Todo cuidado é pouco com o que é dito hoje em dia. As ideias mais absurdas podem escapar do picadeiro e virar realidade numa escalada atordoante. Tem nego virando presidente desse jeito. E foi assim com
Zack Snyder's Justice League, o outrora
mítico Snyder Cut. O ponto zero foi quando os fãs da filmografia dele à frente das produções
DC, inconformados com o
Josstice League, viralizaram a famosa hashtag. Em seguida, o diretor começou a jogar verde em sua conta no Vero. O
"Team Snyder" ganhou corpo quando
Jason Momoa,
Gal Gadot e até
Ben Affleck retuitaram em coro. Da noite pro dia, o Snyder Cut ganhou contornos de Snyder
Cult. Mas foi com
Ray Fisher desancando
Joss Whedon em praça pública que o processo deu aquela turbinada. O filme virou algo a ser visto (assim como alguns bocós a serem eleitos) para finalmente esfregar na cara desse mundo ingrato o que ele perdeu.
Claro que a
Warner já havia endossado a recauchutagem da produção há mais tempo que isso. Afinal, rolou ali uma aditivada de 70 milhões de doletas e, até onde sei, o Coringa do Heath Ledger não inspirou nenhum acionista da empresa a queimar montanhas de grana. Pode crer que antes de qualquer anúncio muitas horas de PowerPoint rolaram no financeiro.
Findos os trâmites burocráticos e conferido o resultado,
arram, originado na
HBO Max, o novo
Liga da Justiça atropela a 1ª versão (o que convenhamos, não é mérito algum). É, fácil, o
melhor filme do Zack Snyder no DCEU - considerando que
Watchmen não pertence ao segmento.
Mas, de novo, é filme de autor. E esse autor é Zack Snyder.
(Pensando bem, até o cinema do Michael Bay é "cinema de autor". E nem precisamos do nome dele estourando retinas no título para reconhecer o istáile)
Sob sua administração, o termo "Snyderverse" é bem mais acurado que "DCEU". É o extremo oposto do padrão de adaptações proposto pelo
Guillermo del Toro de tempos idos e que deveria ter sido canonizado e tombado como patrimônio pop cultural obrigatório.
Talento nunca foi o problema: ainda acho bacanudos o
Dawn of the Dead hardcore, a rinha de corujas de
A Lenda dos Guardiões, o capa & espada YMCA de
300, o citado
Watchmen sem lula alien fake e, provavelmente sua mais elegante e visionária obra que um dia uma raça superior descobrirá e dará o devido reconhecimento, o videoclipe de quase duas horas
Sucker Punch.
Sem contar os
superpunchs do caótico
Homem de Aço, provando que o negócio do Zeca é a (troc)ação.
A dorsal da história, co-escrita por Snyder,
Chris Terrível... opa,
Terrio e
Will Beall, permanece intocada: é a mesma disputa dos heróis pela posse das
Caixas Maternas contra as investidas do representante
Lobo da Estepe, louco para limpar sua barra com o gerente
Darkseid lá na matriz
Apokolips. Se o conteúdo segue sem alterações em relação à Liga 2017, a forma é bem diferente.
Apesar da resolução em 4:3 para assistir na
Admiral da sua vó (vai dizer que acreditou que
era pro IMAX) e da divisão das
4 horas do filme em 6 capítulos revelarem a fina habilidade do diretor de lamber sua própria caceta em rede mundial, é verdade que ao menos 40% dessa pretensão é convertida em relevância na tela. Todos os personagens ganharam mais fluidez, desenvolvimento e contextualização, para mais (
Cyborg) ou para menos (
Aquaman). De fato, Vic Stone é quem mais se aproxima de algum protagonismo, mas não chega a guiar o espectador pela trama, como qualquer roteiro mais malandro faria. Ajudaria uma grandeza se Ray Fisher fosse melhor ator.
Já o
Superman é o verdadeiro MacGuffin dos 5/6 iniciais do filme (vixe). Teve mais tempo para reviver, fazer um amistoso do time do sem-camisa contra o time dos superamigos, curar a ressaca-monstro e juntar os cacos de memória nos bucólicos cafundós do Kansas com uma terapia intensiva de cafunés de
Lois Lane e de sua mãe
Salve Martha. Insípido toda vida no papel,
Henry Cavill encarna aqui o Azulão (ou seria Escurão?) em sua melhor versão do que é, sem nunca ter sido.
A
Mulher-Maravilha, por sua vez, teve poucas e pontuais alterações. Foram para a lixeira o
infame papai-e-mamãe com o Flash e os seguidos closes na bunda da Gadot presentes no Gross Joss Cut. Mesma coisa com o
Batman - não o bundalelê, infelizmente. Não sei se foi pelo bate-bola extra com o
Alfred do genial
Jeremy Irons, mas parece que Affleck está genuinamente à vontade e se divertindo com o personagem, pela 1ª vez. E desejar isso pra alguém vestido de Batman é pedir o mínimo, pela sua própria sanidade mental.
Difícil mesmo é fazer algo que salve o Flash do
Ezra Miller, que, quando não está
esganando moçoilas islandesas, mostra como
não se corre em frente a uma câmera. Tem duas boas tentativas: o salvamento de sua futura namorada
Iris de um acidente de trânsito, numa sequência melosa, esquisita (ah, aquela salsicha) e interminável; e mais ao final, num momento que remete brevemente à icônica cena de sacrifício do Barry Allen em
Crise nas Infinitas Terras. Melhora um pouquinho a impressão geral. É só não lembrar da tranqueira que é aquele uniforme. Ih, é mesmo. Tsc, aaah...
Preciso confessar que curto o Aquaman Czarniano e achei acertada a manutenção dos diálogos-ponte com seu filme solo. Até dá pra fazer vista grossa para o skysurfing usando um parademônio como prancha. O que não dá pra passar batido é o visual do Cyborg, que continua um Megatron(bolho) altamente distrativo no pior sentido. Tanto que o personagem fica muito mais interessante e cativante quando é autoprojetado de corpo inteiro em ambientes virtuais, numa boa sacada conceitual do diretor.
E realmente não precisava da ceninha "olha o Homem de Ferro aprendendo a voar em 2008". Toma vergonha, Snyder.
Se a edição mandou todas as bobagens do Whedon pra ponte que caiu, muita coisa do próprio Snyder podia ter ido também. A estreia de
J'
onn J'
onnz, o
"Martian Manhunter" (
hmm...), esculhamba completamente o único momento em que Snyder consegue ser emocional sem ser brega. Surreal. A sequência inteira do resgate dos cientistas nos subterrâneos de Gotham é bem fraca, especialmente a cena em
ultramegapowerslow motion do Flash ajudando Diana a alcançar sua espada durante uma queda (para... literalmente... nada!), a parte em que os heróis correm um sério risco de morrer
afogados e o pavoroso batveículo
Nightcrawler (prefiro o Kurt Wagner), tão viável e eficiente quanto os veículos do desenho do He-Man. Desculpa aí, Tanque de Ataque, tu era gente boa.
Claro que não podia deixar de mencionar outro TOC Snyderiano: as músicas. Tem que ter, claro, mas não precisa ser uma jukebox. A escolha dos temas sincronizada com as cenas soa tão expositiva quanto um recordatório do Chris Claremont – mais ainda, porque os caras estão literalmente
falando o que está acontecendo... Nick Cave cantando
"há um reino, há um rei" enquanto Aquaman caminha num píer é o cúmulo da obviedade. E, numa menção desonrosa, enche o saco a
voz feminina cantando ao fundo toda vez que a Mulher-Maravilha resolve partir pra porrada.
Mas também tem coisas legais, como as mulheres do vilarejo cantando enquanto Aquaman retorna ao mar, demonstrando o nível da reverência e da adoração daquele povoado pela figura do relutante monarca. Boa.
Por fim, as cenas com a família russa foram sabiamente limadas e o ato final foi reformulado como um bloco mais coeso e focado. A luta decisiva contra Lobo da Estepe (que ganhou um tapinha no CGI) não chega a ser ruim, mas fica a dever. Ainda mais em comparação com sua eletrizante campanha em Themyscira. E a introdução de Darkseid – com visual quase OK e tronco emborcado – ficou surpreendentemente climática e bem elaborada, arrematando com a cena arrepiante do vilão e os heróis se encarando em silêncio através do portal. É a vitória do "menos é mais" sob condições adversas.
Porém, como uma espécie de assinatura artística do diretor, ele mesmo decide contrabalancear a boa impressão com os epílogos mais prolixos do universo conhecido. Dá pra entender a piscadela para uma incerta continuidade no encontro entre
LeLex Luthor e
Exterminador. O que não dá pra entender é a fixação no
Coringa faz-de-conta do Jared Leto chegando a tal ponto que rende a cena mais constrangedora do ano (sim, eu sei que ainda estamos em março). Quer Coringa, Batman, Liga e o Superman boladão num cenário pós-apocalíptico, reveja o
cinemático do DC Universe Online. E desapega de vez.
O que realmente impressiona nesse
Liga da Justiça é a rara (
raríssima) oportunidade de correção histórica dentro do cinema blockbuster. Mesmo com os vários problemas e idiossincrasias, Zack Snyder entrega um
bom filme da superequipe mais emblemática dos quadrinhos – também, só me faltava passar
uma tarde inteira assistindo um filme meia-boca ou, pior, um novo
Batman v Superman. Mais legal ainda é ele ter tido essa chance, por todas as dificuldades pessoais e públicas inimagináveis que atravessou nos últimos anos.
Um pouco de justiça poética, pra variar.