quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Eu sou a Lenda


Exists (EUA, 2014) me trouxe algumas daquelas reflexões que dificilmente temos oportunidade de externar por aí numa terça-feira. Exemplo: existe algum subgênero de terror mais esculhambado que o dos lobisomens? Existe. O do Pé-Grande. Também conhecido como Sasquatch, Yeti, Wendigo e derivados regionalmente corretos, todos enjaulados em produções trash ou terrivelmente datadas/envelhecidas. Talvez impulsionado pelo status folclórico que a criatura tem no país do cinemão pop, o tema manteve uma sobrevida modesta em filmes, ainda que exclusiva do circuito independente. Mas a cada longa temporada, uma dessas gemas Z escapa de sua reserva florestal com objetivos um pouco mais ambiciosos.

Da 1ª vez foi um estrondo: The Legend of Boggy Creek, de 1972. Custou uma mixaria e abarrotou as contas bancárias dos realizadores - provavelmente um reflexo da polêmica "filmagem Patterson", de apenas cinco anos antes. Nada mais natural então que um novo ciclo fosse inaugurado por outra sumidade do custo-benefício: Eduardo Sánchez, co-diretor de A Bruxa de Blair, como todos sabem, um dos filmes mais bem-sucedidos de todos os tempos.

Sánchez não hesitou em combinar sua expertise found footage com os elementos clássicos da filmografia Pé-Grandense. O arsenal varia de câmeras hand-held com visão noturna, GoPro's e smartphones sem a menor cerimônia. Hoje, a vida é um found footage. E funciona perfeitamente no contexto, descartando inclusive a carochinha inicial do "um filme foi encontrado e editado, etc" por motivos bem esclarecidos até a cena final.


Não que o roteirista e habitual colaborador Jamie Nash seja o Mario Puzo da criptozoologia. Na trama, cinco jovens - dois casais e um douchebag - estão na estrada em busca do Graal da diversão segundo Hollywood: uma velha cabana esquecida no meio de uma floresta remota. Isso, num ambiente povoado por sequestradores alienígenas, assassinos mascarados imortais, livros em latim escritos com sangue humano e, pior, cajuns tocando banjos, é mato.

Um incidente estranho no caminho é o primeiro sinal de que a viagem será peculiar. Mas a turma não se deixa abater, apesar da evidência empírica e peluda filmada por um dos aventureiros. Apenas um personagem fica intrigado com o fato; os demais, inertes num confortável ceticismo, preferem ignorar o registro. São bons detalhes de um roteiro requentado. Ao mesmo tempo em que nunca tivemos tantas infos à disposição, nunca tivemos tão pouco discernimento em relação a elas.

Essa impressão de torpor e passividade fica ainda mais latente conforme o filme vai trazendo novas revelações.


A bem da verdade, a grande reviravolta de Exists - sim, ela existe - é previsível. Porém... e aí credito inteiramente à habilidade de Sánchez... seu impacto consegue sobreviver quase ileso à clicherama slasher que o precede. Isso graças à narrativa concisa até a raiz, à direção eficiente de atores de várzea e, principalmente, ao climão macambúzio que impera após o terço inicial. Ao exemplo da nova safra de filmes de horror norte-americanos, como Invocação do Mal, A Entidade e Os Escolhidos, Exists também é filme-atmosfera, privilegiando mais o perigo iminente do que os sustos em si.

Há uma cena emblemática, em que o único "falso susto" do filme é atropelado pelo verdadeiro terror que se anuncia, como se isso representasse um racha com as antigas convenções. Dali pra frente é só ladeira abaixo. Mensagem mais direta que essa, só se Sánchez explicasse numa narração em off.

E já que estou enchendo a bola do hermano como se não existisse amanhã, vou continuar por aí. As ótimas locações, além de terem o mesmo bioma dos supostos avistamentos reais e provocarem um mix de déjà vu com calafrio, também são utilizadas sem moderação à luz do dia. E funcionam ainda melhor. A criatura realmente parece ter o usucapião eterno do lugar, se confundindo facilmente com o cenário e destoando furiosamente dele quando bem entende.

É neste ponto que o formato found (big)footage faz toda a diferença e samba bonito na avenida.


Ao vender o Pé à prestação em enquadramentos parciais ou fora de foco, o diretor assume um risco considerável, mas a estratégia se mostra certeira. Vemos o suficiente para nos situar ao nível dos personagens, realçando o efeito de sugestão e o desespero respingante na tela. Além de manter a curiosidade, claro.

O bichão foi "interpretado" pelo veterano Brian Steele - que traz no currículo uma galeria impressionante de criaturas - e filmado com visível paixão pelo personagem e seu mythos. Estão lá os movimentos pesados e angulares do tal Sasquatch de Roger Patterson e também a postura mais animalesca do Sasquatch de Rick Jacobs. Só o fino do hoax.

Eventualmente, nos deparamos com a criatura por inteiro, ou quase, pontuando o belíssimo clímax do longa. Carregada de inesperado subtexto, sua figura vira o jogo sobre o espectador e transforma toda a história até ali numa experiência ainda mais perturbadora.

Sem exagero: é uma cena que vale o filme.

Em tempos idos, Exists seria aquela VHS relegada ao canto mais empoeirado da locadora. Apenas para um dia ser redescoberta e, na base do boca-a-boca, ganhar uma merecida moralzinha cult. Na atual conjuntura, já fico feliz em ter um filme decente de Pé-Grande pra rever de vez em quando.

4 comentários:

Anônimo disse...

"existe algum subgênero de terror mais esculhambado que o dos lobisomens?"

Esculhambado eu não sei, mas Múmia é um troço bem 2º escalão do terror, junto com monstro subaquático. Praticamente só tem os filmes da Universal e aquela franquia de Brendan Fraser (sem contar "Bubba Ho Tep" que parece ser bem legal).

doggma disse...

Múmia pelo menos teve essa franquia blockbuster. Que de terror não tinha nada, mas...

Monstro subaquático, tipo o da Lagoa Negra? Esse tá difícil mesmo. Fora do original, só lembro dele em "Deu a Louca nos Monstros". E de uma variação-salmão dele no oBrigatório "Humanoids From the Deep", do Corman.

Anônimo disse...

Acabei de assistir o filme. Filmaço! Bem feito, simples e direto.

Mario Franciscon disse...

BA BA DOOK DOOK DOOK