sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

V de vigilância


"O povo não deve temer o seu governo, o governo deve temer o seu povo" - em 2011 essa máxima foi executada na prática em proporções quase surreais. Ditaduras de décadas desmoronando como castelos de areia, mobilizações populares organizadas via Facebook, informações sigilosas atiradas no ventilador com um simples tweet... Mas esta semana o mundo teve um exemplo ainda melhor de como andam as regras do jogo. Isso graças a um anão sociopata com delírios de grandeza e tesão por ogivas nucleares. É quase inconcebível nos dias atuais que a morte de um dos maiores tiranos do planeta tenha demorado dois dias para ser divulgada - e por canais oficiais, como manda o figurino do miniditador moderno. É uma vitória do fascismo nesses tempos de democracia Jobs-Zuckerberguiana. Estaria comemorando efusivamente, fosse eu viúva do Mussolini ou do Costa e Silva. Heil!

Como quase tudo na vida, a coisa não funciona em preto e branco. O ser humano tem uma verve fascista natural que aflora ao primeiro sinal de problema. É um traço perigoso que, felizmente, é controlável. E um autêntico guilty pleasure quando projetamos cenários "E se...?". Na cultura pop tem aos montes: Dirty Harry, D-Fens, Tropa de Elite, Star Wars, Juiz Dredd, Justiceiro e, um dos meus preferidos, 24 Horas. No universo de Jack Bauer não existe fair play. Limite é só mais um obstáculo a ser superado, todos são inimigos em potencial, os fins justificam os meios e nice guys finish last. Me vendi fácil. No vício por adrenalina eu queria mesmo era ver o circo pegando fogo.

Em minha defesa, o contexto de 24 não deixava espaço para hesitação, trâmites burocráticos e amenidades microscópicas, como ética. 24 era a série pop dos republicanos e, por Deus, os caras sabiam se divertir. Até hoje reverbera em minha mente a cena em que enterraram uma faca no joelho de um terrorista durante um interrogatório.

Se 24 era uma imersão num extremo da América, então Homeland é o meio-termo. A série da Showtime lida com as mesmas situações em tons cinzentos e deadlines iminentes, mas faz questão de mostrar que limite não é só uma linha no chão. É um muro de dez metros com proteção eletrificada, seguranças G.I. Joe e cães furiosos à espera do primeiro infrator. O que não impede eventuais invasões em nome do bem comum, de forma bem menos frequente e sempre com graves consequências. De quebra, a série não faz vista grossa: enquanto Guantánamo e Abu Ghraib seriam só mais um dia no escritório em 24 Horas, aqui são vistos como constrangedores fracassos dos Estados Unidos no combate ao terror.


A premissa não é menos incendiária. Na história, a agente da CIA Carrie Mathison descobre que um militar norte-americano não-identificado teria se convertido à al-Qaeda. Curiosamente, a info vem à tona no mesmo período em que o sargento da Marinha Nicholas Brody é resgatado no Iraque após 8 anos de cativeiro. Recebido com glórias na volta pra casa, Brody vira uma espécie de ícone midiático, uma reafirmação da fé no sonho americano - que logo é capitalizada politicamente, afinal, o Salão Oval é logo ali. Carrie por sua vez, mergulha numa cruzada pessoal para saber se Brody foi corrompido. Na maior parte tempo, ela opera abaixo do radar e ninguém compartilha de suas suspeitas. Nem mesmo eventuais colaboradores, como seu mentor, Saul Berenson.

Homeland é baseada na série israelense Hatufim (aka Prisoners of War) e desenvolvida por Howard Gordon e Alex Gansa. A dinâmica é de um tenso thriller psicológico. Nada de ação vertiginosa e perseguições mirabolantes. Ganha quem tem mais bom senso, sutileza e capacidade para saber quando recuar. E apesar de não ter o body count insano de 24, a narrativa é igualmente impiedosa. Não por acaso, Gansa foi um dos roteiristas do 7º dia mais punk da vida de Jack Bauer.

A série tem um cast fantástico. Particularmente, acompanho a carreira de Claire Danes desde a bacanuda Minha Vida de Cão (série de drama teen: um dia todo mundo assistiu uma) e, desde então, ela nunca parou de evoluir. Carrie é um formidável desafio pra qualquer atriz que tem amor à profissão. Corajosa, intensa e tão cerebral quanto impulsiva - isso pra não citar seu pequeno segredo que deixa o cenário ainda mais complexo. Danes administra todas essas nuances de forma magistral.

Damian Lewis por sua vez está no topo da forma. E teve um belo laboratório para compor o sargento Brody. Na extinta série Life ele fazia um policial que passou 12 anos em cana por um crime que não cometeu e sentia na pele as agruras da ressocialização. Sua atuação não podia ser mais impressionante. Especialmente nas cenas em que Brody é colocado em situações-limite, o que rende sequências antológicas.


Não surpreende que tanto Danes quanto Lewis tenham sido indicados ao Globo de Ouro 2012. Merecidíssimo. No entanto, o melhor em cena na minha opinião é o veterano Mandy Patinkin, como Saul. Político e racional, ele é profundo conhecedor do sistema e o único que sabe como controlar e filtrar os extremos de Carrie, sua mais talentosa protégé. O tom paternal adotado pelo ator funciona até mesmo durante as cenas de interrogatório. Um bom exemplo é o sétimo episódio, onde ele escolta uma suspeita do México até Langley e faz uma pequena trip pessoal enquanto ganha a confiança da prisioneira.

É na relação dele com Carrie que fica evidente o grande trunfo da série: a química entre os atores.

A afinidade cênica entre Danes e Patinkin é algo que saltou aos olhos logo na première. Em contrapartida, a relação entre Lewis e Morgan Saylor, que interpreta a filha adolescente de Brody, foi uma grata surpresa construída lentamente ao longo dos episódios - e que pontua nada menos que o clímax do season finale numa sequência arrasadora de mandar legiões de cardíacos direto pro IML.

O elenco secundário também é afiadíssimo. É bom ver que a carioca Morena Baccarin não ficou chorando as pitangas após o cancelamento da fraca V. Aqui ela faz a esposa de Brody, a ex-viúva Jessica. Está mais linda do que nunca, by the way.

David Harewood está ótimo como David Estes, chefe de Carrie e um tremendo carreirista pé-no-saco, bem como Jamey Sheridan como o Vice-Presidente dos EUA (um retrato assustador do pensamento republicano) e o excelente ator iraniano Navid Negahban, como Abu Nazir, um dos líderes da al-Qaeda e o captor de Brody.


Não sei se será a série que substituirá 24 Horas, mas até aqui tem sido um paliativo de primeira linha. Homeland foi renovada para mais uma temporada de doze episódios. E a julgar pelo cliffhanger deixado no ar, será imperdível.


Cotação:

10 comentários:

Raid disse...

Gostei bastante de Homeland também, apesar de uma ou outra coisa menor que me incomodou como o relacionamento dos protagonistas.

Queria saber sua opinião sobre outra série parecida chamada Rubicon que só teve uma temporada.

JoaoFPR disse...

Como sempre, muito bem escrito.
Comprei o box de 24 Horas (terminei a 2º temporada ontem) e revendo tudo, fica gritante que nos apegamos muito mais a nosso anti-heroi por ele ser preto e branco em um mundo cinza.
Ainda não vi Homeland, mas depois desta resenha, será um preojeto que executarei.

doggma disse...

Raid, em princípio até me incomodei também, mas pensando bem achei que foi coerente com o perfil dela (obsessão + bipolaridade + solidão).

Rubicon ainda não vi, mas me foi recomendada veementemente aqui no blog mesmo. Você curtiu?

Fala, João! Essa 2ª temporada é das melhores (senão a melhor!). Vou acompanhar a 1ª, de novo, em janeiro, na Band. Pode ir no Homeland tranquilo. Depois você conta o achou.

Luwig disse...

Parceiro, o cliffhanger para o Ano 2 de Homeland foi coisa de sádico: "Saul, não me deixe esquecer". Brody, Brody, você é uma maldita raposa astuta (e sortuda).

Acho que fui eu mesmo que puxei a sardinha pra Rubicon. E te digo mais, se você gostou de Homeland, vai amar Rubicon e odiar porque a série não foi adiante.

Tem uma tentativa de assassinato ao protagonista em seu apartamento, lá pelas tantas da temporada, que é seguramente uma das sequências mais tensas que vi em 2010.

Eu diria que Rubicon foi um meio termo entre O Espião que Sabia Demais e Homeland. E, claro, o elenco como um todo foi qualquer coisa de genial, especialmente os personagens vividos por James Badge Dale (Will Travers), Arliss Howard (Kale Ingram) e Michael Cristofer (Truxton Spangler).

Bateu saudades. Acho que se tivesse rolado algumas indicações no Globo de Ouro ou Emmy tinha rolado um Ano 2. Mas, vá lá, parece que só quem assistiu isso aí foi eu.

Raid disse...

Também assisti Rubicon e acho que foi uma das piores decisões em cancelamentos de séries que já vi, com um final como aquele como podem não mostrar as repercussões?! Não sei qual seriado entrou no lugar de Rubicon (talvez seja o Hell on Wheels, que gosto também) mas foi uma decisão infeliz da AMC. Acho Rubicon superior até a Homeland.

Então doggma, também fui me acostumando a idéia, afinal somente por causa do relacionamento deles que ela começa a encaixar algumas pistas. Teve outras duas coisas que ainda não sei se gostei no final, uma foi a falha no plano terrorista, mas até aí eu entendo, afinal matar o protagonista é uma decisão bastante arriscada e a outra foi a possível cura da doença da Carrie, acaba tirando muito da personalidade que a gente conhece dela, afinal a doença era uma desculpa meio síndrome de Savant para ela entrar em modo Berserker que a gente tanto gosta

doggma disse...

Fala, Luwig! Sem brincadeira, aquele finalzinho me lembrou até de "Requiem para um Sonho". Forte demais.

Oa! Já assistiu o "Tinker Tailor Soldier Spy" (O Espião que Sabia Demarrgh que título)? Conta mais aí.

Raid, é bem por esse lado mesmo. A não ser que - dedos cruzados aí - eles consigam mostrar um outro aspecto de Carrie tão ou mais interessante do que o da 1ª temporada. De qualquer forma, algo terá que mudar, já que nosso amigo Brody está ficando cada vez mais inatingível.

Pelos comentários aí, já vi que ficarei muito puto com o one-shot do Rubicon.

Luwig disse...

Não, Não, Dogg. Eu ainda não assisti ao filme, mas acabei comprando o livro homônimo de John le Carré pela Estante Virtual (por R$ 4,90!). E cá pra nós, uma senhora leitura. Se o filme tiver só metade da atmosfera e o potencial dramático dos personagens, já vale o ingresso (e um lugar generoso entre os melhores thrillers de espionagem deste princípio de milênio).

Mas aí vai algo interessante que descobri com a leitura de "O Espião que Sabia Demarrgh": esse é o 5º livro de 8 com o intrigante personagem de Gary Oldman, o 'George Smiley'.

Contabilizando (e te confesso, até o final de meus dias neste planeta, pretendo lê-los todos):

1. O Morto ao Telefone (Call for the Dead - 1961)

2. Um Crime entre Cavalheiros (A Murder of Quality - 1962)

3. O Espião que Veio do Frio (The Spy who Came in from the Cold - 1963)

4. A Guerra no Espelho (The Looking-Glass War - 1965)

5. O Espião que Sabia Demais (Tinker, Tailor, Soldier, Spy - 1974)

6. Quase um Colegial (The Honourable Schoolboy - 1977)

7. A Vingança de Smiley (Smiley's People - 1979)

8. O Peregrino Secreto (The Secret Pilgrim - 1990)

Abração.

doggma disse...

Esse preço está bem interessante... vou procurar. Valeu a dica.

Fivo disse...

Finalmente acabei a temporada. Não tiro uma letra do que tu escreveu. Preciso e cirúrgico.

F.Ivo

Luiz André disse...

É engraçado perceber como nossa mentalidade sobre o terrorismo mudou drasticamente de 12 anos para cá. Nos filmes e (vá lá, algumas séries de ação), terroristas eram vilões triviais que se apoiavam em um código moral baseado em um preceito religioso ou uma ética deturpada em comparação a do herói. Contudo, isto tem mudado e Homeland se coloca como o turning point desta perspectiva do terrorismo. É certo que o grande mote de 24 era o terrorismo, todavia nunca houve na série um estudo de personagem que realmente mostrasse as motivações para se embrenhar uma guerra santa contra os yankees - isto se desconsiderarmos certos personagens que viraram de lado, como foi visto na 2a. temporada.
Elogios não param de chover para o trio protagonista e fico surpreso em como esta série não tem medo de expor seus personagens ao limite, o que me faz lembrar - em termos de interpretação e entrega ao personagem, e não ao conteúdo - a séries como Damages e Breaking Bad (aviso: já que as últimas temporadas destas séries estão chegando, que tal preparar um texto para elas? Fica a dica). Claire Daines está magnífica como uma agente bipolar que vê seu mundo desabar à medida que começa a desvelar toda a trama sobre a cooptação de Brody. Já Damian Lewis detona na caracterização que ele imprime a um agente duplo convertido ao islamismo, sua interpretação, assim como a de Claire Daines, ganha profundidade nos detalhes. Esperamos então pela segunda temporada e pela morte de uma ideia por dentro do Salão Oval.