quinta-feira, 23 de junho de 2022

Caçada inesquecível


Caçada (Hunter Hunter, 2020) estava disponível na minha fila de filmes desde o dia um. Após o lançamento, quando pipocaram os primeiros burburinhos embasbacados, o promovi e joguei na pasta de prioridades. Mas, por algum motivo que só a minha procrastinação pode explicar (depois), fui conferir a produção apenas esses dias, à fórceps e em grupo. E até agora estou (estamos) juntando os cacos e administrando o inevitável TEPT. Porque o longa dirigido, escrito e coproduzido pelo canadense Shawn Linden é impiedoso com a sanidade alheia.

O que me chamou atenção primeiro, confesso, foi a escalação de Devon Sawa e Nick Stahl, duas figuras que já sentiram o gostinho dos holofotes e que há tempos vagam proscritos pelas searas do terror e do suspense. O primeiro encarnou a forma humana do Gasparzinho logo no início de carreira e atraiu atenção quando estrelou o terrir A Mão Assassina e o 1º filme da série Premonição. Já o segundo, se destacou no início dos anos 00 numa levada promissora de casts: foi o John Connor em O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas e o psicopata Ethan Roark Jr., o "Assassino Amarelo", de Sin City, além de protagonizar a macabra e subestimadíssima série Carnivàle, da HBO. Não é a primeira colaboração dos dois, mas ainda não deixa de ser pitoresco.

Na premissa, uma família luta para se manter em tempos difíceis numa região selvagem nos cafundós do Canadá. Joseph (Sawa) é um irredutível seguidor de uma linhagem ancestral de caçadores. É modelo e inspiração de vida para sua filha adolescente Renee (Summer H. Howell) — e é só o que ela conhece mesmo da vida. Sua mãe Anne (Camille Sullivan) é a única que almeja um retorno à cidade, dividida entre a vida dura que escolheu ao lado do homem que ama e em apresentar Renee ao mundo do qual ela foi privada. Um mundo mais seguro, menos sofrido e repleto de opções. E, em meio aos questionamentos, uma terrível ameaça espreita pelas redondezas.

Agora já posso escrever sinopses para a America Video.

Infelizmente, não dá para comentar muito sobre Caçada sem sabotar suas melhores qualidades. Na maior parte da metragem, o filme tem aquela pegada quase documental de Homem X Natureza, à Inverno da Alma (Winter's Bone, 2010) e, sei lá, Na Natureza Selvagem (Into the Wild, 2008), com um núcleo pequeno de personagens e locações. É aquele feijão com arroz de mundo-cão-interiorano já conhecido, mas bem temperado. E as atuações levam boa parte do mérito.

Sawa está irreconhecível como o patriarca caçador. Durão, indomável, o sal da terra. Assistiria fácil a um filme só do cara caçando e olha que não sou fã de caçadas. A menina Howell, uma veterana de Chucky's, mostra uma segurança absurda na transição bravura-ternura-fragilidade. Nick Stahl faz um exercício de jogo para o time, interagindo na medida com a atuação de Camille Sullivan. Que é magistral, diga-se.

É impressionante a habilidade de Linden em trabalhar tons cinzentos e pesados de drama familiar/social com suspense psicológico e terror sem perder o foco, patinar em exageros e soluções mágicas. O não-dito exerce um papel fundamental em momentos cruciais e no destino dos personagens. E o roteiro, sempre sóbrio, árido e verossímil, nunca entrega nada tão fácil — mesmo aquilo que você, traquejado de outros carnavais, já vislumbra pelo horizonte. Tudo isso converge como uma perfeita sinfonia de elementos para o final mais brutal que vejo em muito tempo.

Sem dúvida, a "cena com walkman" mais impactante que vi este ano.

Ps: desculpa aí, Kate Bush.

6 comentários:

Do Vale disse...

Esse eu desconhecia, catarei.

Mudando totalmente a pauta: leste "Nós, os Mortos"?

doggma disse...

Cata, que esse merece.

Ainda não li essa. Sei que tem o maior discípulo do Richard Corben deste mundo, mas e aí, qual o veredito?

Do Vale disse...

Vibrante, visceral, instigante e acachapante. Acredito que lido em sequência melhora demais a imersão (foi publicado na França em 4 partes). Cenário inventivo: as mudanças que seriam causadas pela Europa ao longo dos séculos XV em diante foram por terra com uma praga análoga a Peste Negra. Acontece que, enquanto os mortos-vivos europeus perderam o tesão pela vida por falta de perspectivas quanto ao amanhã, chafurdando em pequenos conflitos de Corte ou na vida parada do campo, os povos Ameríndios floresceram: os Incas subjugaram Maias, Astecas e foram continente acima, com um massacre de Lakotas acontecendo logo no ínício.


O mocinho é um prícipe Inca enviado em missão pelo pai pra trazer o segredo da vida eterna a seu povo. E tome intrigas, traições, mortandade, coitos raivosos e toda sorte de patifaria que um Império saindo do auge pra decadência de valores pode trazer. Cenário riquíssimo e narrativa episódica com momentos bem definidos e cortes que vão de um núcleo a outro sem cansar em nenhum momento. Palmas pra costura do roteirista Darko Macan e pra habilidade do Igor Kordey, que me lembra mais o Guéra que o Corben (sendo que, na verdade, os croatas remetem ao americano); cores lindas também, a pessoa chama Yana.

DOIS PORÉNS, talvez três, sendo que um não vejo tanto problema assim: o primeiro, que não me incomodou tanto, é que o protagonista roda da costa da Europa adentrando Balcãs, Oriente Médio, China e depois descendo pra o que deve ser o Egito, e nisso tudo topa com seu antogonista mais de uma vez, como se fosse bem ali, mas tudo bem; o segundo é que me parece que, do início da história (1400 e tanto) até o presente (700 anos depois, quase que a atualidade), pouco tenha acontecido no cenário europeu. Falo tanto de avanços de engenhocas quanto as mesmas pessoas circulando por séculos pelo continente. É MUITO tempo. Nada que derrube a base da trama, mas talvez se baixassem a numeração, desse pra levar esse pormenor mais a sério.

Por último, muitas linhas narrativas abertas, pouco tempo pra fechar tudo... O que é uma pena, o gostinho de quero mais é forte. E o pior nem é que o final é acelerado, é que as coisas terminam de um jeito que você procura páginas depois da 4a capa.

Apesar disso, ótima leitura. Das melhores que tive recente.

Abraço!

doggma disse...

Cacetada, que review! Brigadaço pelas impressões.

Basicamente, tem TUDO o que me interessa contido aí. E se com 230 páginas ainda rolou uma abstinência (tive isso há pouco, com Black Magick e suas 300 e poucas págs.), já garantiu um disputado lugar no carrinho.

Mais uma vez, valeu, meu amigo. E uma excelente semana!

Alexandre disse...

PQP!
Estava com esse filme no HD a tempos, vi teu post e falei, é agora.
Fui assistir, de forma descompromissada, tipo sessão da tarde em uma tarde de Home Office no Inverno.
Que porrada de final.
PQP que filme sensacional.
Não é para qualquer um, mas, de novo, PQP.
Deixou um gosto amargo, pesado.

doggma disse...

O clímax é perturbador mesmo, Alexandre. É visceral e inesperadamente perturbador. E cool, de uma certa forma.

Ficar de olho no Shawn Linden, que pelo menos nesse filme o cara entregou. De sobra.