quarta-feira, 1 de abril de 2009

Operação Resgate
Goose depois de horas... e antes de Cloverfield


Em meados dos anos oitenta, Anthony Edwards sentia o gostinho frisante do estrelato. Personificando a entidade nerd suprema (foi o Gilbert, de A Vingança dos Nerds, 1984) e disputando com Tom Hanks a supremacia das comédias de garotão criado a sucrilhos (Gotcha!, 1985), ele viu as portas do 1º escalão se abrirem quando interpretou o sidekick boa-praça de Top Gun, em 1986. Goose era o cara - e ainda pegava a jovem Meg Ryan (qualquer subtexto gay presente no longa deveu-se exclusivamente ao chororô suspeitíssimo do Maverick!). Nessa trajetória ascendente só faltava mais uma prova para o carisma de Edwards. Algo que o desafiasse dramaticamente e atestasse sua capacidade de protagonização extrema. De segurar um filme praticamente sozinho.

Miracle Mile (EUA, 1988) é um daqueles casos em que uma produção já nasce pertencendo a um ator. E até vice-versa, eu diria neste caso. É um pequeno grande filme que poderia ter alçado a carreira de Edwards a novos patamares, não fosse sua quase total obscuridade. Mesmo nos Estados Unidos, Miracle Mile é o que se pode chamar de pérola do anonimato - termo clichê, mas absolutamente fiel. Provavelmente agora, após o relançamento em dvd, suas inovações tenham finalmente a apreciação que merecem. E isto se estende até as "inovações" de produções recentes, em particular Cloverfield.

Escrito e dirigido por Steve De Jarnatt, Miracle Mile tem um início que sugere uma comédia romântica com um toque one-crazy-night, na cola de Depois de Horas, de Scorcese. Mas aos poucos o roteiro vai montando um retrato de sua real natureza: uma espécie de thriller incidental de Guerra Fria com narrativa em 1ª pessoa e, após os quinze minutos iniciais, transcorrendo em tempo real.


O comecinho do filme não dá qualquer pista do que está por vir. Edwards é Harry Washello, um músico trintão e solitário em busca de raízes e de uma alma gêmea - artigos raros na Los Angeles superficial dos anos oitenta. Mas ele acaba conseguindo as duas coisas, casualmente, quando conhece a garçonete Julie (a brat pack albininha Mare Winningham). Ambos estão no mesmo momento da vida, na mesma sintonia, curtem as mesmas coisas e estão afim. No dia seguinte, Harry conhece os simpáticos avós de Julie, a acompanha até a lanchonete onde trabalha e marca de pegá-la, em todos os sentidos, ao final do expediente, à 00:15. Enfim, um beijo acontece. Empatia total.

Mas do mesmo jeito que o acaso apresenta Harry à Julie, também começa a conspirar contra o rapaz utilizando todos os rigores da Lei de Murphy. Harry volta ao seu hotel, pensa na grande noite, programa o despertador e vai curtir uma rápida e revigorante soneca. Num lance incrível de azar, que só pode ser explicado como uma traquinagem quântica (envolve uma pomba e um cigarro descartado por Harry), ocorre um blecaute no prédio inteiro. Desta forma, o despertador não cumpre seu papel, Julie fica plantada por 1 hora na frente da lanchonete e Harry bate o recorde de atrasos, acordando às 3:45 da manhã.

No desespero, ele pega a caranga e sai rasgando até a lanchonete, na vã esperança de ainda encontrá-la por lá. O estabelecimento fica situado bem na Miracle Mile, área de forte concentração comercial e cultural de Los Angeles. A partir daí acompanhamos Harry minuto a minuto.


Chegando lá, alguns indícios soam como pequenas travessuras do destino: a "chuva de ratos", um sem-teto bêbado resmungando sobre caos e destruição, um telefone público 'ringando' insistente... mas tudo bem, afinal é Los Angeles, a cidade que nunca dorme. No interior da lanchonete isto é perfeitamente comprovado, com uma clientela até generosa para as quatro da madruga - e sobretudo, bastante diversificada. Estão lá dois motoristas de caminhão de limpeza, uma bitolada com roupa de aeromoça, uma senhora babando de sono, um travesti jogando conversa fora com o próprio Dr. Silberman (Earl Boen, num personagem não-batizado que bem poderia ser o bom doutor aqui... o impagável ar monótono é o mesmo) e a corretora Landa (a bela Denise Crosby, de Cemitério Maldito e Mortuária), além dos funcionários e o dono do lugar, Fred (o excelente Robert DoQui).

Através de uma colega de Julie, Harry tem a noção do furo que deu e vai até a cabine telefônica ligar pra ela, mas só consegue deixar uma mea culpa na secretária eletrônica. Quando desliga, o telefone volta a tocar sem parar e Harry, por que não, resolve atender. Do outro lado da linha, um homem de nome Chip, bastante transtornado, dá a entender que trabalha num silo de mísseis em Dakota do Norte. Sem dar tempo para Harry responder e acreditando falar com seu pai ao telefone, Chip afirma que eles acabaram de lançar uma ofensiva nuclear que atingirá seu alvo em cinqüenta minutos.

E o pior: segundo Chip, um contra-ataque em larga escala já está cruzando o globo naquele exato momento e levará cerca de setenta minutos para atingir os Estados Unidos. Subitamente, Chip é "retirado" da linha e uma voz seca diz pra Harry esquecer tudo e voltar a dormir.

O trote de 1º de abril mais sádico de todos os tempos?


A principal questão do roteiro é: como um telefonema de credibilidade duvidosa poderia desencadear a série de acontecimentos posteriores? A resposta vem logo em seguida, dentro da lanchonete, no que se poderia comparar a uma panela de pressão esquentando lentamente até explodir. Harry perdido em turbilhão de incertezas e tentando convencer os demais sobre a gravidade da situação, num crescendo sufocante cujo clímax, embalado pela trilha dramática do grupo Tangerine Dream, é de expelir o coração até a altura da garganta.

Sem exagero: pra mim, é um dos momentos mais antológicos do cinema em todos os tempos. A cena é perfeitamente montada, dirigida, interpretada e, acima de tudo, convincente. Transcende até o declínio do anticomunismo na época (fim dos anos 80), mostrando que, na prática, nenhuma paranóia é velha demais.

Após algumas ligações para seus contatos no governo, Landa descobre que quase todos deixaram o país. É o suficiente para incendiar aquele microcosmo, em especial o personagem Fred, que imediatamente prepara sua van pra cair na estrada. Sob a orientação de Landa, eles rumam direto ao aeroporto mais próximo, deixando alguns incrédulos pra trás. Harry embarca na fuga, mas não vai muito longe, pois quer voltar pra pegar Julie e seus avós. E o faz sozinho, pois ninguém ali quer perder um décimo de segundo. Antes de Harry pular da van (em movimento), Landa avisa que reservou um helicóptero nas proximidades para garantir uma última retirada para o aeroporto em menos de quarenta minutos.

Assim, nosso herói retorna ao coração da Miracle Mile para salvar a garota dos seus sonhos. No processo, topa com figuras urbanóides de todo o tipo, a começar pelo ladrão Wilson (um Mykelti Williamson pré-Forrest Gump, creditado aqui como Mykel T.).

O que, a princípio, parece uma tarefa simples, se torna uma montanha-russa de idas e vindas. O clima é de pesadelo recorrente. Toda vez que Harry tem de voltar pra encontrar algum personagem crucial para tirá-lo daquela situação, é como se a deadline apertasse mais forte o pescoço do espectador.

Num clima de tensão absurda, o cenário vai se tornando mais caótico e violento a cada minuto.


Steve De Jarnatt já mereceria todos os créditos só pela brilhante sequência da lanchonete (sendo mais preciso, da cena arrepiante do telefonema até Harry saltar da van), mas são nas tomadas externas ao final, que o cineasta se revela um gênio blockbuster. Senão vejamos... A cidade amanhece em meio a um rush na avenida mais congestionada do inferno, com milhares de veículos, turbas enlouquecidas, tiroteios e explosões pra todo lado. Isso tudo construído pra montar um panorama totalmente desordenado. Conduzir essa bagunça multilateral de maneira verossímil numa era pré-CG não é pra qualquer um. Criar bons ganchos de ação no meio disso tudo, muito menos. Com certeza, os diretores da segunda unidade, Leo Zisman e David C. Anderson, tiveram dias complicados.

Outro "detalhe". Estas cenas começam no fim da noite, se desenrolam durante o nascer do sol e seguem adiante. Ao ar livre, com o céu ao fundo e a luminosidade aumentando gradualmente até o dia ficar totalmente claro. Sem querer dar uma de expert em processo cinematográfico, mas isso é extremamente difícil, lento e trabalhoso. Muitos diretores consagrados evitam esse tipo de cena justamente por depender de inúmeros fatores fora de qualquer controle. Nas produções recentes, o único exemplo corajoso que me lembro é o de Jonathan Mostow, que filmou nestes mesmos moldes uma sequência importante de Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas (e, acredite se quiser, numa escala bem menor do que a de Miracle Mile). Aliás, foi pelo próprio Mostow, nos comentários do dvd, que eu soube do tamanho desse abacaxi radioativo. Não esquecendo que Jarnatt ainda estava regendo um apocalipse logístico nessas cenas.

O filme ainda traz algumas citações espertas no subtexto. Uma delas é o livreto que Landa tira de sua maleta. É uma referência ao livro "O Arco-Íris da Gravidade" (Gravity's Rainbow, 1973), épico pós-modernista/histórico/digressivo/conspiratório/fatalista de Thomas Pynchon. O livreto em questão é um cliffsnotes, espécie de guia de estudos para obras consideradas muito complexas - o que se aplica bem no caso de um livro cujo plot soma mais de 400 personagens e se utiliza de uma vasta gama de estilos narrativos interseccionados, com conhecimentos avançados em diferentes disciplinas. A trama, ambientada no final da Segunda Guerra, é centrada na produção alemã dos mísseis V-2 e a busca por um misterioso dispositivo chamado "Schwarzgerät", que seria incorporado a um foguete específico com o número serial "00000".

Controverso, o livro bagunçou até o Pulitzer de 1974, quando foi desautorizado da indicação. Recentemente, ganhou uma edição especial com arte de capa assinada por ninguém menos que Frank Miller - dizem, a pedido do próprio Pynchon.

Outra referência interessante também é relacionada à personagem Landa. Assim que ouve os fatos narrados por Harry, ela considera a possibilidade do governo já ter uma contingência para a situação. Nesse momento, revela que um ex-namorado trabalha na RAND Corporation (Research ANd Development), organização criada há sessenta anos com o objetivo de projetar análises e cenários para as forças armadas norte-americanas. Com o tempo, se diversificou e passou a trabalhar também com fundações privadas, internacionais e até com outros governos. Em suas fileiras, já estiveram mais de trinta vencedores do Nobel, entre outros notáveis. Donald Rumsfeld e Condoleezza Rice são afiliados.

Atualmente a RAND opera low profile em assuntos como terrorismo, economia e serviços de saúde. Mas durante sua longa trajetória foi acusada de incentivo ao militarismo e associada a um sem-número de teorias da conspiração. Segundo o livro Soldiers of Reason, do jornalista Alex Abella, a RAND, habitué nos corredores do poder, persuadiu o alto escalão do governo de que era possível vencer uma guerra nuclear.

No filme, por coincidência (?), a fixação por eficiência impressa nas atitudes de Landa é puro objetivismo de Ayn Rand ("a philosophy for living on earth"). As cenas em que a personagem monta o cenário mais provável, organiza mentalmente sua agenda e distribui tarefas revela uma Randista nata.

Outras citações incluem nomes como Carl Sagan, Linus Pauling, John A. "Shorty" Powers e Mensa International. Coisa fina.


Um inesperado efeito colateral: Miracle Mile apaga bastante o brilho de Cloverfield. É chato admitir. Acho o filme do diretor Matt Reeves um dos mais divertidos do ano passado, mas a verdade é que, em determinado momento de Miracle Mile, o plágio é evidente. Não se trata nem de um elemento ou outro, mas uma estrutura narrativa inteira do filme sendo copy-pasteada para o cartão de memória da câmera de Cloverfield. Isso sem falar em algumas cenas-chave pontuais e conceitos básicos da premissa.

Abaixo, as similaridades menos sutis - algumas listadas no fórum tosco do IMDb. Marque pra ler (atenção, SPOILERS!)


o cara que volta ao inferno pra salvar a garota, contrariando todo mundo;

a cena na loja de eletrônicos, com as tevês ligadas noticiando o caos;
 
o helicóptero levantando vôo rumo à salvação, sendo atingido e caindo rente aos prédios (sequência idêntica);

referência ao Superman - aqui, fazendo mais sentido;

a história retornando karmicamente ao seu ponto de partida, num parque;

o final, quando a garota quer sair e ele diz "não resta mais nada lá fora";

o casal trocando as últimas palavras num ambiente claustrofóbico, diante da morte iminente;

o impacto-conclusão, vitimando a dupla de protagonistas.


Não é difícil entender por que Miracle Mile foi um fracasso. Mesmo o cartaz original não traduz corretamente a proposta do filme - e olha que é um fabuloso pôster de filme-catástrofe:


É certo que muita gente saiu das salas de cinema perguntando se alguém anotou a placa do caminhão. Os dois últimos atos de Miracle Mile são radicalmente diferentes do primeiro. Charlie Brooker, roteirista e crítico do Guardian, escreveu que o filme tem a maior mudança de tom que ele já viu. Jay Carr, do Boston Globe, o considera bagunçado, mas com uma energia e urgência difíceis de esquecer. A cultuada revista britânica Neon o elegeu o filme mais depressivo de todos os tempos (IMHO, não, mas quase chega lá). O consenso da crítica na época era de que Miracle Mile era um tour-de-force caótico e perturbador.

Mas quem chegou mais perto, como sempre, foi o crítico Roger Ebert, com sua visão contundentemente sóbria e enxuta. Seu review no programa Siskel & Ebert at the Movies, logo a seguir, é genial (razão pela qual optei por postá-lo ao invés do trailer). Mas funciona apenas pra quem já viu o filme - caso contrário, o mais interessante é checar sua crítica escrita.




O paralelo que Ebert faz entre Miracle Mile e Depois de Horas é perfeito. Interessantes também são os comentários divergentes entre ele e seu colega Gene Siskel sobre a estética 80's na direção de arte. Deliciosamente datada e, pra mim, conferindo até um charme a mais ao filme, ela é um contraste flagrante com porradas na boca do estômago, como Testament e O Dia Seguinte, ambos de 1983.

Após Miracle Mile, a carreira de Anthony Edwards no cinema não deslanchou, mas também não foi uma nulidade total. Coadjuvou em vários filmes, dirigiu um infanto-juvenil e protagonizou outros menos cotados (entre eles, Cemitério Maldito II). Foi melhor sucedido em produções mais recentes, como Os Esquecidos, com Julianne Moore, e escondido ali no meio de Zodíaco, de David Fincher. Mas, sem dúvida, sua grande projeção foi na telinha, no papel do Dr. Mark Greene, do popular seriado E.R. (no Brasil, Plantão Médico), onde permaneceu de 1994 a 2008.

Mare Winningham percorreu um caminho parecido, ainda mais focado na televisão. Participou de várias séries, de E.R. e A Sete Palmos a Boston Legal e Grey's Anatomy.

Miracle Mile foi o segundo longa de Steve De Jarnatt. Considerando que sua estréia foi no cult trash Cherry 2000, apenas um ano antes, é algo a se admirar. Antes de ser produzido, o cineasta rodou com o script em Hollywood durante dez anos, quando conseguiu carta branca da Warner. A gigante, porém, queria uma produção mais comercial com algum diretor famoso e não um iniciante como Jarnatt. Diante do impasse, o filme seguiu engavetado por mais três anos, quando o diretor o arrematou por 25 mil dólares. Ele o reescreveu e o estúdio ofereceu 400 mil para comprá-lo de volta, no que foi prontamente recusado. Finalmente, Jarnatt recebeu 3 milhões de dólares da pequena Hemdale Films para iniciar a produção.

Posteriormente, Jarnatt também seguiu carreira na TV, dirigindo, roteirizando e produzindo diversos seriados. Nunca mais retornou ao cinema, mas deixou a sua marca. Bom pra ele que Miracle Mile conste no portfolio. Afinal, não é todo mundo que tem cacife pra dar uma de Terrence Malick ou Edson Arantes do Nascimento.


ICBLinks:
Depois de Horas na Miracle Mile: A lógica dos pesadelos no cinema
Separados no nascimento: "Cloverfield" & "Miracle Mile"
Soldiers of Reason (review do Washington Post)