terça-feira, 11 de abril de 2006

QUE PAÍS É ESTE


"Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está entrando em seu terceiro mandato e falando confiante de uma aliança inquebrantável dos Conservadores no próximo século. Minha filha mais jovem tem sete anos, e um jornal tablóide está circulando a idéia de campos de concentração para pessoas com AIDS. Os soldados das tropas de choque usam visores negros, bem como seus cavalos, e suas unidades móveis têm câmeras de vídeo rotativas instalados no capô. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade e as pessoas já ficam especulando contra qual outra minoria irá legislar. Estou pensando em reunir a família e deixar o país nos próximos anos. Este lugar está virando uma terra fria e hostil, e eu não gosto mais daqui."
Alan Moore, março de 1988

Anos após a publicação original de V de Vingança, Alan Moore ainda penava com o cenário político de sua terra natal. Fascismo imperialista de extrema direita ditando as regras do jogo, em plena Guerra Fria. Reagan e Thatcher caminhando juntos e antevendo um futuro em chamas. Era desse futuro que tratava V, obra clássica que Moore desenvolveu ao lado do desenhista David Lloyd. Apesar de ainda em início de carreira, Moore discorre com maestria sobre temas não-usuais como favorecimento político, massificação e manipulação da mídia (isso te lembra alguma coisa?). Outro ponto que sempre me interessou em V, foi a opção do autor em observar de perto o impacto dessa repressão extrema sobre o cidadão comum. Mais ainda, sobre os próprios agentes do autoritarismo. O tal "elemento humano" que a Máquina é incapaz de processar com exatidão.

V apresentava um naipe de personagens complexos, tridimensionais, cada um enfrentando o seu próprio drama particular. Além de estarem de alguma forma ligados ao status quo, a única relação entre eles era a conseqüência das ações de um terrorista auto-entitulado V (ou "Codinome V"). Nada se sabe a respeito do indivíduo, apenas o que ele mesmo faz questão de deixar claro: travestido de Guy Fawkes (genial idéia de Lloyd, Moore odeia admitir), V faz de sua estréia um tributo ao mesmo e explode as casas do Parlamento britânico. Momentos antes, ele havia trucidado três agentes do governo (policiais à paisana, denominados "homens-dedo") para salvar a desesperada Evey Hammond da morte certa. Isso, logo nas primeiras páginas da graphic novel. A partir daí, Moore traça um painel amargo do que pode acontecer quando as pessoas erradas estão no poder. E faz questão de lembrar que a diferença pode sim ser feita por uma pessoa - ou uma idéia.


Agora, fãs da clássica Vendetta, vamos dar as mãos: que susto levamos, hein. Adaptação cinematográfica hollywoodiana feita no controle remoto por Matrix's Larry & Andy Wachowski? E quando soltaram aquele trailer japonês cheio de caratê e música tecno? Brrrr... gotas frias de suor caindo com efeito bullet-time. Po-rém... pensando friamente, os caras têm sim uma boa experiência no quesito "No Future/Fuck The System" - talvez sejam os profissionais top de linha no assunto atualmente - o que é, sem dúvida, indispensável para dar vazão à abordagem emputecida que Moore impregnou no texto original. E o diretor James McTeigue se mostra um controle remoto daqueles do tipo "universal", hiper-versátil. É dono de uma bela folha de serviços em blockbusters, como diretor de 2ª unidade e diretor assistente (em dois episódios de Star Wars e nos três, oohh... Matrixes), o que, categoricamente, não quer dizer porra nenhuma.

Mas nem tudo foi baixa expectativa. Acho humanamente impossível algum admirador de V não ter comemorado a inclusão de Natalie Portman no cast. Quase não consigo imaginar outra atriz melhor no papel de Evey (quase). A aura inocente, a jovialidade (aparentemente eterna), o olhar mezzo estarrecido mezzo intrigado, e, claro, sua beleza natural irresistível, seja pra homem, mulher ou GLS (desafio qualquer um a não ser um natalieportmanssexual). E ela ainda tem um background interessante com esta motivação em particular. A primeira vez que vi Natalie foi em O Profissional, aquela belezura de filme em que ela, ainda molequinha, fazia um mix de mocinha-em-perigo com sidekick de uma força da natureza ambulante, encarnada pelo Jean Reno. Juntos, eles enfrentavam a personificação de um sistema caótico e corrupto - o melhor papel de vilão do Gary Oldman. E ela roubou a cena dos dois. Perfeita. Já estava preparada para este papel desde aquela época. Tá contratada.

"Não há carne ou sangue dentro deste manto para morrerem. Há apenas uma idéia. Idéias são à prova de balas."
Codinome V

Uma pequena confissão: após meses acompanhando os percalços da produção, não sei porquê cargas d'água, acabei entrando no cinema sem a mínima idéia de quem interpretaria V. Incrível. Pode ter sido apenas uma monumental falta de atenção, mas prefiro acreditar que foi influência direta da revista, que minimizava ao zero absoluto a importância individual neste caso (afinal, ele representava, antes de tudo, "uma idéia").

Corta pra hq novamente (pulem esta parte, desafortunados que ainda não leram V... há spoilers aqui):

Quando li V pela primeira vez, eu já estava tão embriagado por aquele ideal libertário, que cheguei a torcer para que Evey não retirasse a máscara de V, já moribundo. No começo, é claro que estava curioso pra saber como ele era. Mas depois de toda aquela dicotomia revolucionária e subversiva, - e já totalmente "convertido" - fiquei com medo de virar a página e me sujeitar à uma desmistificação abrupta daqueles conceitos - que passei a tomar como preciosas informações. Ou que isso acarretasse o fim daquela viagem (cacete... Moore e seus argumentos que transcendem o final físico da história. Espero que este legado esteja sendo bem rateado por aí, pois de uns dias pra cá ando pensando muito nisto).


Hugo Weaving talvez não tenha o timbre de voz que eu imaginava (detalhe que, neste personagem, leva uns 90% do carisma). Pra mim, seria algo mais suave e melodioso. Em todo caso, até pelo tom áspero e o fôlego filhadaputa, a já conhecida mis-en-scene vocal do ator garantem a diversão (pô, a caricatura que ele fazia com o Agente Smith era demais)... e insólita, diga-se. Recitar riminhas complicadas pouco antes de deitar uns seis na mãozada é digno daquela reprise de Laranja Mecânica. Ultra-violência shakespieriana! Felizmente, as cenas de luta são filmadas de maneira digna, sem muitas novidades modernosas. Aqui não há nenhum pulinho, seguido de loop em 360º e chutinho que joga algum infeliz pra longe. As lutas são honestas, as facas são altamente letais (e estavam na hq... são faquinhas super-idôneas!) e as coreografias são decentes (a melhor foi a da fuga na estação de TV). Pero hay que endurecerse... a seqüência final foi inegavelmente matrixiana. Não que eu vá ignorar o que isso tecnicamente ofereceu de bom até certo ponto, mas ver as faquinhas girando em slow-motion-querendo-ser-bullet-time me irritou sobremaneira. Preciosismo altamente dispensável.

O produtor Joel Silver andou falando que Alan Moore só ficaria satisfeito com o roteiro se cada palavra do texto original fosse transcrita. Quem dera. Mas o trabalho de adaptação foi respeitoso em relação ao conceito, e, ao mesmo tempo, pra lá de ousado. O resultado foi bastante funcional. Os puristas vão engasgar com a pipoca devido ao efeito impiedoso da condensação e com a semi-inversão na ordem dos acontecimentos (disto eu gostei muito). E os cortes? O supercomputador Destino não aparece, assim como a obsessão do Líder Sutler (o grande John Hurt, desperdiçado). Também não aparecem personagens-chave que fizeram toda a diferença, como a ambiciosa Helen Heyes e a vitimizada Rosemary Almond. O assassinato de Lewis Prothero - ex-"Voz do Destino", rebatizado "Voz de Londres" - foi relegado à uma seqüência padrão que passa longe daquela maravilha ritual vista na hq (aquilo sim era uma vendetta!). Já Gordon Deitrich não pega Evey (muuuuito pelo contrário...), justamente pra não ofuscar uma infeliz opção do roteiro quase na reta final. E Stephen Rea, um ator que eu admiro muito e também nem imaginava que estaria em V, caiu como uma luva no papel de Edward Finch - papel este que seria memorável, caso não tivesse um final tão alterado.


Mas o que aparece transposto literalmente chega a ser emocionante. O processo de "purificação espiritual" a que Evey é submetida ficou uma beleza (e prova que Natalie Portman fica bonita até azul com bolinhas amarelas). As cenas e os flashbacks relacionados à carta sufocante de Valerie ficaram perfeitas, talvez o auge dramático do filme. Ótimas as seqüências de V despachando a amargurada Doutora Delia e o repugnante Bispo Lilliman. Irretocáveis.

Eu defendo até a atualização da geopolítica envolvida. Muito se fala que as referências ali são ao W. Bush way of life, e são mesmo. Fazer o quê, se a Inglaterra andou importando alguns mal-costumes de sua ex-colônia (vide a co-autoria na invasão ao Iraque e o caso Jean Charles)? Não que isso vá acontecer com eles mais pra frente... não apenas com eles. Hoje, esta não é apenas uma visão do futuro da Inglaterra, mas do mundo. Inclusive nós aqui. Sem querer soar condescendente... estamos num país onde milhões de dólares são saqueados de cofres públicos e políticos assumidamente corruptos se beneficiam de acordos para evitarem a cassação, enquanto uma doméstica desempregada fica cinco meses na cadeia por roubar um pote de manteiga. Não se engane, neste exato instante, vivemos no universo de V. Mas em breve teremos mais uma chance de mudar algo - não através da força, ainda bem.

"O povo não deveria ter medo do seus governos. Os governos deveriam de ter medo de seu povo."
Codinome V²

Temos muito o que aprender aí, com todos estes acontecimentos e informações disponíveis, com este filme e seu final apelativo e populista. O pedido por indignação e contestação se confirma quando os créditos sobem ao som do clássico stoneano Street Fighting Man - uma ode ao cara que vai às ruas lutar pelo que acredita. A palavra de ordem não é mais "acorde", e sim "reaja". Nada mal em se tratando de uma mega-produção hollywoodiana.

A revolução definitivamente não será televisionada.

3 comentários:

Anônimo disse...

Inglaterra Triunfa!

doggma disse...

Confesso que estava meio empolgado demais quando escrevi esse aí, mas sim, Inglaterra Triunfa!

Anônimo disse...

E como não se empolgar?
Só não gostei da síndrome do Cavaleiro das Trevas. Parece que tentaram dar um look de Batman no V.