quinta-feira, 25 de julho de 2024

Superleituras Marvel

“Tudo bem. Ninguém deve ler tudo. Não é assim que a obra deve ser vivenciada. Então, obviamente, foi o que eu fiz. Li todas as mais de 540 mil páginas da história publicadas até hoje...”
Não faltam ambições para Douglas Wolk em seu livro Todas as Aventuras Marvel (Conrad, 2023). E talvez a maior delas seja reconectar o velho leitor à essência da Casa das Ideias. Só por isso já valeu o mergulho em suas 415 páginas. Pra mim, foi restaurador. Finda a leitura, era palpável o senso de uma perspectiva renovada e ampliada. A vontade era de catar o 1º calhamaço de gibis pela frente e devorá-lo imediatamente. Não era um sentimento de urgência, mas de volta a um pertencimento. Como nos tempos em que folheava, deslumbrado, meus primeiros quadrinhos do Hulk, do Homem-Aranha e dos Vingadores.

Ok, para um leitor de longa data, a premissa do livro não é estranha. Ler tudo, tudo mesmo, é um devaneio recorrente. O escritor e quadrinista de Portland, por sua vez, foi à luta e leu cada um dos cerca de 27 mil gibis publicados pela Marvel desde 1961 até o fechamento do livro, em 2021. Moleza.

Segundo Wolk, a empreitada durou cinco anos e foi administrada com o mindset mais Tracy Lawless possível: com exemplares de sua coleção particular, de gibis emprestados de bibliotecas e amigos, por tablet, brochurões Essential em p&b, scans do Jack Sparrow (evidente!), pelo acervo digital da própria Marvel, em relançamentos deluxe, sebos, convenções e de onde mais brotassem revistas. Tática de guerra.

Sobre a metodologia, o autor não fornece grandes detalhes. Esta, IMHO, era uma história que merecia ser contada, inclusive com fotos, diários e rascunhos. Tenho lá uma imagem mental da cena, mas o mesmo afirma reiteradamente que o processo foi muito espontâneo e informal. Inclusive me parece bem estoico a respeito.
“Mais uma vez, a incompletude faz parte da diversão dessa história interminável, imperfeita e criada de forma colaborativa.”
A cronologia Marvel é, provavelmente, o maior cadáver esquisito já elaborado na História.

A criação do universo compartilhado foi o divisor de águas da editora – cujo ponto zero é fantasticamente triangulado no livro como sendo em Kathy #14, Patsy and Hedy #79 e Patsy Walker #98, todas de dezembro de 1961. São HQs sobre romances adolescentes e jovens modelos e que, pela 1ª vez, interagiam entre si. Nascia ali o crossover.

Com o passar das décadas, esse universo foi ganhando contornos meio vilanescos, afastando neófitos que julgavam imprescindível a leitura de tudo o que havia sido lançado até então. “Por onde eu começo a ler tal HQ...?” ainda é uma das perguntas mais frequentes no meio.

Wolk, com poucas exceções, abriu mão da leitura por ordem de publicação. Lia o que queria (e o que podia) no momento, partindo da teoria de que cada HQ é formatada como uma potencial porta de entrada para novos leitores. Na Marvel, inexistem hermetismos ou longos períodos no escuro. Tudo é feito para facilitar o entendimento em uma saga de 60 anos de cronologia ininterrupta. Só assim para garantir a renovação e o fluxo de leitores. Por mais confusa e caótica que uma história em andamento possa ser, ela nunca será intransponível e nossa habilidade de juntar as peças de um quebra-cabeça, seja em alguns meses ou em alguns anos, é tão natural quanto respirar.

O que tira algumas toneladas de obrigação conceitual das minhas costas. Me lembrou que posso pegar qualquer HQ da pilha e me divertir, sem maiores elucubrações. Pela capa que seja, como nos velhos tempos. E aí vai mais um ponto para o escritor.

O livro guarda uma tensão inicial sobre como Wolk irá destrinchar sua experiência em texto. O modo como ele mapeia o sequenciamento criativo da Marvel é muito eficiente e com alguns sacrifícios dolorosos já esperados. Faz parte. Não dá pra contar tudo. Já fiquei muito satisfeito com os capítulos sobre Quarteto Fantástico, Homem-Aranha, Shang-Chi (meu segmento favorito), X-Men, Thor & Loki, Pantera Negra (meu 2º favorito), Walt Simonson, Jonathan Hickman e outros. Foi um trabalho hercúleo.

O escritor também destaca o fato da Marvel reverberar as mudanças culturais de cada zeigeist com seus aspectos cada vez mais diversos e pluralistas – da forma mais esforçada possível para um produto desenvolvido majoritariamente por homens brancos e americanos. Quase todo o escopo da “Montanha da Marvel" (como ele mesmo se refere ao projeto) é sedimentado sobre observações sociais e políticas*.

* pois é, a Marvel sempre foi política. E seu gibizinho nunca te enganou a esse respeito. Não seja aquele cara.

Há um trecho notável em “Norman Osborn e seu Reinado Sombrio” onde ele parte kamikaze rumo à reflexão:
“A melhor obra de ficção que já vi a respeito da vida durante o governo Donald Trump — a que capta com mais precisão o lento avanço do desespero e da tensão daquele período na cultura americana — é Reinado Sombrio...”
Palavras dele com a precognição da Marvel respingando nas teclas. Reinado Sombrio rolou de 2008 a 2009, oito anos antes daquela administração, mas os esquemas de conspiração e desinformação em massa denunciam as similaridades entre o Duende Verde e o Duende Laranja.

Na reta final, chega a ser inusitado como Douglas Wolk consegue encontrar emoção genuína na série da Garota-Esquilo (!). E continua, em “Passando o bastão”, num relato mais intimista de suas experiências de leitura ao lado do filhinho de 10 anos. É comovente e simplesmente espetacular. Na saideira, os agradecimentos e, de voleio, um apêndice-intensivão onde ele sumariza toda a Saga da Marvel até aqui. De novo, a escala é mesmerizante.

Tirando a capa (há outras melhores), só elogios para a edição da Conrad. Especialmente o trampo minucioso de André Gordirro. Além de traduzir e adaptar, ele garimpou nomes de personagens, histórias, sagas e títulos espalhados em várias editoras brasileiras e cruzou com as referências metralhadas em mais de 400 notas de rodapé. Neste quesito, o e-book sai ganhando com seus práticos links indo e voltando de cada notinha – aliás, confesso que Wolkeei e li parte da obra na versão física e parte na versão digital.

Todas as Aventuras Marvel é tão divertido, informativo e analítico quanto se propõe. Não tem a pretensão de reivindicar a verdade absoluta em suas teorias, mas ajuda demais a vislumbrar a complexidade deste imenso quadro que é a cronologia Marvel. É uma volta à jornada fantástica e incipiente que nos encantava e uma oportunidade singular para reavaliar esta mesma jornada como um todo.

Que venha o volume 2, 3, 4... Vamos lá, Doug. Ainda sobraram muitas aventuras pra contar.

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Entrevista no TCJ

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Nunca diga Never

Eis que as minhas desconfianças se mostraram precipitadas...


...ainda bem.

O pessoal da editora Futuro seguiu o cronograma à risca e realmente entregou seu Nathan Never Volume 2 no prazo estipulado. Uma raridade em se tratando de projetos financiados via Catarse. Até onde lembro, só as editoras Figura, 85 e Tai conseguem tal proeza. Nesse quesito, 10, nota 10.

E não parou por aí.

O projeto editorial ficou bem próximo do Nathan Never Volume 1, da carbonizada Graphite. Que era um excelente trampo, diga-se. Aqui é tudo replicado, das dimensões e diagramação até a capa com verniz e orelhas (orelhões) e as imagens de fundo na guarda. A única exceção é o papel: sai o pólen bold amarelado, entra o offset clarinho. Ótimo negócio.

Com a campanha encerrada, a Futuro já disponibilizou a edição para compra direta no site. E também já começa a preparar o projeto de financiamento do 3º volume.

Parafraseando o Fry, shut up and take my money!


Minha coleçãozinha de Nathan Never da Graphuturo agradece.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Sopão de letrinhas

Lendo sobre os longos floreios e solilóquios do quadrinista Don McGregor no delicioso livro Todas as Aventuras Marvel (valeu a dica, Luwig!), lembrei dos textões que frequentemente abarrotavam os gibis da Era de Ouro. E não estou só.

Do Facebook de Walt Simonson:

“Nyoka the Jungle Girl 12. Da história Clibo, Congo King. Pp 2 & 3. Charlton Comics. 1955. Estou postando isso como um exemplo de escrita de quadrinhos que vi recentemente, de tempos passados. De vez em quando, encontro alguém que está lendo meus Thors da década de 1980 e reclama de todas as palavras que precisa percorrer no quadrinho. E vejo o mesmo tipo de crítica dirigida ao trabalho de alguns dos meus contemporâneos. Gente, vocês não têm ideia. Duas páginas de uma história em quadrinhos cerca de 30 anos antes de nós. Adoro! É melhor você gostar de ler! LOL!!!”
Por "contemporâneos", certeza que ele se refere ao Chris e ao Claremont.

Pode ser algum desejo reprimido de encaixar um romance épico num gibizinho, mas o fato é que era uma carga desembestada de letras chegando ao ponto de soterrar a arte. Balões e recordatórios disputavam cada milímetro do quadrinho com os personagens. Era uma briga de foice e mesmo na Era de Prata ainda deixava vítimas famosas.

Infelizmente, a ausência de créditos também era uma constante naquela época. Não achei o nome desse Tolstói no Grand Comics Database e nem na própria HQ. Mas não duvidaria que tenha sido algum admirador do Ken Fitch.

Isso se não for o próprio!

domingo, 7 de julho de 2024

Good Golly Miss Waller

Tema de abertura da série Suicide Squad ISEKAI naquela pegada dark pop animê (Death Note, Demon Slayer). Já o tema de encerramento... é um disparo cavalar de JAPÃO na aorta.

Confira comigo a Amanda Waller's Bizarre Adventure na marca dos 1:30.


Isso precisava existir em algum ponto da história humana.

Suicide Squad ISEKAI está em seu 4º episódio (de dez) dessa primeira temporada – no Japão, ainda está no 1º ep., veja só que sacanagem com os meninos. Farei tudo o que estiver em meu alcance para assistir a bagaça com as vozes japonesas. Do contrário, seria uma falha de caráter da minha parte.

Com isso, creio que já cobrimos tudo que precisávamos sobre a Ms. Waller.

Ou estou enganado?


Agora sim, case closed.

(e não veria isso sozinho nem por todo o whisky da Escócia, obrigado)

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Jerry & Joe, Joe & Jack


Que Jerry Siegel e Joe Shuster comeram o pão que a DC amassou por causa do Superman, todo mundo sabe. A pindaíba da dupla foi nervosa: Siegel, a esposa e a bebê passavam fome num apartamento minúsculo sob constantes ameaças de despejo e Shuster, quase cego e sem condições de desenhar, dormia em bancos de praça. Já a DC, bem... Superman tinha vendas mensais estimadas em mais de 1 milhão de exemplares na época em que os dois foram demitidos.

Eventualmente (e por intermédio de Neal Adams), a editora do Detetive resolveu levar à dupla alguma justiça, ainda que tardia e irrisória. Mas durante aquele meio-tempo, só restava a Siegel fazer o que sabia melhor, escrever. E muito. E com raiva, muita raiva. Ele escreveu inúmeras cartas diretamente para a DC descascando a editora e seus diretores.

Hoje em dia, Jerry Siegel seria infernal nas redes sociais.

Escavando ao acaso pelo site-lojão MyComicShop, topei com algumas dessas correspondências à venda. Uma delas é a notória "Maldição de Natal" que Siegel enviou para Paul Sampliner, fundador da distribuidora Independent News Co., braço da National Periodical Publications, do grupo DC.


O que, decodificado pelo Google Translator e copydeskado pelo escriba da casa, seria algo como:

“Paul: Pode aumentar a alegria de sua festa de Natal saber que terei que ir para o Relief.* — Enquanto você ganha milhões com as minhas criações... — Você não me daria a chance de escrever novamente e ter uma vida decente. — Ao se apropriar do SUPERBOY, você me destruiu. — Mas todo mundo sabe como você recompensou o criador de SUPERMAN e SUPERBOY por ajudá-lo a fundar seu império de quadrinhos. — Você pode ver o que eles realmente pensam de você, não nas palavras deles, mas no que eles NÃO dizem... e nos olhos deles. — Eles sabem que você me destruiu por lucro e que não está oferecendo ajuda à minha família para que possamos sobreviver. — Como você pode usufruir suas conquistas, sabendo que elas estão sendo construídas sobre a minha carreira destruída? O DINHEIRO vale isso? Quando você enfrentar seu criador, ele aceitará as letras miúdas dos ‘#legalismos’ de seu advogado? Você está preocupado com sua alma imortal? — Quando você come, bebe e tem abrigo, lembre-se de que o homem que você destruiu enfrenta a pobreza. — Quando você comemorar na sua Festa de Natal, lembre-se que estarei lá em espírito, olhando para você, caminhando ao seu lado e perguntando: — POR QUE VOCÊ FEZ ISSO COM OUTRO SER HUMANO? — POR QUE VOCÊ ESTÁ ME FORÇANDO A IR AO RELIEF? — ENQUANTO EU VIVER, E DEPOIS, ASSOMBAREI VOCÊ E OS SEUS. DIANTE DE DEUS, COLOCO UMA MALDIÇÃO SOBRE VOCÊ. — Jerry Siegel”
* um dos programas sociais do governo americano.

Outra missiva era uma singela lembrança a Jack Liebowitz, fundador da National/DC Comics, pelo casamento de sua filha. Nos dias atuais, uma medida protetiva e um processo por stalking seriam certos.

“Querido Jack: Congratulações pelo noivado de sua filha Linda Ann com Ronnie Stillman de University Heights, Cleveland. — UMA VEZ, morei em University Heights, Cleveland, em uma bela casa, até que uma injustiça podre arruinou a minha vida e a minha carreira. — Sinceramente, Jerry Siegel — Criador do SUPERMAN”

Mas a carta mais surpreendente, sem dúvida, veio dos geniais Jack Kirby e Joe Simon... em apoio à DC contra o malévolo Jerry Siegel!

“Prezado Sr. Liebowitz: Foi com um sentimento de profundo desgosto e vergonha que lemos a literatura malévola publicada por um antigo contemporâneo, Jerry Siegel. — Tendo sido anteriormente associados à sua organização em uma capacidade semelhante, sentimos que é nosso dever desmentir uma exibição tão chocante e indecente e assegurar-lhe que as opiniões mordazes do Sr. Siegel certamente não são compartilhadas por ninguém da antiga equipe da D.C. Estamos em contato com todos eles e eles estão tão indignados quanto nós com a injustiça deste ataque. — Tenha certeza de que sua justiça e generosidade, especialmente durante os anos de serviço de guerra, embora obviamente perdidas pelo Sr. Siegel, não foram esquecidas por aqueles que conhecem a verdade. — Sinceramente, Joe Simon e Jack Kirby”

Lembrando que, nesse período (circa 1951), Kirby e Simon estavam nadando em dinheiro com os quadrinhos românticos que faziam para a Crestwood Publications. Só as revistas Young Romance e a spin-off Young Love, juntas, vendiam dois milhões de cópias/mês.

Seis anos depois, porém, o próprio Kirby passaria a sentir o que sentia Jerry Siegel.

Instant karma é isso aí. Felizmente, quem é Rei...