Nobel de Física em 1933, o austríaco Erwin Schrödinger foi autor de algumas das bases essenciais da Mecânica Quântica, notadamente na equação que leva seu sobrenome. E é também o grande arquiteto por trás da aguardada, adiada, quase mitológica, última edição de Planetary, a fantástica aventura de Warren Ellis e John Cassaday pelos espólios da história humana. Já vimos séries atrasarem, outras atrasarem mesmo e outras atrasarem pra valer, mas como Planetary não teve igual. Foram parcas vinte e sete edições em dez anos - começou bimestral em abril de 1999, foi suspensa no período 2001-2003, retornando esporadicamente sempre que as agendas de Ellis e Cassaday davam uma folga. E assim foi até a atual #27, lançada com um gap de três anos desde a última edição (outubro/2006).
Dessa forma, cada novo capítulo lançado era algo especial lá fora. E, para os leitores brasileiros, quase um evento (um evento fechado num clubinho ultrarrestrito, mas ainda assim um evento). Após uma pífia tentativa de periodicidade pela Pandora Books, a série foi compilada em dois encadernados pela Devir (Mundo Estranho e O Quarto Homem). Em seguida, a Pixel Media retomou o título do ponto onde a Devir parou, finalmente alinhando a série com a cronologia estática lá de fora. O que foi, provavelmente, a única incursão 100% bem sucedida da Pixel Magazine durante seu tempo de vida.
Com os títulos da WildStorm agora sob a tutela da Panini, Planetary se encontra atualmente nos planos a longo prazo da editora (que, nesse primeiro momento, publicará do selo apenas Frequência Global). Segundo o Oggh, Planetary será uma das séries que a Panini "dará sequência" - o que é ótimo, mas... só falta mais uma edição para ser lançada. Não seria melhor desancar isso logo de uma vez?
Ou que tal fazer um esforço em nome do bom gosto e relançar tudo desde o início naqueles TPB's Deluxe que ficam lindos meio tombados na estante? Eu compraria.
Planetary #27 fecha com chave de ouro a saga dos arqueólogos do impossível. Funcionando mais como um epílogo do clímax que foi a edição anterior (com a vitória/vingança definitiva de Elijah Snow sobre Randall Dowling, dos Quatro), a conclusão pode não ser tão espirituosa e evocativa quanto foi a de Y: The Last Man, mas, sem dúvida, é tão emocionante quanto.
De fato, essa é sua maior característica: emocionar mesmo naquele oceano de retórica e racionalidade impostas pela presença gigante de Snow. Até a durona Jakita aparece bastante fragilizada em determinado momento. Contudo, a edição pertence mesmo ao Baterista. Ele é o condutor da trama, despejando compulsivamente toneladas daquela fringe science que se tornou a especialidade de Ellis após todos esses anos. Só que o McGuffin da vez é virtualmente inalcançável, reluzindo num terreno extremamente arriscado, até para os padrões do Planetary.
É nessa hora que eles mergulham de cabeça em mais um dia no escritório, imbuídos pela velha dedicação suicida e o foco obsessivo, supermotivados pela única crença de Snow: "Esse é um mundo estranho. Vamos mantê-lo assim."
Schrödinger é quem dita as regras nessa reta final. Por ironia, o bom doutor tem seu experimento mais pop e surrealista - o Gato de Schrödinger - convertido por Ellis numa espécie de força da natureza destruidora de multiversos. O certo é que a teoria, em princípio até lúdica, nunca foi visualizada nesse ângulo tão hardcore. E isso garante um longo solo do Baterista.
Spoilers
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Nada mais justo do que encerrar (em definitivo?) a trajetória do Planetary resgatando um antigo membro. Ambrose Chase nunca saiu dos planos de Elijah Snow, se tornando uma citação recorrente ao longo das edições. Ellis já vinha rascunhando esse timing há tempos, sem sombra de dúvida. Por isso a cena-referência em Planetary #24 soa tão genial agora.
Recapitulando, Chase foi aparentemente morto em missão (Planetary #9), numa sequência altamente sugestiva.
Isso foi em abril de 2000. O que impressiona - além da pegada cinematográfica de Cassaday - é a criação consciente do "plot Ambrose", deixado em aberto para ser revisitado apenas na edição final. Coisa linda de ler.
O gancho relacionando a natureza dos poderes de Chase com o dilema temporal foi muito bem sacado. De uma libertinagem criativa meio trekkie, até.
O uso do Gato como recurso dramático é avassalador (bem como o fato de, após 1 ano, só terem mapeado 20% do banco de dados de Dowling). Uma viagem temporal que pode sugar e colidir todos os futuros possíveis de volta ao segundo em que a máquina do tempo foi acionada é o pesadelo de H.G. Wells. Você viaja até o futuro ou os futuros possíveis infinitesimais viajarão até você? Levando em conta que as partículas subatômicas - a matéria-prima da Mecânica Quântica - são afetadas pela observação, parafraseio o Baterista: qual a razão de tudo acontecer se já aconteceu? O colapso total seria inevitável.
O que tornaria injustificado o De Volta para o Futuro 2 (heresia!), mas que também coincide com a lógica do filme. Segundo o Batera, uma máquina do tempo só pode deslocar alguém até o ponto onde uma máquina do tempo foi ligada pela primeira vez (princípio da causalidade, discorrido quase didaticamente no ótimo thriller espanhol Los Cronocrímenes). Então, esse limite não se aplicaria ao DeLorean mais famoso do cinema - não importa onde no passado, ele sempre será a máquina do tempo ligada pela primeira vez.
A história também pode ser encarada como mais uma referência de Ellis aos comics americanos. Dessa vez, não a algum personagem, mas a um lugar-comum (Chase, o herói "ressuscitado"). Obviamente, com a inteligência e a classe que faltaram aos universos - e aos escritores - tradicionais.
A publicação errática ao extremo se tornou uma tradição de Planetary com o passar do tempo. Acabei me acostumando. E imagino que quem chegou até aqui também. A revista mudou bastante desde aqueles primeiros números, como que traçando uma grande analogia à nossa própria vida nesses últimos dez anos. Muitas coisas aconteceram desde então. Entre uma e outra, uma nova edição aparecia de repente e sempre encontrava seu lugar.
A viagem chegou ao fim e a ficha ainda não caiu - nem sei se vai. Planetary é fora do comum até pra fazer falta.
Obrigado Ellis, obrigado Cassaday.