sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005

HOUDINI PUNK


"Now i'm really freaking out!" É o que você mais vai ouvir em David Blaine: Street Magic (idem, 1997), especial produzido pela rede americana ABC. A primeira vez que assisti a esse semi-documentário, em 2000 (exibido no Brasil pela HBO), fiquei simplesmente estupefato com a tal "técnica de rua" do ilusionista new yorker David Blaine. Distante anos-luz de magnatas do ramo (como David Copperfield), sua performance em nada lembra aquelas mega-façanhas quase onipotentes transmitidas via-satélite, como "fazer desaparecer" um boeing 737 ou um porta-aviões. Muito pelo contrário. Blaine é um artesão de detalhes. O que ele faz é arte manual e em tempo real, bem ali, em meio às pessoas que estão transitando (os tais transeuntes...). Mas apesar de sua performance embasbacante, seu principal feito foi devolver a arte do ilusionismo às ruas, ao gosto popular. Nada daquele glamour inatingível movido a palcos gigantescos, equipamentos de última geração e showgirls turbinadas pra prender a atenção (tsc!).

Nascido em 4 de abril de 1973, David Blaine teve o seu primeiro contato com o ilusionismo aos 4 anos, assistindo a performance de um velho mágico no metrô de New York. Estudou teatro em Manhattan, fez alguns comerciais e pontas em séries de TV, e aos 17 saiu de casa para fazer o que sabia melhor: confundir as pesso... digo, praticar o ilusionismo. Seu estilo personalizado e peculiar o tornou habitué em concorridas festas da alta sociedade. Foi nessa época que ele conheceu celebridades como Madonna, Al Pacino, Arnold Schwarzenegger, Mike Tyson, e, particularmente, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio. Todo o hype não foi pra menos, afinal, Blaine é, antes de tudo, um entertainer nato, um relações públicas corpo-a-corpo de si mesmo. Talvez tenha sido esse o detalhe que o livrou de ocupar o lugar daquele velho mágico no metrô.

Com uma edição exalando espírito underground, Street Magic é praticamente uma turnê no asfalto. Blaine leva ao pé da letra a máxima "o artista tem que ir aonde o povo está", e além das movimentadas avenidas de sua New York natal, ele passeia pelas ruas de Dallas, Mojave Desert, Nashville, New Orleans, Atlantic City, Los Angeles, Compton, e até lugares mais improváveis, como o Haiti e a reserva da tribo Yanomami, na Floresta Amazônica. É incrível notar, na parte norte-americana da "aventura", como as pessoas comuns são tão parecidas com as pessoas que sempre vemos nos filmes. Em Nashville, vemos Blaine abordando alguns "white trash" interioranos (por mais cruel e pejorativo que esse termo seja), como um dono de oficina e uma senhora dona de uma casa caindo aos pedaços. Só faltou o tradicional conjunto habitacional formado de trailers (verdadeiras favelas sobre rodas). Já a seqüência no vestiário do time de american football Dallas Cowboys me lembrou na mesma hora o elenco do filme Um Domingo Qualquer, sem exageros. Até a postura dos jogadores, cheia de "damn", "hell no" e "whataf...". Eles falam daquele jeito mesmo, que nem nos filmes. E eu achando que era só a interpretação estereotipada de algum ator. Aliás, confesso que fiquei meio tenso na parte filmada em Compton (uma quebrada pra lá de sinistra). A impressão que dava era que a qualquer momento algum daqueles niggas fãs de Tupac Shakur iria sacar uma arma, estourar a cabeça de Blaine e gritar à plenos pulmões: "Die, muthafuckin' bitch! Deceive the devil, your fuckin' asshole!"

Quanto à seqüência filmada na tribo indígena é digna de nota a preocupação de Blaine em adaptar a sua trucagem para um contexto mais simples, mas nem por isso menos impactante. Ficou até mais bonito de se ver. E os registros de um ritual vodu no Haiti é pra lá de interessante (e macabro).

A habilidade de David Blaine é sensacional, tanto na execução das suas ilusões quanto em sua desenvoltura pra ganhar a atenção de um público 100% incidental e imprevisível. Tanto é que grande parte da força de Street Magic está na reação das pessoas, mezzo catatônica mezzo excitada (mas sempre surpreendente) diante de suas demonstrações aparentemente impossíveis. Às vezes ele até chega de uma forma mais despojada (se intencional ou não, não dá pra saber), e isso acaba rendendo situações divertidas e, ao mesmo tempo, constrangedoras ("Ei, deixa eu te mostrar uma parada diferente, que vai expandir sua mente!" - e só dá nego correndo achando que ele é traficante). Mas algumas vezes, Blaine se revela um senhor estrategista, como na cena do píer, em que ele mexe com as focas que estão na enseada (fazendo um barulhão) só pra atrair a atenção de um grupo de turistas orientais que estava passando.

Recortado por takes com Leonardo DiCaprio fazendo as vezes de entrevistador, Blaine esclarece que segue a velha escola do ilusionismo. Velha mesmo... cerca de dois mil anos antes de Cristo. Tratam-se de artimanhas bem simples, mas pra lá de eficientes, como girar o braço em 360° (com um estalo de "creck" e tudo), fazer miséria com as cartas (o que ele faz é incrível), adivinhar o que as pessoas estão pensando (!) e fazê-las adivinhar o que ele está pensando (!!), e a parte mais sinistra... levitar no meio da rua, sem fios ou cabos, e com todo mundo olhando.

Blaine ainda protagonizou outro especial, Fearless (idem, 2002), naquela mesma tocada "street", mas depois disso, cortou na tora todo o seu hype proeminente e mergulhou em uma pesada bad trip existencial. Claro que isso se refletiu em suas performances, que se tornaram seguidos testes de resistência física. Ele ficou 3 dias em pé dentro de um bloco de gelo, sem camisa, com apenas 5 cm de espaço entre seu corpo e o gelo. Logo após, ficou enterrado durante 7 dias em um caixão de vidro. Em 2002, ficou durante 35 horas em pé num pilar de 24 metros em plena 5ª Avenida, New York. E em 2003, realizou a sua masterpiece à Survivor: ficou 44 dias sem comer dentro de uma caixa de vidro pendurada na Tower Bridge, perto do rio Tâmisa, em Londres. Virou até atração turística local. Foi recorde na época (batido meses depois pelo médico chinês Chen Jianmin, que agüentou 49 dias de jejum - coisa de doido mesmo). Leia mais sobre essa façanha suicida aqui.

De qualquer forma, David Blaine e seu Street Magic preservam o verdadeiro espírito da arte do entretenimento e da ilusão, longe da brochante velocidade nonsense atual. Seja pela performance irrepreensível, pela inegável simpatia e tranqüilidade envolvente ou pelo simples calor humano que permeia a coisa toda. Todo mundo, de todas as procedências, se divertindo como crianças, por causa de alguns breves gestos manuais. E por alguns instantes, a impressão era de que não haviam tantas diferenças no mundo e que nós não estávamos tão distantes uns dos outros. Como nos velhos tempos.


dogg, ouvindo um show matador do Whitesnake no Donnington de 1990... pena que o som do bootleg não é dos melhores... David Coverdale rulz!

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