segunda-feira, 22 de novembro de 2004

TÃO LONGE E SEMPRE


Existem três maneiras de você viajar para o exterior. A primeira é 5 estrelas, expensive, idílica, como no filme Encontros e Desencontros. A segunda é bem do-it-yourself e mochileira, mas dá pra ir a pé e você ainda exercita o seu espírito aventureiro, como em Antes do Amanhecer. A terceira, mais desumana e muito mais freqüente, qualquer cristão nascido em Governador Valadares já conhece de cor, à duras penas.

Coisas Belas e Sujas (Dirty Pretty Things/2002) fecha com maestria o tema "um estranho numa terra estranha", e ainda estabelece uma ligação quase íntima com esses dois filmes: a solidão, onipresente e sempre angustiante. E ela está lá, em maior ou menor grau. Mas pra quem joga todas as suas fichas para se submeter à humilhações, condições de vida sub-humanas e um regime de trabalho semi-escravagista, essa é a menor das preocupações. Pode parecer cruel (e é), mas essas pessoas aprendem a conviver com a dor. Eu não estaria expondo isso se fosse um fenômeno raro. Tratam-se de milhões de pessoas nessa situação (para mim, apenas uma já bastaria). Tratados sem dignidade, por fazer um serviço que ninguém daquele país quer fazer. Por algum motivo obscuro, uma viagem à Disneyworld ocupa mais espaço nos charts do que esse lado negro do trânsito internacional. Bem vindos ao século 21, onde tudo é lindo e maravilhoso.


Coisas Belas e Sujas é uma odisséia. Seguimos a trajetória de Okwe (Chiwetel Ejiofor, de Amistad), um nigeriano refugiado em Londres, trabalhando par-time em dois empregos: taxista de dia e recepcionista de um hotel à noite. Ilegalmente, é claro. Sempre à sombra da Imigração (isso é um terror lá fora), ele divide um quarto com a imigrante turca Senay (Audrey Tautou, de... Audrey, vou te ajudar e não vou citar o filme). Mesmo investigada pela Imigração, ela se arrisca a trabalhar, pois precisa de dinheiro para sobreviver. E assim vão os nossos heróis, iguais aos milhões que citei... oprimidos, trabalhando duro, morando mal, comendo mal e dormindo muito mal.

Cotidiano barra-pesada instaurado, tudo ainda pode ser piorado. Numa checada de rotina nos quartos, Okwe encontra um coração humano dentro de um vaso sanitário. Discreto e bem-intencionado, ele recolhe o achado e leva ao conhecimento de seu chefe, Sneaky (Sergi López), que o "convence" a esquecer o fato - diretamente relacionado ao tráfico de órgãos. E aí está outro detalhe. De procedência latina, provavelmente espanhola, Sneaky personifica um dos maiores percalços de quem vai tentar a vida lá fora: os imigrantes legalizados. Sabendo das condições arriscadas de quem não tem o passaporte (ou o Green Card), ele - e outros - exploram ad nauseum os trabalhadores ilegais. Felizmente, a humanidade ainda não perdeu toda a sua... "humanidade". Pra cada Sneaky, existem o patologista Guo Yi (Benedict Wong), o porteiro Ivan (Zlatko Buric) e a prostituta Juliette (Sophie Okonedo). Anjos do caos, curiosamente de nacionalidades diferentes. Pura empatia?


Apesar da pouca atenção dada ao assunto, o diretor Stephen Frears (Ligações Perigosas, Código de Ataque, Alta Fidelidade... o cara é genial), tratou o tema com um profundo conhecimento de causa. Mesmo suspeito, ele não poupou a realidade crua das vielas e guetos do subúrbio de Londres de sua câmera atenta e semi-documental. Que me desculpem os iniciantes, mas um trabalho de veterano a gente vê de longe. A edição e o formato levemente descritivo é um show involuntário. Quem sabe, sabe.

Chiwetel, como o obstinado Okwe, está perfeito. Okwe é um personagem tão bem-resolvido que a gente sente falta dele quando o filme acaba. Um legítimo trabalho de ator não-hollywoodiano. Ator mesmo, daqueles que travam verdadeiros diálogos só com um olhar. Agora - admitindo o meu background filmeiro americano - sua atuação honrada me lembrou muito (em dimensão) o grande Laurence Fishburne de Os Donos da Rua. Audrey Tautou (a mesma de... grrrr, tô tentando, tô tentaaaando...) continua o seu programa de desvinculação, numa personagem sonhadora, corajosa e vítima de um sistema especialista em vitimar. Audrey é uma ótima atriz, com um potencial avassalador, mas quando ela vem com aquele sorrisinho e aquele olhar... Amélie Poulain puro. :)

Coisas Belas e Sujas é rápido (uma hora e meia), mas te persegue por bastante tempo depois que acaba. Principalmente se você já conhece do riscado e revê coisas que parecem absurdas, mas que são reais. E os personagens são tão carismáticos quanto um amigo de longa data.

Vá em paz Okwe, e vê se não perde o endereço que te deram.


Dedicado a ela... e a você, aonde quer que esteja.

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