunto, mas logo depois esquece e volta à ação que diverte e desperdiça. Nesta salada, destaco a seqüência que mostra a guerra civil comendo solta na cidade, quando a câmera nos leva em vielas apertadas e dá a impressão de desespero mesmo, como se estivéssemos vendo tudo numa seqüência de flashes.

Destaco também as atuações. Djimon, como sempre, está ótimo. Seu papel tem peso enorme e ele o carrega com facilidade. Não sou pai, não consigo sintetizar o que alguém que vivesse aquilo poderia sentir naquele caso, mas deve ser realmente um sentimento pungente. Já Jennifer, não acho que seu papel teve lá muita exigência. Assim, posso dizer que ela foi competente. Não é culpa dela se o roteiro a colocou numa situação que não tinha como passar sentimento verdadeiro, assim como não é culpa de DiCaprio ter que parecer canastrão em algumas seqüências.


Recentemente, em um grupo de discussão, foi debatido sobre quem seria melhor, Pitt ou DiCaprio. Lembro ter dito que reconhecia a qualidade do trabalho deste último, mas o problema é que a cara de moleque dele tirava toda a credibilidade da atuação. O rosto de porcelana caia muito bem em Prenda-me se for capaz e Titanic, sem entrar no mérito da qualidade dos filmes, mas não tinha como sentir que um "moleque" tinha o poder e a autoridade de um Howard Hughes. Não tinha como sentir que um "moleque" tinha a obstinação e a garra de Amsterdam Vallon. Não tinha. Agora tem. Finalmente o "moleque" conseguiu cara de homem. Umas rugas aqui e ali deram seriedade e aderência às palavras do ator. O sotaque e maneirismos da África do Sul são... bem... nunca estive na África do Sul e nunca tive como conhecer seus costumes e comportamento, mas não tenho como negar que Leonardo construiu um personagem tridimensional. Ele tem passado, ele tem presente, ele tem vícios, ele tem costumes e tudo isto parece natural. Parece dele. E convence. Conseguiu até fazer uma troca de socos com Djimon parecer verossímil, coisa que, se acontecesse um ano atrás, o negão seria julgado por infanticídio antes mesmo de a porrada estancar. No entanto, mesmo com atuação impecável, o McScript nº4, seus clichês e soluções prontas dão um jeito de fazê-lo parecer um Stallone Cobra aqui e ali. Merece a indicação ao Globo de Ouro.

Seu eu lesse novamente meus textos, teria certeza que não ficaria muito motivado a ver Diamante de Sangue, mas não é o caso. Além de divertir, ainda serviu para informar à minha namorada que, infelizmente, não poderei comprar nunca um diamante para ela. Tenho agora que encontrar desculpas parecidas para outros objetos de consumo...


¹ - O Zimbábue foi colonizado pela Holanda, daí a caracterização da personagem.

5 comentários:

Anônimo disse...

eu achei o filme muito bom. Não vejo filme para pensar.

Ricardo kanashiro disse...

Pretendo ver a DdS pois faz tempo que não vejo nada, e ainda perdi "O Labirinto de Fauno" (coisas de cinemas do "interior")...
Parabéns pelo post, muito bem escrito!

Sandro Cavallote disse...

Fivo, ao contrário do que vc pode achar, eu não tava afim de ver o filme, mas depois de ler o post, fiquei animado.

Tem um filme do Zwick que é, pra mim, fundamental: "Tempo de Glória". Se não assistiu, assista. É a essência do "Nº 4" que vc citou no texto.

E DiCaprio é melhor ator que o Pitt, sim. Vide "Gilbert Grape", "Basketball Diaries" e até "Romeu e Julieta". O cara manda bem. Esqueça Titanic. Pitt manda bem no quesito "cara de doido", mas ainda não arrumaram um filme em que ele tivesse realmente que atuar. Pelo menos ainda não vi. Vc comentou sobre Babel, mas eu não li nada do que escreveu, porque quero muito ver o filme.

doggma disse...

Também fiquei mais instigado depois de ler o texto. Não é sempre que tenho espírito pra encarar um Traffic ou um Syriana, em grande parte pelo tom pesadão da narrativa.

DiCaprio é um ótimo ator sim (além destes que o Sandro citou, veja Eclipse de uma Paixão).

E Pokem... ops, Djimon Hounsou é melhor ainda.

Fivo disse...

Também acho Caprio ótimo, mas ainda acho que, se não está no mesmo nível, Pitt está um pentelhésimo acima. Curto muito as atuações dele em 12 Macacos, Seven e Clube Da Luta, para citar os principais.