“Tudo bem. Ninguém deve ler tudo. Não é assim que a obra deve ser vivenciada. Então, obviamente, foi o que eu fiz. Li todas as mais de 540 mil páginas da história publicadas até hoje...”Não faltam ambições para Douglas Wolk em seu livro Todas as Aventuras Marvel (Conrad, 2023). E talvez a maior delas seja reconectar o velho leitor à essência da Casa das Ideias. Só por isso já valeu o mergulho em suas 415 páginas. Pra mim, foi restaurador. Finda a leitura, era palpável o senso de uma perspectiva renovada e ampliada. A vontade era de catar o 1º calhamaço de gibis pela frente e devorá-lo imediatamente. Não era um sentimento de urgência, mas de volta a um pertencimento. Como nos tempos em que folheava, deslumbrado, meus primeiros quadrinhos do Hulk, do Homem-Aranha e dos Vingadores.
Ok, para um leitor de longa data, a premissa do livro não é estranha. Ler tudo, tudo mesmo, é um devaneio recorrente. O escritor e quadrinista de Portland, por sua vez, foi à luta e leu cada um dos cerca de 27 mil gibis publicados pela Marvel desde 1961 até o fechamento do livro, em 2021. Moleza.
Segundo Wolk, a empreitada durou cinco anos e foi administrada com o mindset mais Tracy Lawless possível: com exemplares de sua coleção particular, de gibis emprestados de bibliotecas e amigos, por tablet, brochurões Essential em p&b, scans do Jack Sparrow (evidente!), pelo acervo digital da própria Marvel, em relançamentos deluxe, sebos, convenções e de onde mais brotassem revistas. Tática de guerra.
Sobre a metodologia, o autor não fornece grandes detalhes. Esta, IMHO, era uma história que merecia ser contada, inclusive com fotos, diários e rascunhos. Tenho lá uma imagem mental da cena, mas o mesmo afirma reiteradamente que o processo foi muito espontâneo e informal. Inclusive me parece bem estoico a respeito.
“Mais uma vez, a incompletude faz parte da diversão dessa história interminável, imperfeita e criada de forma colaborativa.”A cronologia Marvel é, provavelmente, o maior cadáver esquisito já elaborado na História.
A criação do universo compartilhado foi o divisor de águas da editora – cujo ponto zero é fantasticamente triangulado no livro como sendo em Kathy #14, Patsy and Hedy #79 e Patsy Walker #98, todas de dezembro de 1961. São HQs sobre romances adolescentes e jovens modelos e que, pela 1ª vez, interagiam entre si. Nascia ali o crossover.
Com o passar das décadas, esse universo foi ganhando contornos meio vilanescos, afastando neófitos que julgavam imprescindível a leitura de tudo o que havia sido lançado até então. “Por onde eu começo a ler tal HQ...?” ainda é uma das perguntas mais frequentes no meio.
Wolk, com poucas exceções, abriu mão da leitura por ordem de publicação. Lia o que queria (e o que podia) no momento, partindo da teoria de que cada HQ é formatada como uma potencial porta de entrada para novos leitores. Na Marvel, inexistem hermetismos ou longos períodos no escuro. Tudo é feito para facilitar o entendimento em uma saga de 60 anos de cronologia ininterrupta. Só assim para garantir a renovação e o fluxo de leitores. Por mais confusa e caótica que uma história em andamento possa ser, ela nunca será intransponível e nossa habilidade de juntar as peças de um quebra-cabeça, seja em alguns meses ou em alguns anos, é tão natural quanto respirar.
O que tira algumas toneladas de obrigação conceitual das minhas costas. Me lembrou que posso pegar qualquer HQ da pilha e me divertir, sem maiores elucubrações. Pela capa que seja, como nos velhos tempos. E aí vai mais um ponto para o escritor.
O livro guarda uma tensão inicial sobre como Wolk irá destrinchar sua experiência em texto. O modo como ele mapeia o sequenciamento criativo da Marvel é muito eficiente e com alguns sacrifícios dolorosos já esperados. Faz parte. Não dá pra contar tudo. Já fiquei muito satisfeito com os capítulos sobre Quarteto Fantástico, Homem-Aranha, Shang-Chi (meu segmento favorito), X-Men, Thor & Loki, Pantera Negra (meu 2º favorito), Walt Simonson, Jonathan Hickman e outros. Foi um trabalho hercúleo.
O escritor também destaca o fato da Marvel reverberar as mudanças culturais de cada zeigeist com seus aspectos cada vez mais diversos e pluralistas – da forma mais esforçada possível para um produto desenvolvido majoritariamente por homens brancos e americanos. Quase todo o escopo da “Montanha da Marvel" (como ele mesmo se refere ao projeto) é sedimentado sobre observações sociais e políticas*.
* pois é, a Marvel sempre foi política. E seu gibizinho nunca te enganou a esse respeito. Não seja aquele cara.
Há um trecho notável em “Norman Osborn e seu Reinado Sombrio” onde ele parte kamikaze rumo à reflexão:
“A melhor obra de ficção que já vi a respeito da vida durante o governo Donald Trump — a que capta com mais precisão o lento avanço do desespero e da tensão daquele período na cultura americana — é Reinado Sombrio...”Palavras dele com a precognição da Marvel respingando nas teclas. Reinado Sombrio rolou de 2008 a 2009, oito anos antes daquela administração, mas os esquemas de conspiração e desinformação em massa denunciam as similaridades entre o Duende Verde e o Duende Laranja.
Na reta final, chega a ser inusitado como Douglas Wolk consegue encontrar emoção genuína na série da Garota-Esquilo (!). E continua, em “Passando o bastão”, num relato mais intimista de suas experiências de leitura ao lado do filhinho de 10 anos. É comovente e simplesmente espetacular. Na saideira, os agradecimentos e, de voleio, um apêndice-intensivão onde ele sumariza toda a Saga da Marvel até aqui. De novo, a escala é mesmerizante.
Tirando a capa (há outras melhores), só elogios para a edição da Conrad. Especialmente o trampo minucioso de André Gordirro. Além de traduzir e adaptar, ele garimpou nomes de personagens, histórias, sagas e títulos espalhados em várias editoras brasileiras e cruzou com as referências metralhadas em mais de 400 notas de rodapé. Neste quesito, o e-book sai ganhando com seus práticos links indo e voltando de cada notinha – aliás, confesso que Wolkeei e li parte da obra na versão física e parte na versão digital.
Todas as Aventuras Marvel é tão divertido, informativo e analítico quanto se propõe. Não tem a pretensão de reivindicar a verdade absoluta em suas teorias, mas ajuda demais a vislumbrar a complexidade deste imenso quadro que é a cronologia Marvel. É uma volta à jornada fantástica e incipiente que nos encantava e uma oportunidade singular para reavaliar esta mesma jornada como um todo.
Que venha o volume 2, 3, 4... Vamos lá, Doug. Ainda sobraram muitas aventuras pra contar.
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