quarta-feira, 12 de junho de 2024

Entre morcegos e lobos


Que leitura. Batman: Gritos na Noite é considerada uma das histórias mais pesadas do Cruzado Encapuzado. E, adivinha, é pesada mesmo. Nem foi necessário recorrer ao Coringa, ao Duas-Caras, ao Espantalho ou qualquer residente do Arkham. Só precisou do elemento humano, no seu mais errático, imperfeito e trágico. Figurinhas tão triviais quanto o colega de trabalho, o vizinho que acena, o parente próximo. E isso é assustador.

O roteiro é do lendário Archie Goodwin, que co-argumentou a premissa com o artista Scott Hampton (Lúcifer, Deuses Americanos). A trama gira em torno de chacinas brutais de famílias de Gotham City, uma nova e poderosa droga que está agitando as ruas e casos de abuso infantil. Temas sombrios por natureza, nunca abordados de forma tão nevrálgica num quadrinho mainstream. Eu, pelo menos, nunca vi.

Lá fora, Gritos na Noite saiu em outubro de 1992. Foi publicada aqui pouco depois, pela Abril, em dezembro de 1993. E foi publicada novamente pela Panini no finzinho do ano passado, exatos 30 anos depois. Acompanhei essa cronologia in loco. Velho é pouco. Mas meu 1º contato não foi dos melhores: na época, achei a história arrastada, a arte muito escura e um tom geral de "quadrinho adulto" que não apeteciam aquele leitor espinhento viúvo de Heróis da TV. Pérolas aos porcos, é o que dizem.

Precisei desses 30 anos – mais seis meses até tirar do plástico (as páginas do bendito couché já começavam a colar) – para adquirir o cabedal necessário para apreciar a graphic com propriedade. Trata-se de uma obra sui generis, perturbadora, atual e necessária.


A arte aquarelada e suja de Hampton é o coração da HQ. O artista trabalha em diferentes tons escuros conferindo uma sensação opressiva, pesarosa e desesperadora à narrativa. É incrível como uma história que investiga a escuridão da alma humana tenha acertado tanto na escolha de seu artista.

A Gotham de Scott Hampton é apavorante. Parece situada n'alguma dimensão fantasmagórica, trevosa e obscura, como o Outro Mundo (Silent Hill) ou o Mundo Invertido (Stranger Things). Ou, melhor ainda, no Umbral.

Como ele mesmo chegou a brincar:
“No que me diz respeito, ninguém em Gotham City tem nada superior a uma lâmpada de 20 watts.”

Definição melhor, impossível.

O contraste entre as cenas escuras e as cenas claras também é espetacular. Literalmente uma supernova direto no olho logo após um longo blecaute.

É uma leitura que demanda tempo e atenção. Não foram poucas as vezes em que precisei acostumar a retina até capturar tudo o que estava acontecendo num quadro.


Assim como não foram poucas as vezes em que achei que havia algo e era apenas a transparência de algum balão na página de trás. Duh.

Sabiamente, Hampton evita qualquer traço de virtuosismo, o que cortaria a sua fina sintonia com a trama. Ainda assim, em vários momentos, acaba lembrando uma cruza dos mestres John J Muth e Richard Corben. O que não é nada mal para um autodidata confesso.

Mesmo esse evidente compromisso com o espírito da história rende cenas que são um convite a uma bela moldura.


Bons tempos em que isso era mais valorizado

Nunca vi um Bruce Wayne no papel do playboy-filantropo-bon vivant tão soturno, tão pouco à vontade, tão Batman. E Jim Gordon, ainda imundo das ruas em suas primeiras horas como Comissário, é o protagonista moral aqui. Complexo, obstinado, falho e, novamente, humano.

Gritos na Noite justifica o título. É um thriller psicológico barra pesadíssima que bem poderia ter sido a fonte de consultas para David Fincher em Se7en (1995). Especialmente fortes são as duas sequências das páginas 51–55, inesperadas para um comic book e difíceis de ler, nauseando o leitor com uma impotência que remete aos próprios personagens. É um quadrinho que te traga para dentro, gostando ou não.

A conclusão, inevitavelmente pós-traumática, sugere até certa natureza elseworld, à Piada Mortal. Algo para refletir.

Difícil saber onde estavam as mentes dos quadrinistas quando escreveram a história. Hampton costuma dizer que é uma HQ muito pessoal, seja lá o que isso quer dizer.

E o veterano Archie Goodwin, falecido em 1998, trabalhou nas revistas Creepy e Eerie na década de 1960, foi editor da Epic Illustrated e, depois, do selo Epic, na Marvel, por dez anos. Estava acostumado com temáticas hardcore e mundo cão, mas nada assim.

A única coisa que sei é que o Batman era seu personagem predileto da DC. E talvez isso tenha sido o suficiente.

5 comentários:

Do Vale disse...

Me perguntava por que Gritos na Noite estava há tanto tempo sem republicação. Depois de ler no mês passado, entendi. Talvez o tema? Pesadíssima. Fui e voltei nas passagens com o Gordon raivoso repetindo os comportamentos do pai com o pobre Jimmy - que anos depois, quem sabe, mostrou as consequências em Espelho Sombrio. E a cena dos bonecos? De entulhar. Parei nela um tempo.

Li de férias no começo de 94, se não me engano. Um primo mais velho comprou e adorou; eu não entendi muito, queria mais ação - e achei tudo muito escuro também. Gibizaço, já convida pra uma releitura.

doggma disse...

Fala, Do Vale!

Cara, me senti fisicamente mal na parte dos bonequinhos. Uma porrada, mesmo com o terreno já preparado pela história até ali. E no trecho seguinte, com o Gordon despirocando... Aquilo ali o pequeno Jim vai levar consigo pra sempre, não importa o que se faça.

Aliás, a lenta degradação de Gordon é uma aula de roteiro.

Putz, tenho Espelho Sombrio (Scott Snyder, é isso?). É outra ainda conservada em carboni... no plástico, desde que saiu. Se tem reflexos disso aí, vai pro topo da fila de leitura.

Abração.

RCO disse...

Só li 2x na vida e tive na minha coleção as edições da mini-série até o mês passado. Leitura de primeira, sinto os impactos até hoje.

Luwig Sá disse...

Esse relançamento de Gritos na Noite não deu p/ quem quis. Comprei o meu na loja virtual e eis que, uma quinzena depois, recebo um e-mail da Inominada informando que iriam me reembolsar. Reagi civilizadamente...?! Claro que n-- sim.

Mais que toda a trama de abuso infantil - num timing cruel c/ nossa própria realidade BR -, quem me leva à lona nesse gibi é Jim Gordon. Curiosamente, ela viria a ter discrepâncias anos mais tarde c/ Legends of the Dark Knight nº 159-161 do Ostrander; que crava o motivo real do divórcio. E, claro, também com a participação do Jimmy.

Como o Do Vale disse acima, isso deu ruim demais, vide Espelho Sombrio*; AKA, melhor gibi da carreira do Scott Snyder.

Abração.
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(*) https://thepulseluwig.blogspot.com/2013/05/densidade-demografica.html

doggma disse...

RCO, espero que ainda tenha essa mini da Abril por aí. Por conta da impressão, ela traz uma tonalidade de cor um tanto diferente da versão da Panini. Não é melhor e nem pior, mas dá uma outra perspectiva da arte pintada do Hampton, o que é bem legal.

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Luwig, a edição já esgotou? O negócio saiu em dezembro. A tiragem deve ter sido ridícula.

Uma vez recebi um e-mail desse. Por sorte, era edição fácil de achar por aí, mas morri no frete. Triste saber que ainda está acontecendo. Santa incompetência.

Anotadas as dicas do Gordon's Way. Acho que não vi nenhuma dessas.

Pô, aquele post já tem 10 anos. Surreal. Até o Sandro comentou ali.

Abração.