quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O universo e um pouco de nós


Em se tratando quadrinhos nacionais, Mauricio de Sousa® ainda é, de longe, nossa melhor história de sucesso. Boa parte dos leitores brasileiros em algum momento se rendeu à galeria de personagens do autor. Foi o meu caso: bem guri, me iniciei nos gibis direto com o Incrível Hulk e o Homem-Aranha, no meio daquele típico tiroteio narrativo. Fui fisgado de primeira, mas foram as criações do Mauricio e do mestre Ziraldo que, logo depois, amaciaram o processo, tornando-o mais amigável e didático. Pra mim, funcionaram como uma perfeita escada para compreender mundos mais cinzentos e complexos.

O paralelo com os quadrinhos da Disney era quase imediato: historinhas curtas e lúdicas convivendo com aventuras mais rebuscadas e ambiciosas. E entre todos os integrantes da "turminha", o Astronauta era certamente o mais audacioso ao protagonizar antigos dilemas humanos sob uma cortina de escapismo infanto-juvenil. O personagem estreou nas tirinhas do Diário de São Paulo, no longínquo ano de 1963. A corrida espacial estava no auge e, junto com os quadrinhos do Flash Gordon de Alex Raymond, foi uma grande influência para Maurício. Mas foi seu toque pessoal, um tanto melancólico, que deu uma alma para o herói.

Astronauta Pereira - é o nome dêle mesmo² - explorador espacial da BRASA (Brasileiros Astronautas!), desbrava mundos estranhos e eventos cósmicos nos confins do universo enquanto morre de saudades de sua terrinha natal e da sua namorada, a Ritinha. Uma premissa simples e de apelo universal que ilustrava verdadeiras metáforas à passagem para a vida adulta e às coisas tão importantes que deixamos para trás. Ele poderia muito bem ser o protagonista da música "O Portão", do Roberto Carlos.

Em Astronauta: Magnetar, o roteirista Danilo Beyruth (Necronauta, Bando de Dois) não apenas resgata esses valores abstratos e perenes, como também os amplifica, conferindo uma notável carga de dramaticidade. Daquele humor ingênuo, há pouco ou nada - no máximo, momentos de tensão mais baixa funcionando como doses homeopáticas de alívio. O que não significa que o clima sombrio monopolize o conto: apesar do suspense e da atordoante vastidão do espaço ocupar boa parte do sensorial, é difícil não se sentir seduzido por aquele espetáculo misterioso, imponente, indescritivelmente belo e, parafraseando Ellie Arroway, poético.


Na história, Astronauta cruza o espaço para investigar de perto um magnetar. O objeto cósmico, sugestão de um amigo astrônomo de Beyruth, é dos mais intrigantes e é apresentado com detalhes ao leitor, ao melhor estilo Ler e Saber - Enciclopédia Juvenil em Côres (estamos saudosistas hoje!). O que, por si só, já renderia um belo exercício de imaginação e ciência, porém o enredo ainda reserva um uso muito bem dosado de alguns velhos artifícios cinematográficos. Beyruth fuçou fundo no seu baú de referências da 7ª arte - todas impressas no imaginário popular desde que ganharam o mundo.

Estão lá as experiências extra-sensoriais de 2001 - Uma Odisseia no Espaço, o suspense petrificante de Alien, droids médicos que parecem saídos de O Império Contra-Ataca e até mesmo uma cena com Astronauta selecionando um de seus trajes como se fosse Tony Stark escolhendo uma de suas MARKs. Mas talvez a maior aproximação - provavelmente involuntária - tenha sido com Solaris, filme de 1973 de Andrei Tarkovsky adaptado do romance de Stanisław Lem.

Em meio aos sintomas demenciais causados pelo longo período de isolamento (retratado de maneira genial por Beyruth), há uma conexão profunda serpenteando matreiramente entre as obras. Solaris teoriza sobre o encontro de humanos com seres tão diferentes de nós que qualquer tipo de comunicabilidade é virtualmente impossível - um dos itens mais inquietantes do Paradoxo de Fermi, por sinal. Durante a leitura da graphic, percebi que isso poderia facilmente ser estendido não apenas ao conceito de vida que nós conhecemos, mas principalmente àqueles que mal concebemos sua existência.

Tal qual Solaris, um planeta senciente, e a influência devastadora que exerce sobre os astronautas que se aproximam dele, qual seriam os efeitos que um evento da magnitude de um magnetar causariam em uma pessoa em um nível psicológico e/ou químico?

É o abismo olhando de volta...


Criada e batalhada pelo Sidney Gusman, a série Graphic MSP teve em Astronauta: Magnetar um debut de primeira linha, aliando boas opções de formatos/preços (o calcanhar de Aquiles da série MSP 50) a um produto de excelência, como se vê na qualidade gráfica irrepreensível. Isso não apenas reflete o ótimo momento do mercado editorial brasileiro como propõe novas abordagens para a formação de futuras bases de leitores. A importância disso vai muito além de uma boa jogada comercial.

A nota destoante vai para os créditos quase en passant dedicados à talentosa colorista Cris Peter, cujos tons ousados e sui generis fogem do lugar-comum e fazem toda a diferença no quadro geral. O diálogo de suas cores com a arte-final cria momentos de tirar o fôlego, como na magnífica splash-page das páginas 68-69.

Como bônus especialíssimo, nada mais adequado do que o posfácio escrito pelo navegador, escritor e aventureiro Amyr Klink. Foi até covardia. E fecha uma viagem inesquecível para o leitor e transformadora para o personagem.

Afinal, novamente citando 2001, foi uma oportunidade única podermos testemunhar o nosso bom e velho astronauta Pereira mergulhando em paradoxos existenciais tão incríveis quanto os do astronauta Bowman.


In an interview with Rolling Stone, Waters explained that the song's lyrics were an attempt to describe "the potential that human beings have for recognizing each other's humanity and responding to it, with empathy rather than antipathy." He has also stated in many interviews that this song is the ideological predecessor to The Dark Side of the Moon, for in "Echoes" he began to focus the music of Pink Floyd on people and the issues facing humanity rather than fantastical space trips and psychedelic imagery — Via

3 comentários:

Unknown disse...

Putz....tu me emociona nesses reviews cara.

Problema é o escritor de necronauta(que eu acho péssimo, a HQ e não o caro....francamente nunca o vi) no meio.

Sandro Cavallote disse...

Sagan puro. Essa HQ foi uma das melhores coisas que li nos últimos tempos. Sério mesmo.

doggma disse...

Lance, do Necronauta só li o volume 2 e achei bacana. Mas esse do Astronauta é infinitamente melhor. Merecia mesmo uma série à parte.

Sandrão, bela lembrança. Até mencionei o Contato-filme, mas a coisa vai mais longe. Sagan pacas.