Edição split: Connelly Begins x Motorista Fantasma


O italiano Dario Argento já estava muito no lucro quando realizou Phenomena (idem, Itália, 1985). O filme foi precedido pelo cult Profondo Rosso, de 1975, pelo hit subterrâneo e masterpiece do giallo Suspiria, de 77, por Inferno, de 1980, e pelo casca-grossíssima Tenebrae, de 82. Uma quadra gótica de dar inveja à qualquer aficcionado e que ainda será descoberta e regurgitada pelo circuitão como se fosse algo recém-inventado por algum "visionário" de Hollywood...
Mesmo inserido em um traçado final que Argento arquitetou - concluído por Opera, de 87, e Trauma, de 93 - Phenomena talvez tenha sido o primeiro passo para uma concepção mais acessível das pirações dark do cineasta. De muitas maneiras, estava conectado ao que andava sendo feito de moderno em thrillers de horror na época - cujas diretrizes básicas foram fornecidas em grande parte por ele mesmo (e Fulci, Lenzi, Bava, Avati...). Em tudo ali, Argento soava mais dinâmico, atual.
Indo tão fundo quanto a poça que meu café fez aqui, o cinema de Argento e Sua Gangue foram essenciais para retirar o terror do estágio trash-exploitation patrocinado por Roger Corman e os condes romenos da Hammer Films.

Jennifer Connelly, além da... do... ah, de tudo... esta mulher é... já exibia timing, carisma e maturidade absurdos em cena. E charme. Valha-me Deus. Sua participação em Phenomena excede o espaço reservado à sua personagem e o arquétipo que ela possa representar - mas já retorno ao ponto.

A premissa era um mix dos elementos mais caros à cinematografia de Argento, sendo que a primeira metade remete a uma estética de suspense slasher e a segunda ao horror surrealista enegrecido por uma pesada atmosfera onírica (já dizia John Carpenter que assistir Argento era como "estar preso num pesadelo"). No primeiro ato, uma jovem dinamarquesa (Fiore Argento, filha do diretor) perde o ônibus e acaba se perdendo também. Procurando por ajuda, a menina vai parar numa casa de campo, onde é recebida na base de correntes e tesouras. A seqüência é bastante tensa, sendo finalizada de maneira crua, chocante, mesmo para os padrões atuais ("Se o cara faz isto com a própria filha, que dirá com o resto" - dogg, filósofo malaio) - por outro lado, a beleza técnica da cena é inegável... nada se compara a um bom exercício de hiper-realismo, ainda que o realizador seja dado ao surrealismo (trocadilho realmente ruim).
No filme, Connelly também é Jennifer, só que Jennifer Corvino, filha de um famoso ator americano, que é enviada à Suíça para estudar num renomado colégio internacional para moças. Logo que a menina chega ao país do sigilo bancário, vemos que ela tem o estranho dom de interagir telepaticamente com insetos. E também sofre com pesadelos tenebrosos e um tipo de sonambulismo hardcore (daqueles de levantar dormindo, ir pra guerra e voltar a tempo do café da manhã). No colégio, ela divide o quarto com Sophie (Federica Mastroianni), uma francesa bobinha mas ordinária com quem rapidamente faz amizade. No entanto, a recepção das demais alunas não é nada hospitaleira e Jennifer já chega batendo de frente com a coordernadora da instituição, a Sra. Frau Brückner (vivida por Daria Nicolodi, ex-esposa do nepotista Dario). Pra completar o cenário, estão ocorrendo vários assassinatos hediondos na região.

O tempo começa a fechar quando as alunas do internato se tornam os novos alvos do serial-killer. Ao mesmo tempo, as crises de sonambulismo de Jennifer ficam mais intensas e parecem estar ligadas sensorial/paranormal/mística/darioargentamente ao frenesi dos assassinatos.
Mas isto é na primeira hora. Depois a coisa parte pro giallo-core de sempre.


Falando no sobrenatural, não há o que reclamar sobre a exploração dos poderes de Jennifer no filme. Os mesmos são utilizados ao máximo de sua capacidade e assim Argento acabou criando uma perfeita (e igualmente poderosa) contraparte para a ameaça do assassino. Nenhuma chance foi perdida aqui - com o tempo e o aprimoramento, a menina se torna a Fênix Negra dos insetos. E isto não é apenas uma referência en passant: não sei bem porque, mas desconfio que Jean... digo, Jen, iria se adaptar muito melhor numa certa escola em Westchester, NY, do que aquela na Suíça. Se a coincidência for pouca, confira as cenas em que o Professor... hã, McGregor ensina a Jen como controlar seus poderes e o macete pra sair do estado de sonambulismo.

Nas duas últimas longas seqüências do filme, o climão de pesadelo generalizado toma conta e Alice, digo, Jennifer, vai descendo até o ponto mais baixo do inferno. Impressionante como ela ainda consegue manter um fiapo de sobriedade diante das situações tenebrosas que passa. Ah, mas isto só dura até o mergulho numa vala escrotíssima cheia de cabeças, membros decepados, tripas, vermes, coliformes e detritos diversos. Perto disto aqui, a chuveirada de suínos em decomposição de Saw 3 é como dividir uma hidro com a Hellen Ganzarolli. Mal deu pra acreditar que ela caiu ali mesmo.
Daí pra frente, alguns lugares-comuns do gênero surgem quase que de forma caricatural, incluindo o final fake, à Jason Voorhees do primeiro filme, e um inusitado final-pra-valer, que combina bizarria e violência gráfica extrema.


E sim, há várias outras questões sobre Phenomena a serem debatidas fervorosamente, mas a mais contundente é esta: Jennifer Connelly foi rainha do grito em seu primeiro filme como protagonista (engula esta, Jamie Lee Curtis!).
Jennifer já era uma gigante em cena. Sua atuação era um diamante quase lapidado, demonstrando a mesma carga de sensualidade, inteligência e certa introspecção que se vê hoje. A atriz literalmente brinca de empilhar as convenções estilísticas do filme. Mesmo porquê, o cinema de Argento é extremamente hermético, autoral, segmentado por opção - basta ver os diálogos dela com as travadinhas Sophie e Sra. Brückner... a menina passeia livre em cena. Elegante e sagaz, Connelly nunca se entrega ao preciosismo e veste a camisa sempre que necessário. Um show. Só a presença dela já faz valer a assistida.

Infelizmente, a carreira internacional do filme recebeu um duro golpe ao ser lançado nos Estados Unidos. A censura da época - mais slasher que nunca - mutilou quase trinta minutos da produção e o lançou com o não-poderia-ser-mais-genérico título "Creepers". No Brasil, o título original foi mantido, mas a cópia era a mesma editada nos EUA. Só em janeiro de 2006, a versão integral finalmente foi lançada aqui, em DVD, via Works Editora, encartado na edição #6 da revista Cine Monstro.
A trilha sonora de Phenomena é foda. Pra caralho. Argento não titubeou e meteu a antológica Flash Of The Blade, do Iron Maiden, quase inteira durante uma seqüência em que o assassino caça uma vítima. Lá pelas outras tantas, foi a vez da descarrilhante Locomotive, do Motörhead. Motör-fuckin'-head, man. Ficou parecendo um daqueles clipes incidentais de Donnie Darko, só que pra macho. Genial.
E não pára por aí. Bill Wyman, ex-baixista dos Stones participa com uma trilha de arrepiar e Claudio Simonetti também está lá. Simonetti (nascido em São Paulo), que todo fã de horror deveria conhecer, foi tecladista no dino progressivo Goblin, onde compôs para outros filmes de Argento, além do inesquecível tema do mega-clássico Dawn Of The Dead, de George A. Romero, entre outras belezinhas memoráveis. Não é à toa que vários grupos heavy, gothic e prog metal devem as calças pro cara. Influência melódica primordial.
O tema principal de Phenomena também ganhou um "pseudo-clipe", que Simonetti fez entre as gravações do filme. Visto hoje, é tosco no último - como todo clipe daquela era recém-MTVitimizada, aliás. Mas sabe como é... música pronta, câmeras ligadas, cenário em cima, Jennifer Connelly lá de bobeira...
Recentemente, Simonetti fundou a banda Dæmonia, que faz releituras metalizadas para os clássicos que ele compôs para o cinema. O projeto é imperdível.
Próximo!


Lembro como se fosse ontem: meu sonho de consumo adolescente eram o Ford Falcon V8 Interceptor do Mad Max, o De Lorean DMC-12, óbvio, e o Dodge M4S Turbo, de The Wraith, a Aparição (The Wraith, EUA, 1986). Muitos anos depois, ainda não sou milionário e mesmo se fosse, dificilmente conseguiria adquirir este último. Como se tratava de um modelo conceitual, a Dodge só fabricou 1 unidade original (na época, pela bagatela de 6mi US$) e mais seis clones (1mi US$, each) devidamente destruídos durante as filmagens. Desde então, o Pontiac '82 preto da Supermáquina subiu uma colocação na minha lista.
The Wraith é o patinho bonito da filmografia do diretor/roteirista Mike Marvin. O cara simplesmente não fez nada que prestasse depois deste filme, chegando a dirigir até um daqueles pornôs soft reprisados à exaustão no Cine Band Privé. Aqui, no entanto, ele soube dosar energia, boas sacadas e despretensão na medida certa, resultando num filme bastante divertido, mesmo descontando as oitentices típicas (que, por mim, tudo bem).
Aliás, The Wraith não é exatamente um filme de terror, nem suspense, nem sci-fi e nem ação, mas traz características de todos estes gêneros em seu DNA, fluindo simultaneamente. E funciona como um ponto a favor, pois durante o tempo todo se espera uma postura pré-definida que nunca chega e se amarra de forma ainda mais curiosa. Fora que mantém o sensorial sempre no full mode.
Dá quase pra elogiar esta concepção descompromissada (mas não desfocada) da narrativa, só que, pela ficha corrida do diretor, imagino que foi involuntário mesmo.


Em geral, eles "propõem" um racha aos motoristas incautos, valendo o carro do perdedor. Mas isto é só por diversão, já que os bad guys, além de serem trapaceiros assassinos, têm os motores mais envenenados da região. Seus carros já eram tunados antes mesmo de inventarem o termo. Na cola dos punks, está o Xerife Loomis (Randy Quaid), que sempre come poeira atrás de um flagrante e está investigando o assassinato de um rapaz, possivelmente morto pela quadrilha.

Tudo se encaminha para mais um homicídio providencial, até que um misterioso carro preto com turbina de F-15 e design futurista surge reivindicando a supremacia das estradas - e jogando bem mais pesado que os vilões. A partir daí, sobram cadáveres, acidentes espetaculares e muito aço retorcido.


Ele pode ter vindo do céu (acho que não), do inferno (acho que sim), pode ter sido um fusquinha 76 abduzido e tunado com tecnologia alien, pode ser um projeto secreto do governo americano (eles fazem de tudo lá), pode ter vindo do futuro (exatamente, acabaram as idéias)... é só escolher. Qualquer hipótese faz sentido porque as pistas que Marvin vai deixando durante a história não fazem o menor sentido.

Quanto ao motorista propriamente dito, há pouco o que se revelar. Ele aparece algumas vezes, usa um tipo de armadura bio-mecânica e traz consigo uma arma com luzinhas vermelhas que lembra muito uma calibre doze, dispara igual a uma calibre doze e faz o mesmo estrago que uma calibre doze faz. Fui levado a crer que se trata de uma calibre doze sobrenatural.

A corrida inicial rola ao som de Secret Loser, do madman Ozzy Osbourne. Depois tem a Rebel Yell, do papito original Billy Idol, o hit yuppie Addicted To Love, do magnata Robert Palmer, Matter Of Heart, da açucareira Bonnie Tyler, a poseríssima Never Surrender (LOL), do Lion (ROTFLOL), entre muitas outras pérolas pra ouvir no walkman, com o sol a pino, camiseta regata e óculos espelhados.


A propósito, se pensarmos que o possante de O Carro - A Máquina do Diabo é o Hannibal Lecter dos automóveis e Christine, o Carro Assassino é a personagem de Glenn Close em Atração Fatal com tração nas quatro ("A Tração Fatal"), o dodjão preto é o próprio Terminator. Ele mata a sangue frio e sem qualquer cerimônia. O que ele faz no galpão-oficina dos bandidos só pode ser coisa da Skynet. Extermínio automobilístico.
É muito engraçado ver o Nick Cassavetes fazendo papel de galã psicopata no filme. Mais engraçado ainda é o Charlie Sheen como um californian boy metido a fodão, com cabelinho arrepiado e montado numa jurássica XL (que, pelo visto, também é sobrenatural). Naquele mesmo ano ele encarnou um papel que era o total oposto - o junkie de Curtindo a Vida Adoidado. Hoje, fatura os tubos em Two and a Half Men.
Só para registro, sempre fiz uma baita confusão com os nomes de Sherilyn Fenn e Sheryl Lee. Em comum, as duas têm o fato de serem gostosas e musas do David Lynch (participaram de Coração Selvagem e da polêmica Twin Peaks - Fenn era a Audrey e Lee era a própria Laura Palmer, raison d'être da série). E tanto uma quanto a outra amargaram um limbo de produções trashescas durante os anos 90. Atualmente, Sherilyn (uma bela balzaca!) leva uma carreira discreta, com participações esporádicas em seriados famosos e produções made for TV (última frase powered by IMDb®).
The Wraith, a Aparição ainda rende boas sessões até hoje. Como todo bom pop movie. Mas adoraria que o maldito Mike Marvin respondesse algumas perguntas.
Como assim "as instruções estão no porta-luvas"?!
Na trilha: Cars, do Gary Numan.