Assistindo
Desastre Total: Woodstock 99 (
Trainwreck: Woodstock '99, 2022) tive a sensação de viajar no tempo, mas num outro espaço. Acompanhei o festival a exatos 7.622 km e dois fusos horários de distância do epicentro: no conforto do meu lar, estirado em minha poltrona favorita, com tira-gostos variados e rodadas incessantes de caipirinhas e latinhas de Skol (
outra época!). Na tela,
headliners raivosos, som no talo e um maremoto humano ensandecido — com pintos e peitos à mostra e balangando via satélite — que ainda hoje deixa atônitos até habitués em megafestivais.
Tudo levava a crer que estava testemunhando a experiência
rock and roll definitiva. Mal sabia do inferno social e humanitário que estava se desdobrando ali em tempo real. Ou melhor, até desconfiava...
Lembro que, a certa altura, um VJzinho qualquer pergunta a um garoto sobre as cenas de violência e quebra-quebra da noite anterior. Ele é categórico:
"cara, você tem Limp Bizkit, Rage Against the Machine e Metallica se apresentando um depois do outro... queria o quê?"
Aquele momento, vindo de um guri ressacado, foi didático. A escalação do palco principal não tinha a menor ressonância com os auspícios de paz & amor do icônico Woodstock. Foi uma estratégia adotada já na edição de 1994, quando a marca foi ressuscitada no vácuo das primeiras edições do bem-sucedido Lollapalooza. A gasolina estava lá, só faltava o fogo.
Dividido em três episódios, o documentário da
Netflix explora esse e outros pontos nevrálgicos que levaram o Woodstock 1999 a uma quase tragédia sem precedentes. O trabalho de pesquisa e resgate de imagens de arquivo é espetacular. E o diretor
Garret Price também sabe do peso dos depoimentos de quem esteve
in loco e faz uma boa seleção de
woodstockers, com artistas, jornalistas, membros do staff do festival e do próprio público.
E ainda foi esperto — e sortudo — o bastante para colher a versão dos promotores
Michael Lang e
John Scher. Afinal, eles tinham muito que explicar.
Logo nos primeiros minutos, duas cenas surreais dão conta que até os deuses tentaram avisar: o então prefeito local Joseph Griffo inaugura o evento com a tradicional quebra da garrafa de champagne e só consegue na
9ª tentativa; e o momento em que o Soul Brother Nº 1
James Brown recebe o espírito do Rei do Soul Tim Maia (falecido um ano antes) e se recusa a estrear o palco principal enquanto não receber o cachê integral antes do show, mesmo com a banda já tocando a introdução e o público urrando.
Mas o doc não deixa dúvidas sobre quem foram os grandes vilões do evento: os
preços hiperinflacionados e as
deficiências de infraestrutura.
O Woodstock '99 foi realizado numa antiga base aérea americana, situada em Rome, NY. É um monstro de 3.600 acres onde cada direção era uma verdadeira peregrinação sob o sol escaldante do verão americano. Para economizar nos custos (e, talvez, amortizar um pouco do prejuízo da malfadada edição de 94), a produção contratou seguranças com pouca ou nenhuma experiência, batizou o contingente de "Patrulha da Paz" e tudo certo.
Outra grande ideia para as contas bancárias foi simplesmente
não pagar as prestadoras responsáveis pelo saneamento e fornecimento de água, incluindo aí a manutenção dos banheiros químicos. Tenha em mente um público estimado em 200 mil pessoas ao longo de quatro dias e o resultado é um só:
o horror, o horror...
O que veio a seguir foi de revirar o estômago. Aquelas imagens eternizadas na cultura pop do público coberto de lama, mergulhando na lama, rolando na lama e até pegando jacarezinho na lama... adivinha: não era lama. Era
merda. Muita merda. Merda pra tudo que é lado. Mesmo num calor senegalesco, a falta d'água era frequente nas bicas e nos chuveiros distribuídos na área, mas talvez fosse até uma providência do destino — testes feitos durante o festival constataram que toda a rede de água estava severamente contaminada por fezes. Eles sabiam. Só não avisaram ao público.
E com as barracas de comida e bebida enfiando a faca sem dó (garrafinha de água: US$ 4) era como vislumbrar a derrocada dos antigos ideais, agora pervertidos pela ambição e pelo materialismo. Era o fogo que faltava. Cansado de ser maltratado, humilhado e explorado, o público se voltou contra tudo e contra todos. Inclusive contra ele mesmo.
De certo modo, foi um intensivão de neoliberalismo.
O diretor Price consegue achados tragicômicos em meio aos crescentes
riots, como o momento em que um dos membros da equipe faz uma
barricada na porta do escritório, como se estivessem cercados por zumbis. E não hesita em se aventurar por terrenos controversos, como o dilema dos artistas de rock pesado num ambiente instável. Pelo contrário.
Korn fez um show visceral, com a vantagem da escalação no primeiro (e relativamente calmo) dia. Mas é difícil não ficarmos menos do que convencidos que o
Limp Bizkit e seu frontman
Fred Durst acirraram bastante os ânimos já exaltados. E que os caras do
Red Hot Chili Peppers podiam ter ido dormir sem tocar
"Fire" bem no momento em que se propagavam os incêndios que marcaram o fim do festival.
Desastre Total eventualmente cede a algumas concessões. É nítido que
Metallica e
Rage Against the Machine foram poupados. No caso do primeiro, lembro bem do coro de
"Die! Die!", que a banda sempre puxa no meio de
"Creeping Death", destoando de toda a estética psicodélica-
flower power do evento. E no caso do Rage e sua
incendiária apresentação, ao menos foi registrada a arrepiante cena da turba repetindo o mantra/grito de ordem
"Fuck you, I won't do what you tell me" enquanto destruíam, pilhavam e violentavam tudo pelo caminho. Mas dá pra botar na conta da metragem.
Não ajudou a romantizada que deram no Woodstock original. Ficou parecendo um piquenique de fadinhas e hobbits no Condado. E
não foi nada disso. Outra bola fora envolve a pior faceta do festival, que foram os vários casos de estupro. Já estava quase no final do último episódio e achei que o assunto não seria sequer mencionado, o que teria dado perda total no doc. Mas foi. Em algo como
cinco minutos. Pois é.
Também é traçado um perfil da mentalidade machista e privilegiada do jovem-branco-de-fraternidade que predominou no festival. O que foi um dedo na ferida admirável.
A narrativa aniquila qualquer impressão sobre o promotor John Scher que não seja a de um businessman negligente e ganancioso. Mas curiosamente patina em assimilar a figura serena e enigmática de Michael Lang, falecido pouco depois as filmagens. Ele foi co-idealizador e promotor do festival original e, pelas imagens da época, já era um personagem e tanto. Merecia um doc à parte.
O Woodstock '99 teve apenas 4 dias, mas, pelo jeito, rendeu assunto para 23 anos. E contando...