terça-feira, 28 de setembro de 2021

The Liefeld Experience

Guilty pleasure #214: canais com gibis sendo folheados. Nada muito elaborado, apenas o virar de páginas daquele quadrinho surrado e esnobado nas incontáveis passadinhas pela banca. Quase dá pra sentir o cheiro do papel velho, o que também é preocupante —quem me viu, quem me vê.

Já há um bom tempo ando com o nariz enterrado nos arquivos do Cartoonist Kayfabe, dos quadrinhistas Ed Piskor (X-Men: Grand Design) e Jim Rugg (Afrodisiac). Além da "folheada proibida" (quem nunca levou um puxão de orelha do dono da banca?), eles elaboram um exame página a página da HQ da vez com o melhor papo de boteco possível.

Uma das minhas folheadas prediletas é a da COLOSSAL e BOOOMBÁSTICA X-Force #1 (jun/1991), da dupla quintessencial do zeitgeist massavéio noventista Rob Liefeld & Fabian Nicieza. É uma maravilha. Mas não pelos motivos de sempre.


Sabiamente, os dois evitam a manjada malhação do(s) Judas. Até por quê, para aqueles que têm o mínimo de critérios —e sabemos que fanboys são muito criteriosos, não é?— seria como chutar cachorro morto.

Liefeld e Nicieza não valem um copo de Paratudo, o que é ponto pacífico (espero). Mas também é visível que, no meio do chorume, co-existia ali uma profusão de ideias promissoras, novas e/ou rearranjadas, ironicamente sabotadas pela própria imaturidade e inaptidão narrativa do par, sem um único filtro de bom gosto (ou bom senso) para administrar a sobrecarga de cultura pop. O que não impediu a edição de vender seus 5 milhões de exemplares só nos Estados Unidos da América Fuck Yeah.

Piskor/Rugg destrincham o blockbuster de Liefeld/Nicieza com uma lupa quântica. E em cada quadrinho amplificado saltam aos olhos as fagulhas de genuíno entusiasmo e dedicação pelo que eles estavam fazendo e que não é outra coisa senão a expressão máxima da experiência quadrinhística. E que, por sua vez, acabou recarregando a minha arriada bateria de gibizeiro das antigas.

Sim, chegou o dia que tanto temia: fiquei inspirado após ver um gibi do Rob Liefeld.

Claro que achei graça das romantizadas e hipérboles efusivas (disparadas, em sua maioria, pelo empolgado Piskor) em cima de sequências que são, em última análise, apenas quadrinho ruim com força. O mesmo para as insistentes analogias relacionando o "estilo" Liefeldiano ao do Fletcher Hanks, criador do Stardust the Super Wizard e da Fantomah. Ah, por favor. Onde o venerável Hanks era pura virulência e idiossincrasia (por sinal, ele também era um completo vida loca que bem merecia um filme ou uma série biográfica naqueles padrõezinhos HBO-filé), Liefeld é só um manqueta descendo a ladeira durante um terremoto. Mas é legal desopilar por alguns momentos e compreender melhor por que aqueles quadrinhos mexeram tanto com os corações e mentes da piazada da época.

No fim da viagem, antes de retornar ao meu Northrop Frye (pfff), um último espasmo foi inevitável: X-Force #1 é massa, velho.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Ah, Ota...


Otacílio Costa d’Assunção Barros
(1954 - 2021)

Essa nem o infalível Relatório Ota previa. Sei, sei, faz parte e ninguém anda cantando saúde ultimamente, mas essa foi de foder —e não no sentido gostoso, à Termas 69®.

Tecnicamente, Ota era meu "amigo". Éramos miguxos de Facebook há anos, o que, rigorosamente, significa porra nenhuma, e até bem antes disso, quando ele mantinha um divertidíssimo site oficial aos trancos e barrancos. Mas sempre foi extremamente solícito com minhas perguntas e mesmo com uma autorização —negada— para publicar uma foto hoje bem conhecida de seu acervo pessoal (mas era tão bacana que publiquei mesmo assim). Foi o rei incontestável da tosqueira e da zoeira do quadrinho nacional. E antes de tudo, sabia rir dele próprio, mesmo diante do mais puro descaso.

Pô, Ota é meu herói desde que a época em que matava aula para, entre outras coisas, ler MAD. Aliás, a 1ª vez que li Love and Rockets foi na versão editada por ele na Record, com as gírias e maneirismos brazucas da época. Não me desfaço por nada.

Impossível sintetizar a carreira de um sujeito que começou lá na EBAL, passando pelas presepadas mais picaretas até as editoras de ponta (solta) e as tretas com as mais novas. E, como sabemos, treta com Ota era mato. Brigou com Deus e o mundo. Menos com o dono do bar.

Salve, meu querido.

Obrigado por tudo!

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Tragam-me a cabeça do Hulk!

Preço da gasolina explodindo, conta de energia derretendo a fiação, carne de 2ª a peso de ouro e uma única pergunta monopoliza meus pensamentos: por que diabo a Abril trocou a cabeça do Hulk na edição #30?


Publicada originalmente em The Incredible Hulk #279 (jan/1983), a capa é de autoria de Greg LaRocque. Nela, o Gigante Verde comemora com seus camaradas a aguardada anistia pelo governo americano. O semblante ameno e pacífico explicita o então recém alcançado controle do Dr. Bruce Banner sobre o monstro —os velhotes de plantão leram isso na Hulk #24. Mas, por alguma razão que só Uatu conhece, a capa nacional trazia uma montagem do Verdão com feições mais brutais e grotescas. Como na fase pré-Hulk inteligente.

Em geral, as capas da Abril sempre traziam alterações, em maior ou menor grau. Boa parte era necessária para diagramar a ilustração original com o título do gibi, o logo da editora, o preço e a chamadinha. As futucadas iam do cenário ou cor de fundo até o corte de elementos do desenho. Nessa capa mesmo foram pro caixa prego Reed Richards, Anjo, Quasar, Pássaro da Neve e o Gárgula II à esquerda e, à direita, a Felina ao lado da metade incolor do Sasquatch (efeito colateral da proximidade com a Mulher Invisível?). Retoquezinhos marotos, pro forma. O meio-Langkowski deixo na conta do prazo.

Nunca foi segredo —ao menos, para quem frequentava importadoras e, definitivamente, após a Internet— que a redação da Abril adorava "criar" as próprias capas. Era uma festa só.

Quem não lembra quando o Super-Homem do Garcia-López aterrissou no Nessie do Rei Kirby?



Ou aquela vez em que o Capitão América caiu na 23 de Maio, em São Paulo?


Não é à toa que as capas dos gibis de super-heróis da Abril sempre deram uma nova dimensão à expressão "acho que já vi isso antes". Déjà vu com esteróides.

Na capa de Hulk #30 é evidente que houve mais um desses recortes enxertados na arte original. Ou a simples intervenção de um "decorador" —os artistas das editoras que corrigem as falhas de traço geradas pelo processo de edição, tipo a perna do Wolverine, essas coisas. E no expediente da HQ, constava um núcleo de criação até bem generoso. Mas considero pouco provável, já que aqueles caras mal e mal conseguiam desenhar um Homem-Aranha. Um Homem-Aranha, pelamor do Tio Ben. É visível ali que tanto a expressão quanto o escalpo do Hulk são bem desenhados e finalizados.

O que chama atenção são as sombrancelhas enormes se confundindo com o sombreado cavernoso em torno dos olhos, dando um quê de sinistro à carranca. É Hulk de várzea. Jim Starlin é o 1º corno que me vem à cabeça, mas vai saber.

Me limito à pergunta universal: por que?

Será que a redação da Abril queria suavizar para o leitor médio (ainda) a transição do Hulk burro para o Hulk inteligente? Ou acharam aquele Hulk do LaRocque com cara de bonzinho demais e quiseram aumentar os níveis de testosterona-gama?

Ou, malandramente, tentaram se aproximar do visual do Gigante Verde da série animada exibida aqui na mesma época?



Não duvido, principalmente levando em conta o apelo comercial que os "heróis da TV" tinham com a Abril, algo até comentado pelo Jotapê Martins no podcast do Universo HQ (na marca dos 11'44''). Aliás, tanto Jotapê quanto o veterano editor Leandro Luigi Del Manto, donos de memórias prodigiosas, certamente responderiam essa de bate-pronto.

Por enquanto, a questão segue pegando poeira nos Arquivos de Casos Inexplicáveis da Abril...

...a menos que algum bom(a) samaritano(a) compareça com a elucidação via comentários ou e-mail, no qual serei imensamente grato e ainda parafrasearei o Golias Esmeralda na mesma edição.

domingo, 5 de setembro de 2021

“O pior pesadelo da América branca”


Difícil esquecer o impacto da capa do álbum de estreia do Body Count, de 1992. Na época, o mundo assistia estupefato à onda de violência que varreu as ruas de Los Angeles após a absolvição dos cinco policiais que espancaram Rodney King. Além do próprio vídeo da brutalidade policial que circulava há um ano pelos telejornais do mundo inteiro, algumas cenas dos ataques são hoje históricas, no pior sentido da palavra. O clima era de total convulsão social, política e racial. E, bem no olho do furacão, nenhuma imagem foi tão provocativa quanto aquela capa.

Era como assistir alguém jogando gasolina em um incêndio. Em entrevista para o Metal Injecion, o artista e designer californiano Dave Halili relembrou o brainstorm da obra:
“Queríamos um símbolo de um anti-herói/vigilante — um defensor contra abusos de poder autoritários. A imagem do pesadelo do Cop Killer é uma síntese da angústia urbana, um Frankenstein de Tookie Williams [o fundador da infame gangue Crips] misturada com práticas centrais dos Panteras Negras e outros motivos sinistros. (...) Então, com o que Ice e eu discutimos em reuniões a portas fechadas, tive permissão para desenvolver um simulacro de fantasia para representar a visão e o esquema do Body Count: chocante, hediondo, apavorante, amedrontador, ofensivo, repulsivo, ardente, efetivo, verdadeiro, bela escuridão ou qualquer sinônimo que você deseja adicionar era o nosso compromisso...”
Até aquele ponto, já havia visto minha cota de capas intensas e controversas dentro do punk/hardcore e do thrash/death metal até do 'classic rock' e da música pop. Mas quando vi a ilustração de um gigante negro pronto para a guerra e com a frase "Matador de Policiais" tatuada no peito, já sabia que daria B.O.. Um negro forte, livre, incontrolável e indo atrás de retribuição? Nada é mais aterrorizante para a elite branca, seja de qual país for —o que me lembra os outdoors de um clube de tiro local, estampados com fotos de homens, mulheres e até idosos caucasianos ostentando pistolas com um belo sorriso nos rostos, mas nenhum com uma mísera foto de uma pessoa negra portando as mesmas armas. Risível de tão óbvio.

De alguma forma, a arte de Halili conseguiu transcender a mera apelação e catalisar toda aquela frustração e urgência por justiça, além de levantar uma discussão sobre as consequências da falta de lisura das instituições. Claro, pra mim, também era uma peça altamente influenciada pelos quadrinhos. Desde o 1º momento, olhar para aquela ilustração era como vislumbrar um "What If..." Luke Cage se tornasse o Justiceiro? A tempestade perfeita jamais quadrinhizada.

Além do timing surreal —o disco foi lançado apenas 1 mês antes dos chamados 1992 Los Angeles riots— e da já tensa relação do vocalista Ice-T com as autoridades, a capa teve todo o alcance que pretendia na mídia americana. E além. Halili comentou:
“Quando a controvérsia de Cop Killer atingiu sua massa crítica, eu vi minha pintura de capa sendo exibida nas redes de TV como uma peça de evidência de uma cena de crime pelas mãos do vice-presidente dos EUA Dan Quayle. Até Charlton Heston segurou minha arte na TV. Eu tinha 22-23 anos naquela época.”
E aquele B.O. acabou chegando de fato.

Desesperada com a polêmica, a Sire/Warner Bros. optou por uma nova tiragem com a capa completamente preta e apenas com o nome da banda. Depois, alterou a pintura original por conta própria, removendo o "Cop Killer" do peito do vigilante e inserindo digitalmente o nome do grupo.


Tão icônico quanto a capa é esse exemplo de censura sofrível para a posteridade.

Halili ainda trabalhou em vários projetos de Ice-T, incluindo outra capa bastante polêmica, cuja nova tentativa de censura culminou com sua saída definitiva da Warner. Curiosamente, é dele também a capa de Born Dead, o 2º disco do Body Count.

Desta vez, a ilustração mostrava vários bebês brancos deitados em seus berços e um único bebê negro... num caixão. Uma imagética muito mais chocante e terrível que a anterior, mas que, evidentemente, não teve um décimo da repercussão...